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A inconstitucionalidade do porte de droga para consumo pessoal. Tese humanista ou principiológica

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16/12/2012 às 13:33
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Quanto ao caso acima relatado, instar esclarecer que, originariamente, o processo a que estamos nos referindo, iniciou seu trâmite no Juizado Especial Criminal. Ofertada a Denúncia pelo Ilustre Representante do Ministério Público do Estado de São Paulo, a mesma foi rejeitada pelo Douto Magistrado do Juizado Especial Criminal, que assim formulou seu entendimento, verbis:

Proc. 1054/2009

Vistos.

Dispensado o relatório, nos termos do artigo 38, caput, da Lei nº 9.099/95.

O Ministério Público do Estado de São Paulo ofereceu denúncia em face de A. Q. F. pela prática do delito tipificado no artigo 28 da Lei 11343/06.

Deixo de receber a denúncia.

Com o advento da Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006, não há mais imposição, para a conduta de uso de droga, de pena privativa de liberdade. O artigo 28 da citada Lei não prescreve qualquer pena privativa de liberdade ao usuário de drogas. Em verdade, a questão do consumo de drogas recebeu novo tratamento do legislador, que não mais a encara como caso de polícia, mas como problema de saúde pública.

Se não há imposição de pena privativa de liberdade, sequer prisão simples, a conduta de consumo de drogas não constitui mais infração penal, conforme artigo 1º do Decreto-Lei 3.914, de 9 de dezembro de 1941 (Lei de Introdução do Código Penal), que cuida do gênero infração penal, diferenciando as espécies crime e contravenção, nos seguintes termos:

Art. 1º Considera-se crime a infração penal a que a lei comina pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa; contravenção, a infração penal a que a lei comina, isoladamente, pena de prisão simples ou de multa, ou ambas, alternativa ou cumulativamente.

A Lei de Introdução ao Código Penal não foi revogada pela Lei 11.343/06, até porque com ela não é incompatível. Sem cominação, no preceito secundário do tipo, de pena privativa de liberdade, seja reclusão, detenção, prisão simples ou multa, não há infração penal. O simples fato do legislador inserir o artigo 28 da Lei 11.343/06 no Capítulo III, intitulado Dos crimes e das penas, por si só, não transforma o uso de drogas em infração penal. Não é a terminologia empregada que confere a uma conduta a natureza jurídica de infração penal, mas o tipo de sanção cominada. Em verdade, se o legislador não quis cominar sanção privativa de liberdade ao uso de drogas, significa ser despicienda a intervenção do direito penal, que é e deve continuar sendo a ultima ratio, somente incidindo quando os demais ramos do direito se mostrarem insuficientes para proteger determinado bem jurídico.

Rogério Greco, Procurador de Justiça em Minas Gerais, pertencente à nova geração de juristas de escol que estão despontando no país, ao dissertar sobre a finalidade do Direito Penal, leciona:

Em virtude dessa constante mutação, bens que outrora eram considerados de extrema importância e, por conseguinte, carecedores da especial atenção do Direito Penal, hoje já não merecer ser por ele protegidos.

Assim, já que a finalidade do Direito Penal, como dissemos, é a proteção de bens essenciais à sociedade, quando esta tutela não mais se faz necessária, ele deve afastar-se e permitir que os demais ramos do Direito assumam, sem a sua ajuda, esse encargo de protegê-los. (in Curso de Direito Penal, parte geral, 4ª edição, Rio de Janeiro: Impetus, 2004, p.40).

Seria uma indisfarçável contradição o legislador retirar a aplicação de pena privativa de liberdade à conduta de uso de drogas e, ao mesmo tempo, querer classificá-la como crime. Se não é mais necessária cominação de reclusão, detenção ou, ao menos, prisão simples, qual então a razão da intervenção do direito penal? Nenhuma. Deve-se, respeitando o princípio da intervenção mínima, deixar que os outros ramos do direito tutelem o bem jurídico que se visa proteger, reservando o direito penal para aqueles bens que necessitem de proteção maior do Estado, com previsão de resposta mais drástica, a fim de evitar violação.

O legislador prescreveu, no artigo 28 da Lei 11.343/06, três medidas coercitivas, mas nenhuma delas com caráter de pena criminal, que devem e podem ser aplicadas em processos instaurados perante juízos cíveis, pois constituem sanções administrativas.

Dessa sorte, não sendo mais crime a conduta de uso de drogas, aplicável a norma do artigo 2º do Código Penal, acerca da abolitio criminis, que dispõe sobre a retroatividade da lei mais benéfica, no caso, a Lei 11.343/06.

Concluindo, percebe-se claramente, com o advento da Lei 11.343/06 e sua exposição de motivos, que o legislador retirou todo caráter penal da conduta de porte de droga para uso próprio. Contudo, não escreveu, textualmente, que tal ação deixou de ser crime, devido à impopularidade que tal medida traria a ele, Poder Legislativo. Mas o fato do legislador ter inserido o artigo 28 da referida Lei no capítulo III intitulado “Dos crimes e das penas”, por si só, não é suficiente para alçar a conduta de uso de drogas à natureza jurídica de crime. Como dito alhures, não é a disposição espacial de uma conduta num diploma legislativo que define sua natureza jurídica, mas o tipo de sanção a ela cominada.

Ante o exposto, REJEITO A DENÚNCIA, com base no artigo 395, II, do Código de Processo Penal.

P.R.I.

__________, de __________ de __________.

JUIZ DE DIREITO

Eis o teor da Denúncia, ofertada pelo Ilustre Representante do Ministério Público do Estado de São Paulo, no caso acima relatado, nestes termos:

Excelentíssimo Senhor Juiz de Direito do Juizado Especial Criminal da Comarca de __________

É dos autos do incluso procedimento criminal que no dia 02 de janeiro de 2009, por volta das 14h10, na rua Alex Vieira de Souza, na cidade de __________, nesta comarca, A. Q. F., identificado às fl. 07, trazia consigo, para consumo pessoal, droga sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar.

Apurou-se que no dia do fato, policiais militares estavam em patrulhamento quando avistaram dois indivíduos próximo a um canavial. Ao notarem a aproximação da viatura policial, tais pessoas evadiram-se do local em direções opostas, tendo o denunciado atirado algo no chão.

Em revista pessoal, nada foi encontrado, contudo, próximo dali foi encontrado um invólucro plástico contendo “maconha”, conforme laudo acostado às fl. 22, pertencente ao denunciado.

Isto posto, DENUNCIO a este r. juízo A. Q. F. como incurso no art. 28 da Lei 11.343/06 e requeiro a designação de audiência para propositura da suspensão condicional do processo, ocasião em que deverá submeter-se às condições previstas nos incisos II, III e IV, do § 1º, do art. 89, da Lei 9.099/95.

Acaso não seja aceita a proposta, aguardo processamento na forma do artigo 60 da Lei 9.099/95, ouvindo-se as testemunhas adiante arroladas, até final condenação.

ROL DE TESTEMUNHAS:

1 – __________, fl. __________ (PM); e

2 – __________, fl. __________ (PM).

__________, de __________ de __________.

PROMOTOR DE JUSTIÇA

Irresignado com a decisão que rejeitou a Denúncia, o Ilustre Representante do Ministério Público do Estado de São Paulo recorreu de referida decisão à Turma Recursal, expondo, em suas razões recursais, o quanto segue:

Excelentíssimo Senhor Doutor Juiz de Direito do Juizado Especial Criminal de __________

O membro do Ministério Público do Estado de São Paulo, que esta subscreve, no uso de suas atribuições legais, nos autos do Procedimento Criminal nº ____/__ em face de A. Q. F., vem, respeitosamente, perante Vossa Excelência, não se conformando com a r. sentença, interpor Recurso de Apelação, com fundamento no art. 82 da Lei 9.099/95, apresentando as respectivas razões recursais.

Termos em que,

pede deferimento.

Birigui, 30 de outubro de 2009.

            Promotor de Justiça

Apelante: Ministério Público

Apelado: A. Q. F.

(Razões de Apelação)

E G R É G I O  T R I B U N A L

C O L E N D A  C Â M A R A

D O U T A  P R O M O T O R I A

O réu está sendo processado como incurso no artigo 28 da Lei 11.343/06 porque no dia 02 de janeiro de 2009, por volta das 14h10, na rua Alex Vieira de Souza, na cidade de __________, trazia consigo, para uso próprio, droga sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar.

O magistrado a quo decidiu pela rejeição da denúncia em razão da extinção da punibilidade porque houve abolitio criminis (artigo 107, inciso III, do Código Penal). Argumentou o magistrado que: a) a Lei 11.343/06 não impõe pena privativa de liberdade para o porte ilícito de droga; b) o legislador não trata o caso como caso de polícia, mas, sim, de saúde pública; c) a lei de introdução ao Código Penal considera infração penal a conduta a que a lei penal comine pena privativa de liberdade; d) a Lei de Introdução ao Código Penal não foi revogada pela Lei 11.343/06; e) o Direito Penal deve considerar sendo ultima ratio, somente incidindo quando os demais ramos do direito se mostrarem insuficientes para proteger o bem jurídico; f) em virtude da constante mutação do direito penal, bens que outrora eram considerados de extrema importância, hoje já não merecem ser por ele protegidos; g) seria uma contradição do legislador retirar a aplicação de pena privativa de liberdade ao porte ilícito de droga e, ao mesmo tempo, querer classificá-lo como crime; e h) deve-se deixar que outros ramos do direito tutelem o bem jurídico.

A despeito de respeitáveis, os argumentos não servem ao fim proposto (extinção da punibilidade), uma vez que a interpretação contrária é mais consentânea com a realidade e com as normas que a regulam.

A Lei de Introdução ao Código Penal foi recepcionada pela Constituição Federal de 1988, devendo ser interpretada de forma que não contrarie esta.

Quando trata das disposições penais, o artigo 5º da Constituição dispõe:

XLVI - a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes:

a) privação ou restrição da liberdade;

b) perda de bens;

c) multa;

d) prestação social alternativa;

e) suspensão ou interdição de direitos;

Verifica-se, pois, que a Constituição ampliou a relação de penas previstas pela Lei de Introdução do Código Penal, oferecendo um rol não taxativo.

Sobre o assunto, pede-se vênia para transcrever elucidativo artigo do eminente Jayme Walmer de Freitas, Juiz de Direito em São Paulo, mestre em Processo Penal, professor de Direito Penal e Processo Penal, elaborado em 02.2007 e publicado no sítio jus navegandi:

A questão da descriminalização do crime de porte de entorpecentes e o novo conceito de crime

I – Introdução

 Vem sendo ventilada por alguns setores da doutrina a suposta descriminalização do crime de porte de entorpecentes. Batem-se alguns, essencialmente porque as medidas educativas previstas nos incisos do art. 28 da Lei 11.343/06, imponíveis ao autor do fato não caracterizariam pena. Todo o debate parte da premissa de que a Lei de Introdução ao Código Penal estabelece em seu art. 1º o conceito de crime com a seguinte redação: “Considera-se crime a infração penal a que a lei comina pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa” (g.n.).

 Como a Lei 11.343/06 não comina pena de reclusão ou de detenção ao crime de porte de entorpecentes, teria havido a descriminalização pelo entrechoque das normas penais?

 Opinamos no sentido contrário. Permanece a criminalização do crime, a despeito da singeleza das penas imponíveis.

II – Breve histórico. As infrações de menor potencial ofensivo e as penas alternativas

 Na Exposição de Motivos da Parte Geral do Código Penal (Lei 7.209, de 11/07/1984), encaminhada à Presidência da República, o Ministro Ibrahim Abi-Ackel, em 09 de maio de 1.983, já sinalizava a necessidade de aperfeiçoamento das penas de prisão, substituindo-as, quando aconselhável, por outras modalidades sancionatórias, com poder corretivo eficiente (item 29).

 A reforma de 84 adaptou-se à tendência de aperfeiçoamento das penas privativas de liberdade e criou as penas restritivas de direitos, nas modalidades de prestação de serviços à comunidade, interdição temporária de direitos e limitação de fim de semana.

 A evolução paulatina, mas inexorável, haveria de se suceder, ante a falência do sistema prisional, caracterizado pela superpopulação, ociosidade e promiscuidade dos estabelecimentos carcerários.

 Com a Carta da República, em 1.988, o constituinte ampliou a previsão do Código Penal oferecendo um rol não taxativo de penas. Prevê a Carta Magna em seu inciso XLVI que “a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes: a) privação ou restrição da liberdade; b) perda de bens; c) multa; d) prestação social alternativa; e) suspensão ou interdição de direitos (...)”. Observe-se que a expressão entre outras abre ao legislador infraconstitucional um espectro imenso de modalidades sancionatórias de pequeno grau lesivo à liberdade individual para sustentação do convívio do agente com seu emprego e família e a manutenção dos valores que angariou na vida em sociedade.

 A Carta da República previu, ainda, no art. 98, I, a criação dos Juizados Especiais com competência para a conciliação, julgamento e execução de infrações de menor potencial ofensivo. Tardou, mas em 1.995, veio a lume a Lei 9099/95, cuja finalidade maior era a imposição de pena não privativa de liberdade. Em seu lugar, penas restritivas de direitos e multa. Anote-se que as penas decorrentes de transação penal entre o autor do fato e com o órgão ministerial permitem (art. 76) ao agente beneficiar-se com a pena restritiva ou multa sem prévia sanção com pena privativa de liberdade.

 A Constituição Federal serviu de paradigma para diversas outras leis surgirem com a apenação mitigada, tais como o Código de Defesa do Consumidor, o Código de Trânsito Brasileiro, Lei do Meio Ambiente e o Estatuto do Idoso, a guisa de exemplos. Estes diplomas, contudo, somente permitem a pena substitutiva, em linhas gerais, nos moldes estatuídos pelo diploma penal.

 Não se olvide que foram agregadas ao rol das penas restritivas de direitos, as penas de prestação pecuniária e perda de bens e valores (Lei 9.714/98).

III – A criminalização do porte de entorpecentes

 O art. 28, da Lei 11.343/06 impõe sanção ao usuário ou dependente de entorpecentes. São três modalidades que possuem caráter autônomo, eminentemente educativo e (res)socializador, não repressivo e de inserção social. Anote-se que é vedada a imposição ou substituição por pena privativa de liberdade.

 Denominadas de medidas educativas consistem em:

I – advertência;

II - prestação de serviços à comunidade; e

III - comparecimento a programa ou curso educativo.

 Seu fulcro maior é a conscientização do usuário do mal que a droga lhe causa, buscando sua inserção social e procurando afastá-lo das drogas.

 Assemelhadas às penas restritivas de direitos que sempre tiveram natureza substitutiva no Direito Penal Brasileiro, aqui, contudo, repita-se adquiriram natureza autônoma.

 Tanto considera crime o legislador que o tipo penal vem contido no capítulo III – Dos crimes e das penas que integra o Título III - Das atividades de prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas.

IV – A interpretação evolutiva e o novo conceito de crime

 Os processos de despenalização no mundo globalizado e em nosso país representam um caminho inexorável no que tange aos crimes menos graves. Nesta linha de raciocínio, certamente um conceito emanado na década de 40 exige que seja refundido e adequado à realidade de um novo Século. Assim, numa visão estritamente legalista, conjugando a Lei de Introdução ao Código Penal e a Constituição Federal, pode-se dizer que crime é a infração penal a que a lei comina, dentre outras, pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa (g.n.).

V – Conclusão

 Na medida em que o crime de porte de entorpecentes se insere no capítulo “Dos crimes e das penas” e o conceito de crime, adequado ao novo texto constitucional, concebe qualquer pena, além de reclusão, detenção e multa, o agente que portar entorpecente receberá a punição estatal.

Dessa forma, o fato de a Lei 11.343/06 não impor pena privativa de liberdade para o porte ilícito de droga, não significa que ela tenha descriminalizado a conduta.

Pelo contrário. A Lei 11.343/06 segue a tendência apontada na sentença, uma vez que, a despeito de considerar a conduta relevante atualmente (já que a lei é de 2006) e digna de atenção do Direito Penal, está atenta ao fato de que a prisão do sujeito ativo deste crime não atinge aos “fins da pena”, impondo, pois, sanções diferentes.

A previsão de penas alternativas não desvirtua o princípio de que o Direito Penal deve continuar sendo ultima ratio, somente incidindo quando os demais ramos do direito se mostrarem insuficientes para proteger o bem jurídico, antes, o consagra, visto que, além de ultima ratio, confere a ele inteligência e coerência com os fins de prevenção especial da pena.

Aliás, aquele que primeiramente deve dizer quais bens jurídicos devem ser tutelados pelo Direito Penal é o legislador. Este, no ano de 2006, entendeu que o porte ilícito de entorpecentes é crime. O fato de outros ramos do Direito tutelarem ou não tal questão não é conflitante com a tipificação penal, de tal modo que o problema de saúde pública não indica que a conduta não mereça atenção do Direito Penal.

A contradição apontada no argumento acima referido não existe. Existiria, sim, contradição no fato de o legislador considerar crime a conduta vertente em 2006, com a intenção de descriminalizá-la. É até difícil de entender.

Por fim, deve-se lembrar da regra de hermenêutica que impõe que, entre as interpretações possíveis, deve-se preferir à que dê efetividade à lei. Não foi o que fez o douto magistrado. Ao contrário, entre duas interpretações, preferiu aquela que faz da lei letra morta.

E mais, o entendimento do Magistrado fere a Constituição Federal, eis que se apegou a uma lei infraconstitucional e se olvidou, como já foi frisado, do teor da Lei Maior, que prevê a possibilidade de penas não privativas de liberdade.

Por fim, desde já, prequestiona-se o artigo 5º, XLVI, da Constituição Federal.

Isto posto, e após manifestação do Douto Promotor de Justiça que no feito irá oficiar, aguardo a reforma da r. sentença para que a denúncia seja recebida, tendo certeza Vossas Excelências que estarão trilhando o caminho da mais lídima JUSTIÇA!

__________, de __________ de __________.

             PROMOTOR DE JUSTIÇA

Como se pode perceber, no caso em que atuamos, defendendo a inconstitucionalidade da figura típica do porte de droga para consumo pessoal, mesclamos argumentos tanto da Tese Positivista quanto da Tese Humanista ou Principiológica. No entanto, atualmente, analisando com mais vagar ambos os argumentos (positivista e humanista ou principiológico), defendemos a Tese Humanista ou Principiológica como a mais adequada para a defesa da inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei 11.343/06, pois, consoante inciso XLVI, do art. 5º da CF/88, a pena privativa de liberdade não é mais a única modalidade de pena a ser prevista para sancionar as condutas tipificadas como crime. Eis o teor do inciso XLVI, do art. 5º da CF/88, nestes termos:

XLVI - a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes:

a) privação ou restrição da liberdade;

b) perda de bens;

c) multa;

d) prestação social alternativa;

e) suspensão ou interdição de direitos;

Portanto, ao catalogar penalmente uma conduta, o legislador pode atribuir à mesma, como sanção, tanto a pena privativa de liberdade, quanto a restritiva de direitos, ou ainda, aquela que considerar a mais adequada para a repressão e prevenção da conduta tipificada. Por essa razão, a Tese Positivista perde força e se mostra insuficiente para sustentar a defesa da inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei 11.343/06. A este respeito, eis o posicionamento do jurista Paulo Queiroz[7], nestes termos:

A Constituição em seu artigo 5º, inciso XLVI, previu uma série de penas. Sob a égide constitucional não é necessário existir pena privativa de liberdade para que exista crime. A prisão é somente uma das modalidades de penas permitidas constitucionalmente e a opção de não se cominar prisão não significa a inexistência de crime. (grifos acrescidos)

A pena a ser cominada a uma determinada conduta, classificada como criminosa, deve ser aquela que se mostre mais apta e suficiente, dentro dos critérios da proporcionalidade, da razoabilidade, do princípio da dignidade da pessoa humana e do princípio da humanidade das penas, para reprimir e prevenir a conduta socialmente tida como antijurídica.

Portanto, do ponto de vista sistêmico do ordenamento jurídico-penal não é a modalidade de pena cominada que classifica uma conduta como criminosa ou não, mas, fundamentalmente, o conteúdo de desvalor que a ação ou omissão contém. Afinal, “crime é o que a lei declara como tal, independentemente da espécie de pena que lhe é cominada[8]”. Ademais, complementando referido entendimento, Paulo Queiroz[9] assim faz constar:

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E que a lei tratou, formalmente, o uso de droga como crime, é fora de dúvida. Primeiro, porque o art. 28 faz parte do Capítulo III, que tem como título “dos crimes e das penas”; segundo, porque o conceito legal de crime dado pela Lei de Introdução ao Código Penal (art. 1º) está há muito superado, seja porque a lei especial pode criar conceito diverso de infração penal (como agora o faz), seja porque a Constituição Federal, que lhe é posterior, previu novas espécies de pena (CF, art. 5º, XLVI). Note-se, a propósito, que a aludida lei de introdução (de 1964) foi editada na vigência da Constituição de 1967.

Ademais, em tempos em que se prega a falência da pena privativa de liberdade e sua gradual abolição – v.g., Ferrajoli – não faria muito sentido condicionar a definição de crime à previsão inexorável de tal modalidade de pena. E mais: o que realmente interessa, para a definição legal de crime, não é propriamente a espécie de pena cominada, mas os seus pressupostos legais formais.

Exatamente por isso, se a uma determinada infração fosse cominada pena de morte, exclusivamente, nem por isso deixaria de ser crime; o mesmo ocorreria se, no futuro, foram cominadas às infrações penais somente penas restritivas de direito ou medidas de segurança, com a eventual abolição da pena de prisão.

Além do mais o rol das penas constitucionais não é taxativo, mas meramente exemplificativo, motivo pelo qual o legislador poderá, inclusive, criar outras tantas, desde que compatíveis com a dignidade da pessoa humana e o princípio da humanidade das penas, proibitivo de penas cruéis e degradantes, entre outras (CF, art. 5º, XLVI).

Por conseguinte, ao não cominar pena privativa da liberdade, o art. 28 não implicou abolitio criminis, mas simples despenalização, isto é, manteve a criminalização, mas optou por vedar a pena privativa de liberdade.

Nossa posição. Assim, a conduta tipificada no artigo 28 da Lei 11.343/06 continua sendo crime. Posição que adotamos consoante já dito acima, tendo em vista o fato de que a conduta descrita no artigo 28 da Lei de Drogas estar, topograficamente, inserida no Título III, do Capítulo III de referida lei, que ostenta a rubrica “Dos Crimes e Das Penas” e, além disso, por não ser mais, a pena privativa de liberdade, consoante entendimento constitucionalmente consagrado, a única modalidade de pena a ser cominada, abstratamente, para as condutas penalmente tipificadas. Essa nossa posição. Ademais, outro não foi o posicionamento do Supremo Tribunal Federal que, na Questão de Ordem em Recurso Extraordinário n.º 430.105, através de seu Ilustre Relator, o Ministro Sepúlveda Pertence, assim fez constar:

De outro lado, seria presumir o excepcional se a interpretação da L. 11.343/06 partisse de um pressuposto desapreço do legislador pelo “rigor técnico”, que o teria levado – inadvertidamente – a incluir as infrações relativas ao usuário em um capítulo denominado “Dos Crimes e das Penas” (L. 11.343/06, Título III, Capítulo III, arts. 27/30).

Ainda no RE-QO 430.105, em sua manifestação, o Ilustre Ministro Carlos Ayres Britto, atual Presidente do Supremo Tribunal Federal, assim fez constar, verbis:

O SENHOR MINISTRO CARLOS BRITTO: Senhor Presidente, também penso que esse art. 28 da Lei nº 11.343 é claro no sentido da criminalização da conduta, até coerente com a inserção topográfica da matéria. Afinal, o nome do título é: Dos Crimes e das Penas. E esse art. 28 não só descreve o crime, como comina a pena.

O SENHOR MINISTRO SEPÚLVEDA PERTENCE (PRESIDENTE E RELATOR): Manda observar o processo dos crimes de menor potencial ofensivo.

Deveras, consoante bem observado pelo Ministro Sepúlveda Pertence, outra comprovação de que o artigo 28 capitula conduta classificada como crime, tange ao fato de que a própria Lei 11.343/06, em sua parte procedimental, determina, no § 1º do art. 48 que, o agente de qualquer das condutas previstas no art. 28 desta Lei, salvo se houver concurso com os crimes previstos nos arts. 33 a 37 desta Lei, será processado e julgado na forma dos arts. 60 e seguintes da Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995, que dispõe sobre os Juizados Especiais Criminais”. A Lei 9.099/95, como de conhecimento notório, disciplina os crimes de menor potencial ofensivo. Logo, não fosse a conduta descrita no artigo 28 da Lei de Drogas, conduta classificada como crime (mesmo de menor potencial ofensivo), certamente o legislador não teria determinado a aplicação da Lei dos Juizados Especiais Criminais. Neste sentido, eis o posicionamento do Supremo Tribunal Federal, plasmado no Voto do Relator do RE-QO 430.105, nestes termos:

Soma-se a tudo a previsão, como regra geral, do rito processual estabelecido para os crimes de menor potencial ofensivo, possibilitando até mesmo a proposta de aplicação imediata de pena de que trata o art. 76 da L. 9.099/95 (art. 48, §§ 1º e 5º), bem como a disciplina da prescrição segundo as regras do 107 e seguintes do C. Penal (L. 11.343/06, art. 30).

Ainda pelo entendimento de que as condutas descritas no artigo 28 da Lei 11.343/06 configuram crime, eis as palavras do Ministro Marco Aurélio, em seu Voto, no RE-QO 430.105, nestes termos:

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO: Senhor Presidente, não bastasse a previsão contida no artigo 16 da própria Lei nº 6.368/76, o novo diploma legal, a Lei nº 11.343/06, cogita de pena. Mais do que isso, como ressaltado por Vossa Excelência e frisado também pelo Ministro Carlos Ayres Britto, a disciplina da matéria está em um capítulo revelador dos Crimes e das Penas. E Vossa Excelência esgotou a matéria, apontando ter havido, na espécie, uma substituição da apenação primitiva da Lei nº 6.368/76 pelo que estabelecido no artigo 28 da nova legislação.

Quanto ao tema, deu-se, até mesmo, a derrogação da Lei nº 6.368/76. Para mim, porém, suficiente é a premissa de que não se encontram em diploma algumas palavras inócuas, palavras sem o sentido técnico, além do sentido vernacular.

O SENHOR MINISTRO SEPÚLVEDA PERTENCE (PRESIDENTE E RELATOR): Além de submetido ao processo dos crimes de menor potencial ofensivo.

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO: Não bastasse a prestação de serviços à comunidade, que também é uma pena utilizada na legislação comum.

O SENHOR MINISTRO SEPÚLVEDA PERTECENTE (PRESIDENTE E RELATOR): E uma das penas possíveis previstas no art. 5º, XLVI, da Constituição.

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO: Subscrevo o voto proferido, bem fundamento, e concluo, tal como fez Vossa Excelência, pela incidência da prescrição.

Ademais, o § 2º do art. 48 da presente lei, assim faz constar:

§ 2º  Tratando-se da conduta prevista no art. 28 desta Lei, não se imporá prisão em flagrante, devendo o autor do fato ser imediatamente encaminhado ao juízo competente ou, na falta deste, assumir o compromisso de a ele comparecer, lavrando-se termo circunstanciado e providenciando-se as requisições dos exames e perícias necessários. (grifos acrescidos)

O dispositivo acima citado refere-se à lavratura, no caso da prática de uma das condutas descritas no artigo 28 da presente lei, de Termo Circunstanciado (TC) que, como de conhecimento geral, somente é lavrado para crimes de menor potencial ofensivo. Destarte, torna-se incontestável que se trata, o artigo 28 da Lei 11.343/06, de conduta classificada como crime.

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Sobre o autor
Rodrigo Mendes Delgado

Advogado. Escritor. Palestrante. Parecerista. Pós-Graduado (título de Especialista) em Ciências Criminais pela UNAMA – Universidade do Amazonas/AM. Ex-presidente da Comissão e Ética e Disciplina da 68ª subseção da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção de São Paulo por dois triênios consecutivos. Membro relator do Vigésimo Primeiro Tribunal de Ética e Disciplina da OAB/SP pelo 3º triênio consecutivo. Autor dos livros: O valor do dano moral – como chegar até ele. 3.ed. Leme: Editora JH Mizuno, 2011; Lei de drogas comentada artigo por artigo: porte e tráfico. 3.ed. rev., atual. e ampl. Curitiba: Editora Belton, 2015; Soluções práticas de direito civil comentadas – casos concretos. Leme: Editora Cronus, 2013 (em coautoria com Heloiza Beth Macedo Delgado). Personal (Life) & Professional Coach certificado pela SOCIEDADE BRASILEIRA DE COACHING – SBCOACHING entidade licenciada pela BEHAVIORAL COACHING INSTITUTE e reconhecida pelo INTERNACIONAL COACHING COUNCIL (ICC). Carnegiano pela Dale Carnegie Training Brasil. Trainer Certificado pela DALE CARNEGIE UNIVERSITY, EUA, tendo se submetido às certificações Core Competence e Endorsement, 2014. (Contatos profissionais: Cel./WhatsApp +55 018 9.9103-5120; www.linkedin/in/mdadvocacia; [email protected])

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DELGADO, Rodrigo Mendes. A inconstitucionalidade do porte de droga para consumo pessoal. Tese humanista ou principiológica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3455, 16 dez. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23224. Acesso em: 4 mai. 2024.

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