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O poder normativo estatal originário e o fenômeno da “deslegalização”

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Agenda 16/08/2012 às 17:09

A interpretação restrita do princípio da separação dos poderes e da legalidade tem sido deixada de lado, para se admitir a edição de normas inovadoras no ordenamento jurídico, seja de maneira originária, seja por meio de "deslegalização" expressa ou implícita. O STF, nesse sentido, vem indicando a constitucionalidade do poder normativo estatal originário, com a finalidade de permitir o maior acompanhamento do mercado.

Resumo: O presente trabalho tem por objeto a análise da nova perspectiva adotada sobre o exercício do poder normativo estatal, verificados sob o prisma dos princípios constitucionais, em especial o princípio da separação dos poderes, da legalidade e os da ordem econômica. Analisa-se, dessa forma, a possibilidade e as formas de edição de atos normativos inovadores na ordem jurídica pelo Poder Executivo ou Judicial, seja por meio de competência originária ou por meio da “deslegalização”. Verifica-se, assim, a interpretação adotada em face da estrutura regulatória que vem se adotando e da necessidade de acompanhar o mercado.

Palavras-chave: Legalidade; Deslegalização; Princípios; Regulamentação; Intervenção.

SUMÁRIO: Introdução; 1. Poder Normativo Estatal e as Agências Reguladoras; 2. O desmistificado princípio da separação dos poderes; 3. Uma releitura do princípio da legalidade; 4. O poder normativo estatal e os instrumentos de sua concretização; 5. A “Deslegalização” e o poder normativo estatal originário; Conclusão ; Referências.


Introdução

Este estudo tem por objetivo propiciar uma releitura do poder normativo estatal, através da análise do seu exercício originário e por meio do fenômeno da “deslegalização”, verificando, diante do ordenamento jurídico vigente e dos posicionamentos atuais, a possibilidade e as formas de edição de normas inovadoras no ordenamento jurídico pelo Poder Executivo e Judicial.  O tema já vem tomando corpo desde a introdução das agências reguladoras no direito brasileiro e da crescente necessidade de intervenção do Estado na economia, ensejando regulação setorial intensa das atividades econômicas. Nesse sentido, a Administração Pública vem aumentando a quantidade de normas editadas para reger determinados setores, utilizando-se cada vez mais do poder normativo, o que gera a necessidade de se avaliar os limites dessa atividade e as formas pelas quais ela pode ser concretizada.

Assim, serão postas em contraposição as teorias sobre o assunto, bem como os precedentes do Supremo Tribunal Federal, com a finalidade de promover o estudo dos limites e das formas regulamentares do Estado. Para atingir esse objetivo, também será verificadoaté que ponto é permitido aos Poderes Executivo e Judicial utilizarem do poder normativo estatal sem infringir o princípio da legalidade e da separação dos poderes, premissas estas básicas ao desenvolvimento do tema.


1. Poder Normativo Estatal e as Agências Reguladoras

Em primeiro lugar, para esclarecimento dos limites do poder normativo, é necessário buscar esclarecer se há distinção entre o poder regulamentar próprio da Administração Pública como um todo e o exercido pelas agências reguladoras em específico. Isso porque as agências aludidas, introduzidas no ordenamento jurídico após o advento da Constituição Federal de 1988, são constituídas com propósito de regulação sobre determinado setor econômico, com instrumentos que buscam estabelecer independência na sua atividade, visando obter isenção em face das ingerências políticas. Apenas com esse esclarecimento inicial é que será possível o delineamento do tema.

Não há dúvidas de que existem outros órgãos e entidades públicas que exercem atividade regulatória sem ter, contudo, a independência própria das agências reguladoras, a exemplo do Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE, dos Conselhos Profissionais, os próprios Ministérios, etc. Marcos Juruena Villela Souto (2007, p. 225) enfatiza que para o exercício dessa atividade não se exige que seja criada uma agência reguladora, tanto que “as primeiras atividades regulatórias no Brasil envolviam estruturas que não tinha nem a característica e nem o nome de agência reguladora [...]”. Entretanto, partindo da premissa das agências reguladoras como entidades independentes, com todas as suas características típicas, esses órgãos e entidades não são considerados agências reguladoras no tratamento de parte da doutrina moderna, o que não significa que elas detenham poder normativo distinto do Poder Público como um todo.

Quando se trata de definir o que vem a ser o poder normativo estatal, a doutrina o conceitua aludindo aos limites da edição de atos normativos, mas não distingue caso seja exercido pelas agências reguladoras ou por um ente político do Poder Executivo. Isso porque a distinção é apenas prática. As agências mencionadas são entidades eminentemente técnicas, que trabalham para regular um setor econômico específico com conhecimentos que não são meramente políticos, razão pela qual foge ao domínio do legislador, razão pela qual a quantidade de normas por ela editada é sempre superior[1]. A Administração Pública, direta ou indireta (excluídas as agências reguladoras), por outro lado, tem uma atuação mais relacionada a escolhas políticas que não demandam conhecimentos específicos. O próprio corpo de servidores não é escolhido com essa finalidade. Isso, porém, não quer dizer que a atuação é exclusiva de uma ou outra natureza, mas que a principal função é esta, mas este fato, diante do sistema jurídico, não distingue o poder normativo exercido pelos dois.

Dessa forma, o que diferencia é a natureza da atuação no uso do poder regulamentar, mas este, por si só, é único, pertencendo ao Estado como um todo. A descentralização administrativa, principalmente com a criação de agências reguladoras, é um importante instrumento e uma necessidade, como afirmou Cláudia Olveira Guia[2], para “[...] propiciar a celeridade e promover um maior especialização para atender com mais presteza aos anseios da coletividade e do próprio Estado [...]”.

Contudo, isso não impede que qualquer órgão ou entidade da Administração Pública exerça o poder regulamentar de natureza técnica ou política independentemente de se constituir como agência. Não há qualquer impeditivo legal do exercício normativo político pelo Poder Público diferentemente do de natureza técnica, razão pela qual não se pode sustentar um poder especial destinado às agências reguladoras. Partindo dessas explicações, cabe verificar os limites desse poder normativo, exercido por qualquer entidade ou órgão do Estado.


2. O desmistificado princípio da separação dos poderes

Antes de adentrar na análise do poder normativo originário frente ao princípio da legalidade, faz-se necessário observar e superar o clássico entendimento sobre a separação de poderes como barreira intransponível. O primeiro óbice que se argumenta quando se trata do assunto relacionado ao poder normativo estatal inovador é o princípio da separação dos poderes (CF/88, art. 2º)[3], sob a alegação de que o exercício dessa atribuição ensejaria usurpação da competência constitucional do Poder Legislativo. Esse entendimento

Nesse sentido, defende-se que a atividade do Poder Executivo e Judicial não poderia compreender a edição de atos normativos inovadores no ordenamento jurídico, exceto nas hipóteses constitucionais. O poder normativo, por esta linha de pensamento, se restringiria à edição de regulamentos de execução, por meio dos quais o administrador estaria adstrito a dar executividade ao dispositivo constante de lei, não podendo inovar, criar ou restringir sua abrangência. Essa idéia já chegou a ser albergada, inclusive, pelo Supremo Tribunal Federal que, na ADI n. 1296-7/PE de 1995, chegou a afirmar, em sua emente, que:

“A nova Constituição da República revelou-se extremamente fiel ao postulado da separação de poderes, disciplinando, mediante regime de direito estrito, a possibilidade, sempre excepcional, de o Parlamento proceder à delegação legislativa externa em favor do Poder Executivo.

A delegação legislativa externa, nos casos em que se apresente possível, só pode ser veiculada mediante resolução, que constitui o meio formalmente idôneo para consubstanciar, em nosso sistema constitucional, o ato de outorga parlamentar de funções normativas ao Poder Executivo. A resolução não pode ser validamente substituída, em tema de delegação legislativa, por lei comum, cujo processo de formação não se ajusta à disciplina ritual fixada pelo art. 68 da Constituição”.

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Inobstante esse posicionamento, o princípio da separação dos poderes, como argumento impeditivo do poder normativo estatal, vem sendo, ao longo dos anos, desmistificado. Isso porque as atribuições dos poderes estatais (Legislativo, Executivo e Judicial) não são exercidas com exclusividade, mas sim através da preponderância da atividade. Assim, o poder normativo não é exclusivo do Poder Legislativo, podendo ser exercido também pelo executivo, assim como a execução de políticas públicas não é de competência exclusiva do Poder Executivo, podendo ser também concretizada pelo judiciário.

A utilização do princípio da separação dos poderes como barreira ao poder normativo originário ou delegado exercido pela Administração Pública se mostra, inclusive,contraditório. A razão disso é que, muito embora não se admita a regulamentação inovadora, aceita-se a edição de ato normativo de execução, complementar à legislação. Assim, não há como se adotar a separação de poderes como preceito de exclusividade de atividades, sob pena de se impossibilitar a própria finalidade para a qual o Estado foi criado.

Nesse sentido, Alexandre Santos Aragão[4], desmistificando a aplicação irrestrita desse princípio,afirma que ele não pode ser entendido de forma que “cada um dos respectivos órgãos exercerá necessariamente apenas uma das três funções tradicionalmente consideradas – legislativa, executiva e judicial”. Justifica asseverando que “não se pode inferir que todas as funções do Estado devam sempre se subsumir a uma destas espécies classificatórias”, devendo ser deixada de lado a noção tradicional de divisão aludida. Gustavo Ferreira Santos[5], após elucidar o posicionamento de Eros Grau, também adota essa linha, afirmando que “a função legislativa, exercida pelo Poder Legislativo, é apenas uma manifestação do poder normativo, que está presente em todo o Estado e não apenas em um poder”.

Com base nessa nova ótica de leitura do princípio, o STF, influenciado pelos posicionamentos de Eros Grau, remodelou sua jurisprudência, deixando expresso, no HC 85060/PR, que “quando o Executivo e o Judiciário expedem atos normativos de caráter não legislativo --- regulamentos e regimentos, respectivamente --- não o fazem no exercício da função legislativa, mas no desenvolvimento de função normativa”. Com isso, complementa asseverando que esses poderes normativos “não decorrem de delegação de função legislativa; não envolvem, portanto, derrogação do princípio da divisão dos poderes”.

Dessa forma, o poder normativo não é função exclusiva do Poder Legislativo, razão pela qual o seu exercício pelo Poder Executivo e Judiciário não infringe o princípio da separação dos poderes, devendo apenas ser observado o delineamento constitucional que lhe foi destinado para elucidar os seus limites. Cabe agora, portanto, verificar a aplicação do princípio da legalidade sob esse prisma.


3. Uma releitura do princípio da legalidade

A Carta Magna de 1988 destinou diversos dispositivos ao princípio da legalidade, dos quais o art. 5º, II[6], se constitui como o principal, estabelecendo-o como garantia e direito fundamental de todos os cidadãos. Pela leitura simples e restrita do dispositivo constitucional, a doutrina começou a compreender que o poder normativo desenvolvido pelo executivo e judiciário ficaria restrito à complementação da lei, sem poder inovar no ordenamento jurídico. O entendimento aludido ainda utilizava o art. 84, IV da CF/88, aludindo à competência do Presidente da República unicamente para expedir regulamentos de execução à lei.

Ocorre que, diante do desenvolvimento econômico e da necessidade cada vez mais intensa de intervir no mercado, principalmente em virtude da evolução da tecnologia e especialidade dos serviços, as previsões legislativas passaram a não dar mais conta das regulamentações setoriais. O princípio da legalidade, com isso, passou a ser interpretado de forma adequada aos anseios sociais, de forma a possibilitar a atuação estatal mais intensa, através de instrumentos construídos pela doutrina e jurisprudência.O STF, na ementa do HC 91509/RN, estabeleceu que a legalidade, constituída através do princípio constitucional mencionado, na verdade, fixa o epíteto lei na acepção de norma, de forma que “não impede a atribuição, explícita ou implícita, ao Executivo e ao Judiciário, para, no exercício da função normativa, definir obrigação de fazer ou não fazer que se imponha aos particulares e os vincule”. Eros Grau, relator do acórdão mencionado, explica detalhadamente a interpretação que deve ser destinada ao princípio em face do poder regulamentar estatal:

“Tanto isso é verdadeiro – que o dispositivo constitucional em pauta consagra o princípio da legalidade em termos apenas relativos – que em pelo menos três oportunidades [isto é, no artigo 5º, XXXIX, no artigo 150, I e no parágrafo único do artigo 170] a Constituição retoma o princípio, então o adotando em termos absolutos: [...] Não tivesse o artigo 5º, II consagrado o princípio da legalidade em termos somente relativos e razão não haveria a justificar a sua inserção no bojo da Constituição, em termos então absolutos, nas hipóteses referidas. Dizendo-ode outra forma: se há um princípio de reserva da lei – ou seja, se há matérias que não podem ser reguladas senão pela lei – evidente que das excluídas a essa exigência podem tratar, sobre elas dispondo, o Poder Executivo e o Judiciário, em regulamentos e regimentos”.

A mudança interpretativa foi necessária para garantir os preceitos fundamentais da Constituição Federal de 1988, principalmente no que concerne aos princípios da ordem econômica. Sério Guerra[7], após analisar a teoria desenvolvida por Hesse sobre a força normativa da constituição, esclarece que os preceitos magnos “devem se adaptar a eventual mudança de condicionantes (práxis), de modo que a Constituição se limite ao estabelecimento de alguns princípios fundamentais para não sofrer constantes revisões que desvaloriza a sua força normativa”. É nessa perspectiva que se deu a necessidade de se reinterpretar o princípio da legalidade sob a constante evolução da forma interventiva estatal sobre a economia.

Sendo assim, o princípio da legalidade, em sua acepção, deve comportar o epíteto “lei” no sentido de “norma”, aqui incluído o regulamento expedido pelo Poder Executivo e Judiciário, visando a tender às finalidades constitucionais. Não se trata, portanto, de óbice ao poder normativo estatal, sendo, na verdade, o seu fundamento de validade e existência. Dessa forma, cabe agora adentrar na análise dos instrumentos de concretização dessa atividade atípica do Estado.


4. O poder normativo estatal e os instrumentos de sua concretização

Quando se trata das formas de edição de atos normativos pelo Poder Executivo e Judiciário, alude-se normalmente às espécies de ato administrativo, tais como: resolução, portaria, decreto, regimentos internos, etc. No entanto, não é objetivo desta análise a verificação de todos os atos da Administração Pública que podem veicular normas inovadoras no ordenamento jurídico. Os instrumentos aludidos dizem respeito às formas pelas quais é conferida a possibilidade de se editar regulamento autônomo, estudando-se as teorias sobre o assunto e a interpretação judicial que foi conferida pelo Supremo Tribunal Federal.

Neste ponto, é necessário verificar as teorias sobre os limites do poder normativo. Marçal Justen Filho[8] elucida quatro correntes sobre o exercício desse poder de forma inovadora no ordenamento jurídico. A primeira defende a possibilidade de edição de regulamento para suprir ausência de previsão legislativa, não sendo matéria constitucionalmente atribuída à competência privativa de lei. Já a segunda argumenta a possibilidade de deslegalização expressa, permitindo que o Poder Executivo discipline inovadoramente certos assuntos através de regulamento, quando a lei lhe destina tal atribuição. A terceira, por sua vez, admite a regulação em face de preceitos sumários, gerais e abstratos, com a finalidade de concretizá-los. Por fim, a quarta remete à impossibilidade de regulamento com caráter inovador, salvo nas exceções constitucionais, defendendo a sua subordinação restrita à lei, sem qualquer inovação ou acréscimo que traga obrigações não previstas inicialmente.

Nesse sentido, a linha de posicionamento que se adotar será o marco para definição dos limites regulatórios do Estado, verificando de que forma e até que ponto lhe é deferido inovar no ordenamento jurídico. As três primeiras correntes serão contrapostas nos tópicos posteriores, em virtude de suas peculiaridades e similaridades. No entanto, é necessário observar, de pronto, o quarto posicionamento que, com base nos princípios da separação de poderes e da legalidade, defende a impossibilidade de regulamento autônomo no ordenamento jurídico brasileiro, exceto na hipótese constitucional do art. 84, VI, da Constituição Federal de 1988.

Por esse pensamento, os regulamentos editados pelo Poder Executivo e Judiciário devem estar adstritos à finalidade de dar execução às leis, quando esta demandar o ato infralegal, afirmando a inexistência de regulamento autônomo e fortes limites à atuação estatal, o que é sustentado, por exemplo, nos ensinamentos de Celso Antônio Bandeira de Mello[9]. Assim, o poder normativo ficaria restrito à repetição das disposições legislativas e ao seu detalhamento, com fundamento no art. 84, IV, da CF/88, sob competência do Presidente da República, sem que, nesse procedimento, seja permitido ampliar, inovar ou mesmo restringir o seu conteúdo.

Ressalte-se que este entendimento já chegou a ser adotado também pelo Supremo Tribunal Federal em época anterior, na ADI 1296/PE, da relatoria do Ministro Celso de Mello, deixando expresso que a inovação no ordenamento jurídico só poderia se dar através de lei delegada, não podendo a lei ordinária transferir competência ao Poder Executivo ou Judiciário (“deslegalização”) para editar normas com obrigações não previstas em lei.

A fundamentação dessa última corrente se prende, em síntese, ao princípio da legalidade (CF/88, art. 5º, II) e ao da separação de poderes (CF/88, art. 2º), tratados nos tópicos anteriores. Ultrapassada a análise dessas máximas constitucionais nos tópicos anteriores, demonstrando-se a desmistificação desse argumento frente às necessidades atuais de intervenção do Estado na economia, cabe agora analisar as demais correntes, com a finalidade de propiciar a sistemática que vem sendo adotada pela doutrina e jurisprudência na práxis do exercício do poder normativo pelo Poder Executivo e Judicial.


5. A “deslegalização” e o poder normativo estatal originário

Como visto, retirando a corrente que elimina a possibilidade de regulamento autônomo no ordenamento jurídico brasileiro, restam as três correntes que sustentam análise do poder normativo estatal sob a perspectiva de acompanhamento das alterações do mercado. Estabelecem, assim, três perspectivas de se permitir ao Estado a edição de atos normativos inovadores por toda a Administração Pública, de forma a admitir a deslegalização, por meio expresso ou implícito, ou a defender o exercício desse poder de forma originária, exceto nas hipóteses constitucionalmente em que há atribuição de competência privativa à lei.

Passando à análise de cada um dos posicionamentos aludidos, a primeira corrente tem por idéia que o poder normativo, embora seja preponderante no exercício das atividades do Poder Legislativo, não é atribuição exclusiva deste, podendo o Poder Executivo e Judiciário também utilizá-lo (através de regulamentos e regimentos). Um dos defensores desse posicionamento, Hely Lopes Meirelles[10] (2008, p. 130-131) argumenta essa possibilidade, alertando, no entanto, que a regulamentação deve sempre visar complementar a lei, fixando critérios técnicos e procedimentos necessários a sua aplicação, suprindo as lacunas existentes, não podendo ir de encontro aos seus preceitos.

Nessa vertente, o exercício do poder regulamentar não decorre de uma delegação do Poder Legislativo, mas sim de sua competência originária. Dessa forma, o poder normativo não é compreendido como atribuição exclusiva do legislativo, podendo ser exercido, portanto, pelos outros poderes também. Assim, os Poderes Executivo e Judicial só não poderiam regular matérias conferidas exclusivamente ao poder normativo do legislativo, a exemplo da matéria penal, consoante aplicação do art. 5º, XXXIX, determinando que “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”. Em hipóteses como esta, aí sim não seria permitido ao administrador editar ato normativo para substituir a lei prevista no texto constitucional.

Já a segunda corrente, por outro lado, ao invés de tratar do poder normativo de forma originária, defende a possibilidade de o Poder Legislativo conferir competência através da própria lei, deixando para que um terceiro poder regule a matéria que seria de sua atribuição. Esse fenômeno tem sido denominado de “deslegalização” expressa, atribuindo-se diretamente competência ao Poder Executivo ou Judicial para regular a matéria, que era de sua competência, de forma inovadora. Nessa linha, o poder normativo decorreria da fixação de um dispositivo de lei, no qual se delegue, expressamente, competência a outro poder para regulamentar uma matéria, desde que não seja atribuição privativa sua fixada constitucionalmente.

O terceiro posicionamento, por outro lado, adota a idéia da possibilidade de regulamentação do Poder Executivo de forma inovadora quando a lei tratar da matéria através de conceitos jurídicos indeterminados, estabelecendo discricionariedade ao administrador. Ambas correntes (segunda e terceira) são defendidas por Alexandre Santos de Aragão[11] ao afirmar que o princípio da legalidade é atendido “pela lei que qualifica a atividade como serviço público, titularizando-a com exclusividade ao Estado, reconhecendo, de forma mais ou menos explícita, os poderes regulatórios sobre a atividade”. No mesmo sentido, argumenta Mauro Hiane de Moura[12], em relação à deslegalização implícita, que a delegação da competência legislativa “entre nós, ocorre apenas quando uma lei que regula minudentemente um determinado campo material é substituída por outra lei que, no lugar da anterior, adota apenas conceitos jurídicos indeterminados”.

Nesses termos, a linha de entendimento é no sentido de admitir a regulação inovadora pelo Poder Executivo através da delegação expressa pela lei ou através da complementação de conceitos jurídicos indeterminados. Os dois fenômenos aludidos são espécies de manifestação do que vem sendo denominado de deslegalização, possibilitando ao executivo regular matérias através de uma transferência direta da competência ou por meio da complementação de standards prescritos na própria legislação.

Estas três primeiras correntes doutrinárias, em que pese divididas em espécie, também podem ser defendidas em conjunto, argumentando-se a possibilidade de regulamentação ante a ausência de previsão legislativa, não sendo matéria privativa do Poder Legislativo, ou mesmo através da deslegalização expressa ou implícita. Foi o que entendeu o Supremo Tribunal Federal no HC n. 1509/RN, da relatoria do Ministro Eros Graus, adotando-se os três posicionamentos aludidos.

Pelo entendimento esposado pelo STF no julgamento aludido, afirmou-se expressamente que o poder normativo não é atribuição exclusiva do Poder Legislativo e que o Poder Executivo e Judicial poderiam editar normas inovadoras no ordenamento jurídico, desde que não fosse submetido ao princípio da legalidade de forma absoluta. Para tanto, deixou-se claro que a regulamentação aludida seria exercício de atividade de competência originária, independentemente de delegação do Poder Legislativo, inobstante haver a possibilidade deste poder delegar através de lei, com disposições expressas ou implícitas de delegação.

Independentemente do posicionamento a se adotar, é certo que, essas novas manifestações demonstram claramente uma mudança de perspectiva do poder normativo estatal, uma vez que vem sendo admitida a edição de normas de forma inovadora no ordenamento jurídico brasileiro para poder se acompanhar os setores econômicos e o desenvolvimento do mercado. A necessidade de maior intervenção estatal na economia, por meio da atividade regulatória, fez com que a regulamentação da economia se intensificasse, razão pela qual o Estado precisa de mais instrumentos para atender aos objetivos estabelecidos na Constituição Federal de 1988.

Exemplo de normas inovadoras no ordenamento jurídico editadas pelo Poder Executivo é, no âmbito dos serviços de radiodifusão, a Portaria nº 420, de 14 de setembro de 2011, que tratou do processo seletivo para a obtenção de outorga de radiodifusão sonora de natureza educativa, ou mesmo do item 8.2, h.3, da Portaria n. 462, de 14 de outubro de 2011, do Ministério das Comunicações, determinando o limite máximo de 4 (quatro) anos como tempo de mandato dos membros da diretoria das rádios comunitárias, sem haver qualquer previsão legal para as normas citadas, as quais, além de tudo, não possuem natureza técnica, mas meramente política e inovadora no ordenamento jurídico.

A questão relativa ao modelo de regulamentação, por meio do poder normativo originário ou da “deslegalização”, faz com que seja deixada de lado a interpretação restritiva do princípio da separação dos poderes e da legalidade, aceitando-se a edição de regulamento autônomo.Ocorre que não há impeditivo legal que determine a escolha de um ou outro modelo, pois os únicos que impediriam o exercício do poder de forma inovadora seria o princípio da separação de poderes e da legalidade, os quais foram enfrentados já tanto pela doutrina como pela jurisprudência. Sendo assim, o poder normativo originário não possui óbice, tal qual a deslegalização, não existindo, portanto, motivo determinador de um ou outro modo de exercício desse poder.

Ademais, Em uma estrutura ou em outra, o que se altera é a amplitude dos poderes conferidos à Administração Pública, uma sendo sem sustentação em lei e outro com base em delegação legislativa. O entendimento do Supremo Tribunal Federal, no entanto, aponta cada vez mais para o exercício do poder normativo de forma originária, o que, há pouco tempo, sequer seria pensado, o que dirá admitido. Existe, dessa forma, uma nova perspectiva sobre os poderes do Estado, retratando a necessidade de acompanhar o desenvolvimento da economia e permitir a intervenção acompanhada.

Sobre o autor
Marcílio da Silva Ferreira Filho

Graduado em direito pela Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP. Advogado na empresa Porto Zero Consultoria e Assessoria em Comunicação LTDA. Advogado na sociedade Marcílio Ferreira Advogados Associados. Assessor Jurídico do Departamento Estadual de Trânsito de Pernambuco – DETRAN/PE.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERREIRA FILHO, Marcílio Silva. O poder normativo estatal originário e o fenômeno da “deslegalização”. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3333, 16 ago. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22415. Acesso em: 23 dez. 2024.

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