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A inconstitucionalidade do porte de droga para consumo pessoal. Tese humanista ou principiológica

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Agenda 16/12/2012 às 13:33

O único bem jurídico posto em risco de lesão ou efetivamente lesado com a conduta de portar droga para consumo pessoal é o do próprio usuário. Portanto, há uma situação de autolesão, cuja punição é inconstitucional.

Resumo:  O presente estudo tem por finalidade a análise dos fundamentos jurídicos que autorizam a defesa da inconstitucionalidade do crime tipificado no art. 28 da Lei 11.343/06, ou seja, o porte de droga para consumo pessoal e, por conseguinte, fundamentam sua retirada do ordenamento jurídico-penal. De fato, uma análise mais aprofundada da temática, muito embora inúmeras críticas venham contra o posicionamento aqui defendido, demonstrou que o único bem jurídico posto em risco de lesão ou efetivamente lesado com a conduta de portar droga para consumo pessoal é o do próprio usuário. Portanto, há uma situação de autolesão e, como o Direito Penal não pune a autolesão, a única conclusão lógica é a de que a conduta de portar droga para consumo pessoal é inconstitucional. Sendo inconstitucional, o dispositivo deve ser retirado do ordenamento jurídico-penal pátrio.


Introdução

O presente estudo tem por finalidade a análise dos fundamentos jurídicos que autorizam a defesa da inconstitucionalidade do crime tipificado no art. 28 da Lei 11.343/06, ou seja, o porte de droga para consumo pessoal e, por conseguinte, fundamentam sua retirada do ordenamento jurídico-penal. De fato, uma análise mais aprofundada da temática, muito embora inúmeras críticas venham contra o posicionamento aqui defendido, demonstrou que o único bem jurídico posto em risco de lesão ou efetivamente lesado com a conduta de portar droga para consumo pessoal é o do próprio usuário. Portanto, há uma situação de autolesão e, como o Direito Penal não pune a autolesão, a única conclusão lógica é a de que a conduta de portar droga para consumo pessoal é inconstitucional. Sendo inconstitucional, o dispositivo deve ser retirado do ordenamento jurídico-penal pátrio.

Não estamos defendendo a legalização das drogas, posto que não poderíamos cometer a candura de ignorar os nefastos e deletérios efeitos dos problemas relacionados às drogas, que danifica todo tecido social, desmantelando famílias e ceifando vidas. Mas, o usuário ou dependente é apenas uma pessoa doente e necessitada de tratamento e recuperação. O usuário é a vítima não o algoz do problema. Portanto, o tráfico, tal qual esculpido no art. 33 da Lei 11.343/06 deve permanecer no ordenamento jurídico brasileiro, não se podendo falar o mesmo, consoante se demonstrará abaixo, da conduta de portar droga para consumo pessoal.


1) Da discussão acerca da inconstitucionalidade do art. 28 da Lei 11.343/2006

Doente necessita de tratamento e não de punição. Uma primeira discussão que desponta acerca do art. 28 da Lei 11.343/2006 diz respeito à sua constitucionalidade. E, referida discussão tem sua justificativa em dois postulados fundamentais. O primeiro, de ordem legal. O segundo, de ordem médica ou de saúde pública. Relativamente à questão legal, temos que, referido artigo deixou de aplicar pena ao acusado, pelo menos, dentro dos moldes tradicionais, ou seja, privação da liberdade, na modalidade detentiva ou reclusiva. Com esse posicionamento, entendem seus defensores que a conduta tipificada no art. 28 da Lei 11.343/06 deixou de ser crime, pois, se não há imposição de pena privativa de liberdade e, nem mesmo, previsão de prisão simples, tal conduta não mais pertenceria à competência do Direito Penal.

Todavia, outros doutrinadores e intérpretes da lei, defendem que as modalidades sancionatórias previstas nos incisos I, II e III do art. 28 da Lei 11.343/06, representam modalidades alternativas de pena e que, portanto, para que uma determinada conduta seja classificada como crime não é necessária a previsão de pena privativa de liberdade, nos termos do art. 1º da LICP – Lei de Introdução do Código Penal (Decreto-lei 3.914, de 9 de dezembro de 1941), assim redigido: Considera-se crime a infração penal a que a lei comina pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa; contravenção, a infração penal a que a lei comina, isoladamente, pena de prisão simples ou de multa, ou ambas, alternativa ou cumulativamente. Mas, consoante será visto, a questão da inconstitucionalidade de referido dispositivo não se cinge, de forma simplista, ao problema da espécie da pena aplicada ao infrator de referida norma. Isso porque, consoante será demonstrado, vários princípios penais são infringidos com a tipificação da conduta de portar drogas para consumo pessoal.

Ademais, a previsão de penas alternativas à privação de liberdade encontra amparo na Constituição Federal de 1988 que, no inciso XLVI, do art. 5º, assim faz constar:

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XLVI - a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes:

a) privação ou restrição da liberdade;

b) perda de bens;

c) multa;

d) prestação social alternativa;

e) suspensão ou interdição de direitos;

Portanto, a possibilidade de aplicação de penas restritivas da liberdade (ou de direitos), às condutas classificadas como crime, que é justamente a espécie de pena prevista nos incisos I, II e III do art. 28 da Lei 11.343/06 está expressamente permitida na alínea “a”, do citado inciso XLVI do art. 5º da CF/88. Ademais, em esfera infraconstitucional, a Lei 9.714/98 alterou os artigos 44 a 48 do Código Penal, estabelecendo, definitivamente, como espécie de penas a serem aplicadas, as restritivas de direitos. Afinal, o que é expressamente vedado pela Constituição Federal brasileira (inciso XLVII do art. 5º), são as penas de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX (art. 5º, XLVII, “a”), de caráter perpétuo (art. 5º, XLVII, “b”), de trabalhos forçados (art. 5º, XLVII, “c”), de banimento (art. 5º, XLVII, “d”) e as cruéis (art. 5º, XLVII, “e”).

A segunda questão, de ordem de saúde pública, tange ao fato de que, pessoas doentes não necessitam de punição, mas sim, de tratamento médico especializado e multidisciplinar. Punir a pessoa que usa drogas é puni-la por aquilo que ela é e não por aquilo que ela fez. É privilegiar-se o Direito Penal do Autor e não o Direito Penal do Fato. Do ponto de vista do Direito Penal, a pessoa deve ser punida por aquilo que ela fez e não por aquilo que ela é. Superada esta apertada síntese, passemos à análise dos argumentos mais importantes na defesa da inconstitucionalidade do art. 28 da Lei 11.343/06.


2) Da tese da inconstitucionalidade do crime de porte de droga para consumo pessoal. Tese positivista e Tese humanista ou principiológica. Equívocos da tese positivista.

Muito se tem discutido doutrinariamente acerca da inconstitucionalidade do crime de porte de droga para consumo (uso) pessoal. Após a análise detida de todos os argumentos apresentados, concluímos que surgiram duas grandes linhas da tese da inconstitucionalidade do art. 28 da Lei 11.343/06. A primeira, de cunho positivista e, portanto, podendo ser denominada de Tese Positivista, fundamenta-se na questão de que, tradicionalmente, a pena-padrão para o crime seria a privativa de liberdade, na modalidade detentiva ou reclusiva, aplicada isolada, alternativa ou cumulativamente com a pena de multa e, para a contravenção, a pena-padrão seria a de prisão simples, cominada isoladamente, ou de multa, ou ambas, alternativa ou cumulativamente cominadas. Isso o que se infere, aliás, da LICP – Lei de Introdução do Código Penal (Decreto-lei 3.914, de 9 de dezembro de 1941) que, em seu artigo 1º, assim faz constar: Considera-se crime a infração penal a que a lei comina pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa; contravenção, a infração penal a que a lei comina, isoladamente, pena de prisão simples ou de multa, ou ambas, alternativa ou cumulativamente. Como, para o crime de porte de droga para consumo pessoal não há a imposição de pena privativa de liberdade, não há, pela Tese Positivista, a caracterização formal do delito.

Para a segunda linha de defesa da inconstitucionalidade do crime de porte de droga para consumo pessoal, referida inconstitucionalidade se fundamentaria no desrespeito aos Princípios da Dignidade da Pessoa Humana e no da Liberdade, bem como no desrespeito de vários outros princípios penais. Princípios estes consagrados constitucionalmente, não sendo demais lembrar que o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, previsto no inciso III, do art. 1º da CF/88 é um dos fundamentos da República Federativa do Brasil. Esta seria a Tese Humanista ou Principiológica. Pela Tese Humanista ou Principiológica, referida inconstitucionalidade se daria porque, a conduta tipificada no art. 28 da Lei 11.343/06, esbarra no direito da pessoa optar livremente pelo modo de vida que mais lhe satisfaz, ou seja, a pessoa teria o direito de escolher uma vida de vícios, podendo, para tanto, tornar-se dependente da droga que melhor se adapta aos seus anseios, aos seus desejos. Portanto, sendo um direito da pessoa escolher livremente seu modo de vida, a criminalização do porte de droga para consumo pessoal estaria afrontando o inciso X, do art. 5º da CF/88, que assim reza: X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação. Logo, criminalizar o porte de droga para consumo pessoal seria invadir a vida privada, a intimidade da pessoa que pode, consoante dito, escolher, livremente, seu modo de vida. Outros princípios constitucionais e penais também são igualmente desrespeitados com referida criminalização, conforme dito acima e será analisado logo abaixo.

É com esse argumento que a Defensoria Pública do Estado de São Paulo interpôs Recurso Especial, que já teve sua repercussão geral reconhecida, questionando o disposto no art. 28 da Lei 11.343/06. Eis a notícia do caso, verbis:

"Usuário não pode ser punido por porte de drogas[1]"

Por Marília Scriboni

A pessoa que atenta contra sua vida não precisa de punição, mas de ajuda. O espírito, que levou o legislador a tipificar a conduta daquele que tenta cometer suicídio, também move a Defensoria Pública de São Paulo em outro caso: o porte de drogas para consumo próprio. Em Recurso Especial com repercussão geral reconhecida no último 9 de dezembro, Defensoria paulista questiona a constitucionalidade do dispositivo da Lei de Drogas que criminaliza a conduta.

De acordo com o artigo 28 da Lei 11.343, de 2006, quem adquire, guarda, tem em depósito, transporta ou traz consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, comete crime. Para a Defensoria, o dispositivo viola o artigo 5º, inciso X, da Constituição Federal, que assegura o direito à intimidade e à vida privada, já que o porte não implica lesividade, princípio básico do direito penal, uma vez que não causa lesão a bens jurídicos alheios.

“Não é possível aceitar que uma norma infraconstitucional ofenda o ápice do ordenamento jurídico, considerando crime uma conduta que está devidamente amparada por valores constitucionalmente relevantes”, argumenta o defensor público que cuida do caso, Leandro de Castro Gomes.

O defensor público sustenta que a proibição do porte de drogas para consumo próprio é inconstitucional. Segundo ele, “a resposta tem como premissa o movimento funcionalista da Teoria do Delito. Superou-se o finalismo e é preciso interpretar as categorias do delito, que são tipicidade, ilicitude e culpabilidade, sob o viés da intervenção mínima e do princípio da lesividade”.

Ele complementa: “Para que uma conduta seja delituosa, não basta um enquadramento formal ao tipo legal. É preciso, ainda, que haja uma lesão ou um perigo de lesão efetivo, real e relevante a um bem jurídico alheio”.

A tese será analisada pelo Supremo Tribunal Federal ao julgar recurso de um mecânico cearense, de 51 anos, preso em Diadema (SP), onde foi acusado de portar três gramas de maconha. A droga foi encontrada dentro de um marmitex, em sua cela. O recurso, que questiona acórdão do Colégio Recursal do Juizado Especial Criminal de Diadema, está sob a relatoria do ministro Gilmar Mendes. Pelo porte da droga, o homem foi condenado a dois meses de prestação de serviços à comunidade.

Na prática, a Defensoria acredita que a conduta não é típica, já que “uma auto-lesão jamais poderá ser considerada fato criminoso, eis que ausente, na espécie, lesão a bem jurídico alheio”. “No tocante à pena aplicada, caso seja considerada procedente a ação penal, pugna pela simples advertência, eis que o acusado já possui pena aplicada superior a 10 anos, o suficiente para que sejam alcançadas todas as "funções" da pena. Para quê incidir eventual prestação de serviços? Desnecessária. Nada mais", argumenta o órgão.

Ao apresentar as contrarrazões à 2ª Vara Criminal de Diadema, o Ministério Público paulista refutou o ponto de vista da Defensoria. Disse que “até o momento tal artigo não foi declarado atípico, tampouco inconstitucional devendo ser normalmente aplicado, mesmo porque, o entendimento de que tal artigo fosse inconstitucional não restou amparado sequer pela Corte brasileira”.

O MP paulista explicou, ainda, que não se pode falar em abolitio criminis, “vez que estamos diante de um crime que, apesar de não estar apenado com a privação ou a restrição da liberdade, possui preceitos secundários próprios ao tipo penal, o qual obteve uma construção legiferante com escopo de distinguir o usuário do grande traficante de drogas, entretanto, sem prescindir da sanção correspondente, a qual restou configurada como as chamada penas alternativas”.

Coletividade e indivíduo

O promotor de Justiça André Luís Melo, que atua em Minas Gerais, arrisca um palpite: “Acredito que o STF, como tem compromisso com a sociedade, deve julgar o ato constitucional”. Para ele, a aprovação do pedido da Defensoria paulista equivale a uma “anistia geral”. “E não há como diferenciar de forma abstrata quem é usuário e quem é traficante, pois usam a modalidade de "tráfico formiguinha"”, diz.

Ele também acredita que “dizer que o delito está dentro da órbita particular, seria o mesmo que o Judiciário revogar crimes como a casa de prostituição. O Judiciário não pode revogar crimes, mas deve ter o seu ativismo repensado e redimensionado, pois cabe ao Legislativo definir os crimes e as penas, por meio da lei”.

Seu discurso é próximo ao do MP paulista: “O uso de droga não provoca dano apenas ao usuário, mas à família e à sociedade em razão de crimes violentos para manter uso, aparato de segurança, tratamentos de saúde e atendimentos sociais”.

Foi um entendimento semelhante que a juíza Patrícia Helena Hehl Forjaz de Toledo, da 2ª Vara Criminal, manifestou. Segundo ela, “pune-se o porte de droga para uso próprio, não em função da proteção á saúde do agente, mas sim em razão do mal potencial que pode gerar á coletividade (sic)”. E mais: “A pequena quantidade de substância tóxica, mesmo quando classificada como leve, não implica necessariamente que o juízo deva acatar o chamado principio da insignificância, em favor do acusado, porque todo delito associado a entorpecentes, independentemente de sua gravidade, constitui um risco potencial para a sociedade".

Um dos maiores especialistas em política de drogas do Brasil, o criminalista Salo de Carvalho, acredita que o julgamento chega em “momento adequado”. Explica-se. Em 2009, a Suprema Corte Argentina entendeu que a liberdade individual, desde que não cause danos a outras pessoas, deve ser priorizada.

Eles declararam inconstitucional o parágrafo 2º do artigo 14 da Lei 23.737 daquele país, que punia criminalmente pessoas que fossem flagradas com quantidades pequenas de drogas, supostamente para consumo pessoal. Os ministros entenderam, com base em tratados internacionais, que o direito à privacidade impede que as pessoas sejam objetos de ingerência arbitrária ou abusiva na esfera privada, como noticiou a Consultor Jurídico na época.

Além disso, o criminalista lembra que a Europa também vem presenciando experiências de descriminalização. Em Portugal, por exemplo, por decisão do Legislativo, há dez anos o porte não é mais crime. “Isso possibilita, inclusive, o acesso à saúde”, conta.

Na mesma linha de pensamento, o criminalista Pedro Abramovay, professor da FGV Direito Rio, conta que o Supremo vem enfrentando dispositivos polêmicos da Lei de Drogas. Nessa leva, já reconheceu como aplicáveis a substituição da pena e a liberdade provisória para os usuários. Ainda assim, prefere não apostar em um resultado. “Acredito que os ministros vão julgar não a partir da ideologia, mas sim a partir da garantia dos direitos individuais”, conta. Abramovay, que perdeu o cargo de secretário de Política Nacional sobre Drogas no governo da presidente Dilma Rousseff por defender um tratamento mais liberal para os usuários de droga, entende que “o propósito do Direito Penal não é proteger alguém de fazer mal a si mesmo”. “Há uma confusão aí”.

Autor do livro A Política Criminal de Drogas no Brasil, que chegou à sua quinta edição, Salo de Carvalho explica que o importante é investir na redução de danos. “As punições geram mais problemas do que vantagens. Impede, por exemplo, que o dependente se cuide e gera problemas para aquele que não tem um uso problemático” Ele também diz que a não tipificação da conduta não vai aumentar o consumo. “É ilusório pensar assim”, diz.

O também criminalista Thiago Gomes Anastácio, associado ao Instituto de Defesa do Direito de Defesa, diz que a questão a ser discutida pelo Supremo engloba dois conceitos. Um, abstrato, que é a saúde pública. E, o outro, a ideia de que todo cidadão tem o direito de fazer o que bem entender. Ele lembra ainda que há outra questão a ser levada em consideração. “Se o Estado libera o uso da droga, é ele quem deve arcar com o custo do tratamento?”, indaga, sem oferecer resposta.

Marília Scriboni é repórter da revista Consultor Jurídico.

Aguardemos o desfecho do Recurso. A questão é que a temática relacionada à descriminalização do porte de drogas para consumo pessoal ainda está longe de ter um desfecho, e mais ainda, de ter um consenso por parte dos doutrinadores e da jurisprudência brasileiros. O que se defende, deixemos isso bem claro, não é a legalização das drogas, mas sim, a descriminalização do porte de droga para consumo pessoal, tendo em vista a evidente situação patológica e não criminógena do usuário.

Apresentação de caso concreto de arguição de inconstitucionalidade do art. 28 da Lei 11.343/06. Já tivemos a oportunidade de arguir a inconstitucionalidade do art. 28 da Lei 11.343/06, em caso em que atuamos na defesa de pessoa que portava droga para consumo pessoal. Segue abaixo, os argumentos que, na época, apresentamos na defesa da inconstitucionalidade do precitado dispositivo, nestes termos:

PRELIMINARMENTEINCIDENTE DE ARGUIÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADECONTROLE DIFUSO DE CONSTITUCIONALIDADEVIA DE EXCEÇÃO

1.                  Em sede de preliminar, o acusado tem a dizer que, há na presente Ação Penal a suscitação de INCIDENTE DE ARGUIÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE, no que tange ao preceito estatuído no artigo 28 da Lei 11.343/2006. Referida suscitação está dentro da possibilidade de controle difuso de constitucionalidade das leis, podendo, referido incidente, ser suscitado por qualquer pessoa, em qualquer processo judicial.

2.                  Neste sentido, estas as palavras do constitucionalista brasileiro, José Afonso da Silva, em sua monumental obra “CURSO DE DIREITO CONSTITUCIONAL POSITIVO”, 24ª edição, 2006, São Paulo: Editora Malheiros, p. 51, nestes termos:

Portanto, temos o exercício do controle por via de exceção e por ação direta de inconstitucionalidade e ainda a referida ação declaratória de constitucionalidade. De acordo com o controle por exceção, qualquer interessado poderá suscitar a questão de inconstitucionalidade, em qualquer processo, seja de que natureza for, qualquer que seja o juízo.

3.                  Portanto, qualquer pessoa pode arguir a inconstitucionalidade de uma norma, que entenda inaplicável ao caso concreto, sempre que entender que a lei invocada (ou outra espécie normativa), estiver em distonia com os direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição Federal de 5 de outubro de 1988.

4.                  Evidente que, no caso em tela, os efeitos do reconhecimento da inconstitucionalidade serão apenas “inter partes”, ou seja, entre as partes da presente relação processual, permanecendo, o dispositivo considerado inconstitucional, em pleno vigor, até que o Senado Federal, nos termos do art. 52, inciso X[2] da CF/88, suspenda sua executoriedade.

5.                  Neste sentido ainda, esta a posição do professor José Afonso da Silva, obra citada, p. 53 e 54, nestes termos:

Em primeiro lugar, temos que discutir a eficácia da sentença que decide a inconstitucionalidade na via de exceção, e que se resolve pelos princípios processuais. Nesse caso, a argüição da inconstitucionalidade é questão prejudicial e gera um procedimento incidenter tantum, que busca a simples verificação da existência ou não do vício alegado. E a sentença é declaratória. Faz coisa julgada no caso e entre as partes. Mas, no sistema brasileiro, qualquer que seja o tribunal que a proferiu, não faz ela coisa julgada em relação à lei declarada inconstitucional, porque qualquer tribunal ou juiz, em princípio, poderá aplicá-la por entendê-la constitucional, enquanto o Senado Federal, por resolução, não suspender sua executoriedade, como já vimos.

O problema deve ser decidido, pois, considerando-se dois aspectos. No que tange ao caso concreto, a declaração surte efeitos ex tunc, isto é, fulmina a relação jurídica fundada na lei inconstitucional desde o seu nascimento. No entanto, a lei continua eficaz e aplicável, até que o Senado suspenda sua executoriedade; essa manifestação do Senado, que não revoga nem anula a lei, mas simplesmente lhe retira a eficácia, só tem efeitos, daí por diante, ex nunc. Pois, até então, a lei existiu. Se existiu, foi aplicada, revelou eficácia, produziu validamente seus efeitos.

6.                  Portanto, o reconhecimento da inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei 11.343/2006, não anulará referido dispositivo legal, mas, apenas impedirá que o caso presente seja decidido sob os seus auspícios.

7.                  Contrário seria esse efeito, se a norma estatuída no artigo 28 da Lei 11.343/2006 estivesse sendo alvo de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, e, referida ação, fosse julgada pelo Supremo Tribunal Federal, por meio do controle concentrado de constitucionalidade, nos termos do artigo 102, inciso I, alínea “a” da Constituição Federal de 1988. Caso o Supremo Tribunal Federal concluísse pela inconstitucionalidade do dispositivo invocado, o efeito da decisão seria “erga omnes”, ou seja, contra todos e teria, ademais, efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e da Administração Pública direta e indireta, nas esferas Federal, Estaduais e Municipais, pois, a sentença faria coisa julgada material. Neste caso, havendo a produção de efeitos contra todos (“erga omnes”), o dispositivo declarado inconstitucional não mais poderia ser aplicado. Que não é, como dissemos, o caso presente.

RAZÕES DA INCONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 28 DA LEI 11.343/2006

8.                  Não há como se negar que, no caso do microssistema penal de repressão às drogas, a conduta do artigo 28 da Lei 11.343/06, ao não mais prever pena, seja na modalidade detentiva, seja na modalidade reclusiva, seja mesmo a pena de prisão simples ou de multa, a serem aplicadas, quer de forma isolada, quer de forma alternada, ou cumulativamente, para a conduta de “trazer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização, ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar”, descaracterizou, referida conduta, como crime. Portanto, houve “abolitio criminis”, pois, uma lei posterior (Lei 11.343/2006 – art. 28), deixou de considerar crime, conduta anteriormente tipificada como tal (Lei 6.368/76 – art. 16). Não é demais lembrar que, o revogado artigo 16[3], da antiga lei de drogas, a Lei 6.368/76, previa pena de prisão, na modalidade detentiva, que era de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, cumulada com pena de multa, que variava de 20 (vinte) a 50 (cinquenta) dias-multa, ao usuário de drogas. Já a atual lei sobre drogas, a Lei 11.343/2006, não prevê pena. Portanto, usando-se do recurso legal da retroatividade da lei penal mais benéfica, nos termos do permissivo do artigo 2º[4] do Código Penal e do inciso XL[5], do artigo 5º da CF/88, temos que a nova lei produziu a abolição do crime de portar droga para uso pessoal.

9.                  Não se pode negar vigência a texto expresso de lei, notadamente, quando o mesmo plasma a visão garantista e humanitária do Direito Penal.

10.              Não se pode conceber a ideia de crime, sem a correspondente pena. Desta opinião, inclusive, é o professor Luiz Flávio Gomes, em artigo intitulado “USUÁRIO DE DROGAS COMETE CRIME?[6], nestes termos:

Nada obstante o posicionamento da aludida Corte, sob o nosso ver, houve descriminalização formal e, ao mesmo tempo, despenalização. Primeiro, acabou-se com o caráter criminoso do fato e, em seguida, evitou-se a pena de prisão para o usuário de drogas. Um dos principais fundamentos para a defesa da descriminalização está no próprio conceito de crime trazido no artigo 1º da LICP (Lei de Introdução ao Código Penal), segundo o qual se considera crime a infração penal a que a lei comina pena de reclusão ou detenção, alternativa ou cumulativamente com a pena de multa. Desta forma, fica evidente que não se cogita a existência de crime na conduta trazida pelo artigo 28 da nova lei de drogas. Por conseguinte, também se deve afastar a tese de ocorrência de infração administrativa, posto que as sanções cominadas somente podem ser aplicadas por juiz com competência criminal.

11.              Contrariando a opinião de Luiz Flávio Gomes, ilustre penalista pátrio, que tem brindado as letras jurídicas nacionais com posicionamentos sempre ancorados na melhor técnica científica e em conhecimento jurídico de ponta, discordamos do mesmo, no sentido de que tenha havido apenas uma despenalização da conduta do porte de drogas para consumo. Em nosso entendimento, houve verdadeira descriminalização da figura do porte de droga para consumo pessoal. Criou-se, como se pode perceber, uma verdadeira balbúrdia jurídico-penal, no concernente à normatividade reguladora do problema das drogas. Portanto, analisando a sistemática do ordenamento jurídico-penal em vigor, concluímos que a conduta tipificada no artigo 28 da Lei 11.343/2006 não é mais crime, nem contravenção penal, pois, não prevê mais as modalidades de pena adotadas pelo Direito Penal de nosso país. Senão vejamos.

12.              Nos termos do artigo 1º, da Lei de Introdução ao Código Penal (Decreto-lei 3.914, de 9 de dezembro de 1941), considera-se crime a infração penal a que a lei comina pena de reclusão, ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa. Ademais, referido artigo diz que, considera-se contravenção, a infração penal a que a lei comina, isoladamente, penas de prisão simples ou de multa, ou ainda ambas, alternativa ou cumulativamente. Se a conduta prevista no artigo 28 da Lei 11.343/2006 não constitui nem crime, nem contravenção penal, pois, não prevê a aplicação, ao seu infrator, de pena, nem na modalidade detentiva, nem na modalidade reclusiva, nem ainda, penas de prisão simples, ou de multa, aplicadas de forma isolada, alternada ou cumulativamente, não deveria, referido tipo penal, estar previsto dentro de um ordenamento pertencente ao ramo do Direito Penal. Ainda que se deva respeitar os posicionamentos doutrinários em sentido oposto.

13.              Se não há pena é porque o legislador não mais quis punir o usuário de drogas, logo, seria um contrassenso descriminalizar uma conduta e continuar a classificá-la como crime. Isso decorre de um simples processo lógico-racional.

14.              O ilustre professor Luiz Flávio Gomes, defende que o porte de drogas para consumo pessoal, com o advento da nova lei de drogas (Lei 11.343/2006), passou a se constituir numa espécie de infração penal “sui generis”. Entretanto, referida discussão, “data maxima venia”, assume características e contornos eminentemente acadêmicos. A situação prática é muito mais tormentosa, pois, o Direito Penal toca de forma profunda na vida das pessoas submetidas ao seu crivo. Em seu artigo, acima citado, o professor Luiz Flávio Gomes, assim faz constar, nestes termos:

Diante do exposto, se não se trata de crime, vez que não há cominação de qualquer pena de prisão e se não se pode admitir a caracterização de infração administrativa, só nos resta concluir que estamos diante de uma nova espécie de infração penal, de forma que, a partir da Lei 11.343/06 temos que admitir também a existência de uma infração penal "sui generis", ao lado do crime e das contravenções.

15.              Entretanto, acreditamos que, seria temerária a inclusão de espécies híbridas dentro do campo do Direito Penal. Espécies estas (híbridas), que não seriam nem crimes, nem contravenções penais. Isso, em realidade, apenas plasmaria o intuito do legislador, em dar aplicabilidade ao Direito Penal máximo, em contraposição e em evidente retrocesso ao Princípio do Direito Penal mínimo. Portanto, o artigo 28 da Lei 11.343/2006 é inconstitucional, porque alberga uma figura típica (crime) para a qual não prevê pena e que foi definitivamente abolida da sistemática do Direito Penal brasileiro. Houve uma “abolitio criminis”, perpetrada pela lei nova, mais benéfica, mas o legislador, contrariando a boa técnica legislativa e os princípios do Direito Penal, manteve referida conduta tipificada. Se não mais pretende punir o usuário de drogas, tanto que deixou de prever penas, nos moldes do artigo 1º da LICP (Lei de Introdução ao Código Penal), deveria, o legislador da Lei 11.343/2006, deixar o Direito Penal para a tutela dos bens jurídicos considerados mais relevantes.

16.              O professor Luiz Flávio Gomes, em sua obra “Direito Penal – Parte Geral – Introdução”, da Série “Manuais para concursos e graduação”, da Editora Revista dos Tribunais, 3ª edição revista, atualizada e ampliada, 2006, p. 101, acerca do Princípio da Intervenção Mínima do Direito Penal, assim faz constar:

Por força do princípio da intervenção mínima, o que resulta proibido no nosso País é o chamado Direito Penal máximo (que consiste no abuso do Direito Penal para atender finalidades ilegítimas, para acalmar a ira da população etc.).

17.              Isso, evidentemente, não pode ser admitido, pois, se a figura típica deixa de prever pena nas modalidades detentiva e reclusiva, ou ainda na forma de prisão simples ou multa, a serem aplicadas de forma isolada, alternativa ou cumulativamente, chega-se à conclusão de que não mais é intuito do legislador punir o infrator da norma penal. Se não há mais punição, não mais se está diante do Direito Penal. Logo, já neste ponto, verifica-se que o artigo 28 da Lei 11.343/2006 é inconstitucional, porque viola o Princípio da Intervenção Mínima do Direito Penal, consoante já dito alhures.

18.              Ademais, o que o legislador da Lei 11.343/2006 fez com a “suposta” figura típica de seu artigo 28 foi desvirtuar as finalidades e as missões do Direito Penal.

19.              Incontestavelmente, o Direito Penal tem a função de servir de Controle Social. O professor Luiz Flávio Gomes, obra citada, assim faz constar na p. 15, Capítulo I “in” CONCEITO DE DIREITO PENAL, “in verbis”:

1. Conceito social de Direito Penal: do ponto de vista social (dinâmico) o Direito Penal é um dos instrumentos do controle social formal por meio do qual o Estado, mediante um determinado sistema normativo (as leis penais), castiga com sanções de particular gravidade (penas ou medidas de segurança e outras conseqüências afins) as condutas desviadas ofensivas a bens jurídicos e nocivas para a convivência humana (fatos puníveis = delitos e contravenções) (sic). (grifos nossos)

20.              Particular atenção deve ser dada à expressão “nocivas para a convivência humana”. O vício em drogas só é nocivo para uma única e determinada categoria de pessoas, ou seja, os próprios viciados. Estas pessoas compram as substâncias estupefacientes de sua preferência e as usa, para aplacar sua angústia, seu sofrimento, seu vazio existencial, enfim, sua dor. Querer condenar estas pessoas, por serem viciadas, é quedar na mesma insensibilidade que sempre permeou o convívio humano. O usuário é uma pessoa enferma e necessita de compreensão e apoio, bem como de tratamento médico especializado, com submissão à equipe multidisciplinar, que conte, inclusive, com profissionais de saúde mental. Portanto, a atitude do legislador da Lei 11.343/2006 também é inconstitucional, porque desvirtua a finalidade e missão do Direito Penal, pelo desrespeito ao Princípio da Intervenção Mínima, consoante defendido acima.

21.              Concluindo sua conceituação acerca da finalidade do Direito Penal, o professor Luiz Flávio Gomes, obra citada, p. 15, assim se manifesta:

De qualquer maneira, ele não existe para punir todas as condutas desviadas (condutas que não seguem os padrões de conduta vigentes), e sim somente as mais nocivas, as que mais perturbam o convício social (princípio da intervenção mínima).

22.              Outro princípio do Direito Penal, violado pelo legislador da Lei 11.343/2006, em seu artigo 28, foi o Princípio da materialização ou exteriorização voluntária do fato (nullum crimen sine actio). Ninguém pode ser punido pelo que pensa (cogitação) ou pelo modo ou estilo de vida que adota. Isso está inserto no direito à liberdade, previsto constitucionalmente em nosso país (Constituição Federal de 5 de outubro de 1988), bem como internacionalmente, na Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada em Paris, no dia 10 de dezembro de 1948, adotada e proclamada pela Resolução 217-A, da III Assembleia Geral das Nações Unidas, que já em seu artigo I, assim faz constar: Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade”.

23.              Acerca do Princípio da materialização ou exteriorização voluntária do fato, o professor Luiz Flávio Gomes, em sua obra já citada, p. 101, assim faz constar:

Princípio da materialização ou exteriorização voluntária do fato (nullum crimen sine actio): ninguém pode ser punido pelo que pensa (mera cogitação) ou pelo modo de viver. Só responde penalmente quem realiza um fato (Direito Penal do fato); está proibido punir alguém pelo seu estilo de vida (leia-se: está vedado o chamado Direito Penal de autor, que pune o sujeito não pelo que ele fez, sim, pelo que é). O Direito Penal nazista, regido doutrinariamente pela denominada Escola de Kiel, é exemplo histórico de Direito Penal de autor (o sujeito, na época nazista, era punido não pelo que fazia, senão pelo que era: judeu, prostituta, homossexual etc.).

24.              Punir a pessoa que traz consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar é punir a pessoa pelo que ela é, ou seja, viciada (toxicômana, toxicofílica ou farmacodependente). É prestigiar a inconstitucionalidade do Direito Penal de Autor, é reviver os horrores do nazismo, bem como de outras monstruosidades perpetradas pelo homem no transcorrer de sua história, que apenas sujaram de sangue e lágrimas as areias do tempo de sua existência terrena.

25.              No caso do artigo 28 da Lei 11.343/2006, pune-se o usuário em drogas, simplesmente, porque o mesmo é viciado e a sociedade não aceita este tipo de comportamento. O que finda por redundar em hipocrisia, visto que inúmeras pessoas são viciadas nas mais diversificadas substâncias estimulantes do Sistema Nervoso Central. Principalmente, das chamadas “drogas lícitas”, como o álcool e o tabaco, que matam milhares de pessoas todos os anos. É chegado o momento de se dar um basta na hipocrisia que grassa em nossa sociedade.

26.              O usuário de drogas não coloca em risco a incolumidade pública, mas, apenas a própria incolumidade. Foge às raias do bom senso punir uma pessoa doente. E é justamente isso que o usuário de drogas é, uma pessoa doente. Está-se pretendendo punir uma pessoa, pelo simples fato desta pessoa ser doente e a sociedade “não concordar” com referida patologia. As pessoas podem até não considerar, ou classificar a dependência química como “socialmente” correta, mas, onde fica a visão humana do problema?

27.              Não tardará o dia em que a população reclamará, e os legisladores insanos corresponderão a estas reclamações, criando figuras típicas relacionadas ao fato das pessoas portarem determinadas patologias. Impossível? Evidente que não, pois, já se está fazendo isso com o dependente químico (usuário de drogas). Chegará o dia em que será crime ter câncer. A figura típica ficará assim redigida:

Art. 1º. Ser portador de neoplasia maligna:

Pena:

I – Advertência sobre os efeitos do câncer;

II – Prestação de serviços à comunidade;

III – Medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.      

28.              Ou ainda, o legislador do futuro, pode criar tipos penais para criminalizar o soro-positivo para o vírus do HIV, ou seja, o aidético. A pessoa cometerá o crime, assim que for infectada pelo vírus HIV. Assim, ao invés de apoio e de tratamento médico, psicológico e humano, a pessoa será devidamente processada, como o é, atualmente, o usuário de drogas. Veja-se que isso não é fantasia, mas, realidade. Tanto que, no caso da figura típica do art. 28 da Lei 11.343/2006, a pessoa é processada criminalmente, simplesmente por ela ser portadora de uma patologia, qual seja, a dependência química. É, em nossa opinião, a tentativa de se reviver o Regime Nazista.

29.              Portanto, o artigo 28 da Lei 11.343/2006 é inconstitucional, porque viola, igualmente, o Princípio da materialização ou exteriorização voluntária do fato.

30.              Não se pode dar azo à “Indústria do Direito Penal”, com a fabricação maciça de tipos penais, criminalizando toda e qualquer situação, notadamente, quando outros ramos do direito (subsidiariedade), de maneira muito mais satisfatória e eficaz, podem resolver o problema apresentado.

31.              Esposamos o entendimento de que, o Direito Penal, em sua finalidade, deve servir de móvel para a salvaguarda da sociedade, contra os ataques aos bens jurídicos mais relevantes, tutelados pela norma penal. Essa tutela dos bens jurídicos de uma pessoa é realizada pela norma penal, visando a proteção do INDIVÍDUO, contra os ataques perpetrados por outras pessoas, contra seus bens jurídicos penalmente tutelados. Portanto, o Direito Penal visa a proteção de uma pessoa, contra os demais membros da sociedade, que pretendam causar-lhe, ou que efetivamente tenham lhe causado, alguma lesão. Logo, não visa o Direito Penal, a proteção do indivíduo contra si mesmo. O que seria um contrassenso, tendo em vista o direito da pessoa ao livre-arbítrio. Se a pessoa quiser se autolesar, a norma penal nada poderá fazer, pois, não se pune a autolesão.

32.              Consoante o entendimento do professor Luiz Flávio Gomes, obra citada, p. 22, Capítulo II – FINALIDADES OU MISSÕES DO DIREITO PENAL, “o Direito Penal existe para: (a) a proteção de bens jurídicos (os mais relevantes, por isso se diz que a proteção penal é fragmentária e subsidiária); (b) a contenção ou redução da violência estatal; (c) a prevenção da vingança privada; e (d) proteção do infrator da norma”. Fora destas finalidades, o Direito Penal estará, evidentemente, fugindo de sua missão.

33.              O que o legislador de 2006 fez, por meio da Lei 11.343/2006, em seu artigo 28 foi desvirtuar a finalidade do Direito Penal, visando à autopromoção política, que é a chamada “função promocional do Direito Penal”, visando ainda, acalmar as exigências insanas e anticientíficas da população, que é a “função simbólica do Direito Penal”. O Direito Penal não pode existir para promover políticos ou suprir as exigências, sem lastro racional, da população, competindo ao Poder Judiciário coibir estas finalidades equivocadas, pois, referidas finalidades, inequivocamente, são inconstitucionais.

34.              Sobre as funções do Direito Penal, o professor Luiz Flávio Gomez, obra citada, p. 23, assim faz constar:

3. Funções (reais) do Direito Penal: quando se indaga sobre as funções do Direito Penal o que se pretende saber é qual é o seu papel efetivo, real, na sociedade. O mais legítimo que o Direito Penal desempenha (ou deveria desempenhar) é o instrumental, leia-se, o de servir de instrumento para a tutela (fragmentária e subsidiária) dos bens jurídicos mais relevantes (vida, integridade física etc.) e mesmo assim contra os ataques mais intoleráveis (contra as ofensas que efetivamente perturbam a convivência social).

35.              Estas são as funções reais e constitucionais do Direito Penal. As demais finalidades (funções ilegítimas e, portanto, inconstitucionais) são os desvirtuamentos que o imaginário da população (psicologia das massas) e as sandices de alguns políticos (intuito promocional) acabam por impingir ao Direito Penal. Acerca das finalidades ilegítimas do Direito Penal, o professor Luiz Flávio Gomes, em sua obra já citada, p. 23/24, assim faz constar:

Paralelamente a essa função legítima (a instrumental) cumpre, entretanto, ao Direito Penal outras funções que às vezes podem assumir um perfil ilegítimo. Dentre elas podemos destacar:

(a) a função promocional: por meio do Direito Penal, com certa freqüência o Poder Político tenta promover na sociedade o convencimento de sua relevância para a tutela de determinados bens jurídicos; isso se deu no nosso país, por exemplo, com a Lei Ambiental (Lei 9.605/98), que prevê mais de sessenta tipos penais (a média mundial é de seis tipos penais).

Quando o legislador inclina-se para essa área promocional, acaba confundindo o Direito Penal com o Direito administrativo. Daí surge o fenômeno da administrativização do Direito Penal, isto é, infrações administrativas passam a ocupar o centro do Direito Penal (cf. L. F. Gomes e A. Bianchini, O Direito Penal na era da globalização, São Paulo, RT, 2002).

(b) a função simbólica: que consiste no uso do Direito Penal para acalmar a ira da população em momentos de alta demanda por mais penas, mais cadeias etc. A Lei dos Crimes Hediondos (Lei 8.072/90), no Brasil, é o maior exemplo disso. Sabe-se que o aumento nominal de penas, o agravamento da execução etc. não resolvem o problema da criminalidade constante. Apesar disso, lança-se mão do Direito Penal para cumprir esse papel.

Num primeiro momento ele aplaca a ira popular, porém, depois de certo período, vê-se que o “remédio” não serviu para curar a “doença”. E assim o Direito Penal simbólico se retroalimenta: como o remédio anterior não foi dado na dose suficiente, necessita-se de “mais remédio”. Ocorre que o “remédio” (mais penas, mais cadeias etc.) está errado. Logo, não adianta intensificar suas doses.

O Direito Penal como um todo sempre cumpre funções promocionais e simbólicas. Isso é inerente à força coercitiva da norma penal. O problema, no entanto, não está no fato de que a norma penal tenha função promocional ou simbólica, o mal está em o Poder Político valer-se do Direito Penal para cumprir só ou prioritariamente essas funções, iludindo todos os seus destinatários com promessas irrealizáveis.

36.              É uma prioridade científica, jurídico-constitucional e humanitária, fazer com que o Direito Penal cumpra seu papel legal e jurídico, ou seja, de conter o crime, mas, dentro dos parâmetros constitucionais em vigência. Consoante já dito acima, o artigo 28 da Lei 11.343/2006 já desrespeitou o Princípio da intervenção mínima do Direito Penal, bem como o Princípio da materialização ou exteriorização voluntária do fato.

37.              No caso das drogas, o bem jurídico “incolumidade pública” ou “saúde pública”, apenas é colocado em risco, pela ação das drogas, no caso do tráfico ilícito das mesmas, figura esta, prevista no artigo 33 da Lei 11.343/2006. O simples usuário, que se recolhe em sua intimidade para usufruir dos efeitos nocivos da substância entorpecente de sua preferência, não coloca em risco a saúde pública, mas, tão-somente, a própria saúde. Portanto, a conduta do artigo 28 da Lei 11.343/2006 desrespeita o Princípio da ofensividade do fato. A conduta do usuário de drogas não é apta ou suficiente para colocar em risco a saúde pública.

38.              Pelo Princípio da ofensividade do fato, a conduta, para ser punível, “deve afetar concretamente o bem jurídico protegido pela norma; não há crime sem lesão ou perigo concreto de lesão ao bem jurídico tutelado – nullum crimen sine iniuria” (cf. Luiz Flávio Gomes, obra citada, p. 102). Para ser considerado relevante, para a norma penal, o resultado decorrente da conduta perpetrada pelo agente, esta (conduta) deve, no entendimento do professor Luiz Flávio Gomes (obra citada, p. 102/103), se revestir das seguintes características: (a) resultado real ou concreto; (b) desvalioso (produzido no contexto de um risco proibido relevante); (c) transcendental (afetação de terceiros); (d) grave; (e) intolerável; (f) objetivamente imputável ao risco criado.

39.              Especial atenção deve ser dada ao item “c”, ou seja, o resultado, que, para ser considerado ofensivo e, portanto, relevante para o Direito Penal, deve ser transcendental, ou seja, “afetar terceiros”. E isso não ocorre no caso do usuário de drogas, pois, a única pessoa afetada com sua conduta é ele mesmo. Logo, a conduta do artigo 28 da Lei 11.343/2006 não atende ao Princípio da ofensividade do fato. Portanto, por mais esta razão, ou seja, desrespeito ao Princípio da ofensividade do fato, a conduta do artigo 28 da Lei 11.343/2006 é inconstitucional.

40.              E agora, vem o mais importante dos argumentos relacionados a presente suscitação de inconstitucionalidade: o artigo 28 da Lei 11.343/2006 não pode ser tipificado como crime, porque desrespeita o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, consagrado em nossa Constituição Federal, de 5 de outubro de 1988, no Art. 1º, inciso III, sendo considerado, referido princípio, como FUNDAMENTO de nossa República Federativa.

41.              A dignidade humana plasma o conceito áureo da própria existência do homem. Não há pessoa sem dignidade. Ter dignidade é a pessoa ter o direito de ser aquilo que ela quiser ser. De possuir e de serem reconhecidos certos e determinados direitos fundamentais, como direito à vida, à honra, à liberdade, à propriedade, de ser criada no seio de uma família, de não ser penalizada sem anterior e justo processo, com todas as garantias a ele inerentes e mais uma ampla gama de prerrogativas decorrentes de sua existência. É ter, a pessoa, o direito de fazer o que quiser de si mesma. Inclusive, de usar drogas. Consoante o professor Miguel Reale, citado por Helena Regina Lobo da Costa, em sua obra “A DIGNIDADE HUMANA – TEORIAS DE PREVENÇÃO GERAL POSITIVA”, Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 33, a dignidade humana é “o valor-fonte, ou seja, aquele do qual emergem todos os valores, os quais somente não perdem sua força imperativa e sua eficácia enquanto não se desligarem da raiz de que promanam”. A dignidade humana se finda com a morte da pessoa, que é, na expressão de Miguel Reale, a raiz da qual a mesma promana.  

42.              A dignidade humana confere à pessoa sua singularidade, sua individualidade, ou seja, seu modo de ser e existir no mundo.

43.              Sobre a inconstitucionalidade da criminalização do porte de droga para consumo pessoal, o juiz Amaury Silva, em sua obra “LEI DE DROGAS ANOTADA – ARTIGO POR ARTIGO”, Editora JH Mizuno, 2008, p. 140/141, ao comentar o artigo 28 da Lei 11.343/2006, assim faz constar:

Inconstitucionalidade da criminalização

A questão do uso de drogas, que repercute nos atos antecedentes e descritos como condutas típicas destacadas nesse ponto da lei, tem indissociável componente ideológico, cultural e de entretenimento. O formato da Constituição Federal que em diversas passagens traduz apreço aos Direitos Humanos, proporciona uma reflexão inexorável de que o Direito Penal deve ser construído e aplicado em respeito a essa proposição dos Direitos Humanos. Prova disso é a inscrição da liberdade de expressão, pensamento e inviolabilidade à intimidade e vida privada como cabedal de garantias individuais, previsto no art. 5º, incisos IV, IX e X. Assim o próprio Estado não pode fomentar um Direito Penal que em seu conteúdo irá menosprezar tais garantias, porque de maneira direta e indisfarçável fará tabula rasa das garantias maiores.

A necessidade geminada de se proteger e cuidar da saúde pública, em decorrência dos efeitos perniciosos que as drogas podem acarretar, não autoriza um contraponto às liberdades individuais, através do instrumental mais corrosivo e dramático para o controle social que é o Direito Penal. O equilíbrio entre esses dois segmentos comportaria de maneira satisfatória uma regulação aquém desse ramo do Direito, por intermédio de diretrizes e normas administrativas e sanitárias. Dessa maneira, cremos que a previsão constitucional inibe o legislador ordinário penal de criar tipos que restrinjam aquelas garantias, provocando assim a ruptura na justaposição da ordem normativa, sendo razoável concluir-se pela atipicidade conglobante da conduta que vincula a droga ao próprio consumo. É de se reconhecer, todavia, que tal compreensão sobre o assunto não conta com adesão da jurisprudência ou mesmo de majoritária doutrina.

44.              Como bem apontado pelo ilustre magistrado, outros ramos do Direito poderiam cuidar do usuário de drogas (subsidiariedade). Matéria essa, que seria afeta ao Direito Administrativo e ao Direito Sanitário. Ocorre que, referido regramento já existe no ordenamento jurídico nacional e se traduz na Lei 8.080, de 19 de setembro de 1990, que dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. A Lei 8.080/90 regulamenta os procedimentos a serem adotados pelo SUS – Sistema Único de Saúde, que compõe a Rede Pública de Saúde. Portanto, os usuários de drogas devem ser encaminhados para os hospitais e não para os fóruns. Necessitam de tratamento e não de um processo criminal.

45.              Ademais, o jurista Amaury Silva, obra citada, p. 141, citando a doutrinadora Maria Lúcia Karam, assim faz constar:

Autolesão

Na trajetória do pensamento exposto no tópico acima, as condutas voltadas à autolesão não poderiam ser objeto de incriminação, quando o Direito Penal é concebido em respeito aos Direitos Humanos, com utilitário de ultima ratio, em que aPenas os bens jurídicos de terceiros em consideração ao agente adquirem relevância para tutela penal. Maria Lúcia Karam anota com maestria: “... a aquisição ou posse de drogas para uso pessoal, da mesma forma que a autolesão ou a tentativa de suicídio, situa-se na esfera de privacidade de cada um, não podendo o Direito nela intervir (...), pois o Direito não pode punir o autoprejuízo, não pode intervir em condutas que não saiam da esfera individual, que não tenham potencialidade para afetar terceiros”, in “De Crimes, Penas e Fantasias”, RJ, Luam, o. 128.

46.              O Direito Penal não pode dizer como as pessoas devem ser e o que podem fazer de suas vidas. A individualidade, decorrência do Princípio da dignidade da pessoa humana, compete a cada pessoa.

47.              Portanto, o artigo 28 da Lei 11.343/2006 é inconstitucional, porque viola o Princípio da dignidade da pessoa humana, previsto do inciso III, do art. 1º, da CF/88.

48.               Destarte, como fica cristalinamente demonstrado, deve-se, “in casu”, reconhecer a inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei 11.343/2006, tendo em vista que, o tipo penal previsto em referido dispositivo de lei, fere os mais importantes princípios do Direito Penal, dando-se maior destaque ao Princípio da dignidade da pessoa humana, que estatui e garante, a cada pessoa, sua individualidade, podendo, decorrência deste estado, fazer de sua vida o que quiser e bem entender. Usuários de drogas são pessoas doentes e necessitam de tratamento e não de pena, seja de que espécie for.

49.              Diante do exposto, deve-se reconhecer a inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei 11.343/2006, tendo em vista que o mesmo contraria os mais fundamentais princípios de Direito Penal, bem como por ser, referida conduta, destituída das características necessárias para que um determinado comportamento seja penalmente tipificado. Além disso, a lei posterior, ou seja, a Lei 11.343/2006 deixou de tipificar a conduta do porte de drogas para consumo pessoal, porquanto deixou de prever, em seu regramento (preceito secundário), a aplicação de pena. Tendo havido uma “abolitio criminis”, não mais há que se falar em crime. Não bastassem estes argumentos, o artigo 28 da Lei 11.343/2006 ainda contraria o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, pois, impede a pessoa de se expressar livremente, ou seja, de fazer de sua própria vida aquilo que bem entender.

Sobre o autor
Rodrigo Mendes Delgado

Advogado. Escritor. Palestrante. Parecerista. Pós-Graduado (título de Especialista) em Ciências Criminais pela UNAMA – Universidade do Amazonas/AM. Ex-presidente da Comissão e Ética e Disciplina da 68ª subseção da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção de São Paulo por dois triênios consecutivos. Membro relator do Vigésimo Primeiro Tribunal de Ética e Disciplina da OAB/SP pelo 3º triênio consecutivo. Autor dos livros: O valor do dano moral – como chegar até ele. 3.ed. Leme: Editora JH Mizuno, 2011; Lei de drogas comentada artigo por artigo: porte e tráfico. 3.ed. rev., atual. e ampl. Curitiba: Editora Belton, 2015; Soluções práticas de direito civil comentadas – casos concretos. Leme: Editora Cronus, 2013 (em coautoria com Heloiza Beth Macedo Delgado). Personal (Life) & Professional Coach certificado pela SOCIEDADE BRASILEIRA DE COACHING – SBCOACHING entidade licenciada pela BEHAVIORAL COACHING INSTITUTE e reconhecida pelo INTERNACIONAL COACHING COUNCIL (ICC). Carnegiano pela Dale Carnegie Training Brasil. Trainer Certificado pela DALE CARNEGIE UNIVERSITY, EUA, tendo se submetido às certificações Core Competence e Endorsement, 2014. (Contatos profissionais: Cel./WhatsApp +55 018 9.9103-5120; www.linkedin/in/mdadvocacia; macedoedelgadoadvocacia@gmail.com)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DELGADO, Rodrigo Mendes. A inconstitucionalidade do porte de droga para consumo pessoal. Tese humanista ou principiológica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3455, 16 dez. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23224. Acesso em: 5 nov. 2024.

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