3) Descriminalização ou despenalização?
Neste ponto, tendo em vista tudo quanto acima alegado, surge a indagação a respeito de se a Lei 11.343/06 produziu, quanto à conduta de portar droga para consumo pessoal, uma descriminalização ou uma despenalização, discussão esta, decorrente do fato de que a lei só previu, para as condutas descritas no artigo 28, penas restritivas de direitos, vedando a aplicação de pena privativa de liberdade.
Primeiramente, cumpre distinguir os dois vocábulos, buscando a acepção jurídica dos mesmos. Para tanto, nos valeremos da distinção feita por Paulo Queiroz[10] que, quanto à diferença dos dois termos, assim faz constar, verbis:
Descriminalizar é abolir a criminalização (tipificação), tornando a ação jurídico-penalmente irrelevante; já a despenalização – expressão um tanto imprópria – é a substituição (legislativa ou judicial) da pena de prisão por penas de outra natureza (restritiva de direito etc.). Portanto, se com a descriminalização o fato deixa de ser infração penal (crime ou contravenção); com a despenalização a conduta permanece criminosa.
Consoante já demonstrado acima, não produziu a Lei 11.343/06 uma descriminalização, quanto às condutas descritas em seu artigo 28. O que houve foi uma despenalização, entendida apenas como a vedação, trazida pela Lei de Drogas, da aplicação de pena privativa de liberdade para o usuário de drogas. O termo, como bem colocado pelo jurista Paulo Queiroz é imprópria, afinal, inquestionavelmente, o usuário de drogas está sujeito a uma das penas restritivas de direitos descritas no artigo 28 da Lei 11.343/06. No entanto, para fins de compreensão do novo tratamento que a Lei de Drogas proporcionou ao usuário de substâncias entorpecentes, deve-se ficar com o entendimento de que referido diploma legal produziu, quanto às condutas que descreve em seu artigo 28, uma despenalização, no sentido de vedar a aplicação, ao dependente químico ou usuário, de pena privativa de liberdade.
O Supremo Tribunal Federal, no RE-QO 430.105, adota o entendimento, plasmado no Voto do Ministro Supúlveda Pertence, Relator de referido Recurso Extraordinário, de que, de fato, o que houve por meio da Lei 11.343/06 foi uma despenalização quanto às condutas descritas no art. 28 da Lei 11.343/06. Eis o entendimento do Ministro Sepúlveda Pertence, à época da relatoria do precitado recurso, nestes termos:
Assim, malgrado os termos da lei não sejam inequívocos – o que justifica a polêmica instaurada desde a sua edição -, não vejo como reconhecer que os fatos antes disciplinados no art. 16 da L. 6.368/76 deixaram de ser crimes.
O que houve, repita-se, foi uma despenalização, cujo traço marcante foi o rompimento – antes existente apenas com relação às pessoas jurídicas e, ainda assim, por uma impossibilidade material de execução (CF/88, art. 225, § 3º; e L. 9.605/98, arts. 3º; 21/24) – da tradição da imposição de penas privativas de liberdade como sanção principal ou substitutiva de toda infração penal.
Esse o quadro, resolvo a questão de ordem no sentido de que a L. 11.343/06 não implicou abolitio criminis (C. Penal, art. 107, III).
No mesmo RE-QO 430.105, em suas ponderações, o culto Ministro Carlos Ayres Britto, fez as seguintes ponderações, quanto à questão ora versada, verbis:
O SENHOR MINISTRO CARLOS BRITTO: E quanto à distinção entre descriminalização e despenalização está perfeita, porque Vossa Excelência reduz a despenalização, dá um sentido restrito, apenas para afastar aquelas penas restritivas de liberdade.
O SENHOR MINISTRO SEPÚLVEDA PERTECENTE (PRESIDENTE E RELATOR): É o que se tem usado como forma de redução da pena privativa de liberdade à ultima ratio do sistema. Isso é o que a doutrina tem chamado, impropriamente embora, de “despenalização”.
O SENHOR MINISTRO CARLOS BRITTO: No mais, esse voto de Vossa Excelência é verdadeiramente antológico, brilhante, de uma densidade de raciocínio a toda prova.
Portanto, a mais Alta Corte de Justiça do país, esposa o entendimento, consoante amplamente descrito acima, de que não houve, com o advento da Lei 11.343/06, a descriminalização da conduta de porte de droga para consumo pessoal, mas sim uma despenalização, no sentido de que, para as condutas descritas no artigo 28 da Lei de Drogas, ser vedada a aplicação de pena privativa de liberdade. Diante disso, o julgamento do RE-QO 430.105 do STF ficou assim ementado, verbis:
QUEST. ORD. EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO 430.105-9 RIO DE JANEIRO
RELATOR: MIN. SEPÚLVEDA PERTENCE
RECORRENTE(S): MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
RECORRIDO(A/S): JUÍZO DE DIREITO DO X JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL DA COMARCA DO RIO DE JANEIRO
RECORRIDO(A/S): JUÍZO DE DIREITO DA 29ª VARA CRIMINAL DO RIO DE JANEIRO
INTERESSADO(A/S): MARCELO AZEVEDO DA SILVA
EMENTA: I. Posse de droga para consumo pessoal: (art. 28 da L. 11.343/06 - nova lei de drogas): natureza jurídica de crime.
1. O art. 1º da LICP - que se limita a estabelecer um critério que permite distinguir quando se está diante de um crime ou de uma contravenção - não obsta a que lei ordinária superveniente adote outros critérios gerais de distinção, ou estabeleça para determinado crime - como o fez o art. 28 da L. 11.343/06 - pena diversa da privação ou restrição da liberdade, a qual constitui somente uma das opções constitucionais passíveis de adoção pela lei incriminadora (CF/88, art. 5º, XLVI e XLVII).
2. Não se pode, na interpretação da L. 11.343/06, partir de um pressuposto desapreço do legislador pelo "rigor técnico", que o teria levado inadvertidamente a incluir as infrações relativas ao usuário de drogas em um capítulo denominado "Dos Crimes e das Penas", só a ele referentes. (L. 11.343/06, Título III, Capítulo III, arts. 27/30).
3. Ao uso da expressão "reincidência", também não se pode emprestar um sentido "popular", especialmente porque, em linha de princípio, somente disposição expressa em contrário na L. 11.343/06 afastaria a regra geral do C. Penal (C.Penal, art. 12).
4. Soma-se a tudo a previsão, como regra geral, ao processo de infrações atribuídas ao usuário de drogas, do rito estabelecido para os crimes de menor potencial ofensivo, possibilitando até mesmo a proposta de aplicação imediata da pena de que trata o art. 76 da L. 9.099/95 (art. 48, §§ 1º e 5º), bem como a disciplina da prescrição segundo as regras do art. 107 e seguintes do C. Penal (L. 11.343, art. 30).
6. Ocorrência, pois, de "despenalização", entendida como exclusão, para o tipo, das penas privativas de liberdade.
7. Questão de ordem resolvida no sentido de que a L. 11.343/06 não implicou abolitio criminis (C.Penal, art. 107).
II. Prescrição: consumação, à vista do art. 30 da L. 11.343/06, pelo decurso de mais de 2 anos dos fatos, sem qualquer causa interruptiva.
III. Recurso extraordinário julgado prejudicado.
A C Ó R D Ã O
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, sob a Presidência do Sr. Ministro Sepúlveda Pertence, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por unanimidade de votos, em, resolvendo questão de ordem, julgar prejudicado o recurso extraordinário.
Brasília, 13 de fevereiro de 2007.
SEPÚLVEDA PERTENCE - RELATOR
Foi com base em referido entendimento do Supremo Tribunal Federal que, no caso concreto por nós analisado acima, o Ministério Público do Estado de São Paulo teve provido seu Recurso de Apelação pelo Colégio Recursal ao qual recorreu. O Colégio Recursal assim decidiu, verbis:
COLÉGIO RECURSAL DA COMARCA DE ARAÇATUBA
RECURSO n.º ____/__ (ref. proc. n.º __________ - n.º de ordem: ____/__ - Juizado Especial Cível e Criminal da Comarca de __________ - SP)
Recorrente(s): JUSTIÇA PÚBLICA
Recorrido(a)(s): A. Q. F.
Decisão de fls. 122/124:
VISTOS.
Trata-se de recurso tirado contra a r. decisão de fls. 70/74, que rejeitou a denúncia, por entender atípica a conduta abstratamente preceituada no art. 28 da Lei nº. 11.343/06.
O Ministério Púbico, não se conformando, interpôs apelação a fls. 76/80, alegando, em síntese, a tipicidade da conduta.
O recurso foi contra-arrazoado a fls. 88/118.
É o relatório.
O recurso merece acolhida.
Respeitado o entendimento da decisão atacada, não houve descriminalização da conduta prevista no art. 28 da Lei nº. 11.343/06. A matéria, aliás, já foi apreciada pelo Egrégio Supremo Tribunal Federal, cuja ementa é a seguir transcrita, adotada nas razões de decidir, em que exaurida a matéria:
RE-QO430105 / RJ RIO DE JANEIRO QUESTÃO DE ORDEM NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO
Relator(a): Min. SEPÚLVEDA PERTENCE
Julgamento: 13/02/2007
Órgão Julgador: Primeira Turma
Publicação DJe-004 DIVULG 26-04-2007 PUBLIC 27-04-2007 DJ 27-04-2007 PP-00069 EMENT VOL-02273-04 PP-00729 RB v. 19, n. 523, 2007, p. 17-21 RT v. 96, n. 863, 2007, p. 516- 523
Parte(s)
RECTE.(S): MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
RECDO.(A/S): JUÍZO DE DIREITO DO X JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL DA COMARCA DO RIO DE JANEIRO
RECDO.(A/S): JUÍZO DE DIREITO DA 29ª VARA CRIMINAL DO RIO DE JANEIRO
INTDO.(A/S): MARCELO AZEVEDO DA SILVA
Ementa
EMENTA: I. Posse de droga para consumo pessoal: (art. 28 da L. 11.343/06 - nova lei de drogas): natureza jurídica de crime.
1. O art. 1º da LICP - que se limita a estabelecer um critério que permite distinguir quando se está diante de um crime ou de uma contravenção - não obsta a que lei ordinária superveniente adote outros critérios gerais de distinção, ou estabeleça para determinado crime - como o fez o art. 28 da L. 11.343/06 - pena diversa da privação ou restrição da liberdade, a qual constitui somente uma das opções constitucionais passíveis de adoção pela lei incriminadora (CF/88, art. 5º, XLVI e XLVII).
2. Não se pode, na interpretação da L. 11.343/06, partir de um pressuposto desapreço do legislador pelo "rigor técnico", que o teria levado inadvertidamente a incluir as infrações relativas ao usuário de drogas em um capítulo denominado "Dos Crimes e das Penas", só a ele referentes. (L. 11.343/06, Título III, Capítulo III, arts. 27/30).
3. Ao uso da expressão "reincidência", também não se pode emprestar um sentido "popular", especialmente porque, em linha de princípio, somente disposição expressa em contrário na L. 11.343/06 afastaria a regra geral do C. Penal (C.Penal, art. 12).
4. Soma-se a tudo a previsão, como regra geral, ao processo de infrações atribuídas ao usuário de drogas, do rito estabelecido para os crimes de menor potencial ofensivo, possibilitando até mesmo a proposta de aplicação imediata da pena de que trata o art. 76 da L. 9.099/95 (art. 48, §§ 1º e 5º), bem como a disciplina da prescrição segundo as regras do art. 107 e seguintes do C. Penal (L. 11.343, art. 30).
6. Ocorrência, pois, de "despenalização", entendida como exclusão, para o tipo, das penas privativas de liberdade.
7. Questão de ordem resolvida no sentido de que a L. 11.343/06 não implicou abolitio criminis (C.Penal, art. 107).
II. Prescrição: consumação, à vista do art. 30 da L. 11.343/06, pelo decurso de mais de 2 anos dos fatos, sem qualquer causa interruptiva.
III. Recurso extraordinário julgado prejudicado.
Decisão
A Turma, resolvendo questão de ordem, julgou prejudicado o recurso extraordinário. Unânime. Não participou, justificadamente, deste julgamento, a Ministra Cármen Lúcia. 1ª. Turma, 13.02.2007.
Cuida-se, ademais, de entendimento já pacificado neste Colégio Recursal Enunciado Criminal nº. 07. Desse modo, com fundamento no art. 557, §1º.-A, do Código de Processo Civil, c.c. o art. 3º. do Código de Processo Penal, estando a decisão em manifesto confronto com Jurisprudência dominante do E. Supremo Tribunal Federal e deste Colégio Recursal, DOU PROVIMENTO ao recurso para afastar a rejeição da denúncia, com prosseguimento da ação penal.
Publique-se.
Dessarte, diante de todo o exposto, a única conclusão possível, com todo respeito aos doutrinadores que esposam entendimento em sentido contrário, é o de que a Lei 11.343/06 não descriminalizou o porte (ou posse) de droga para consumo pessoal, mas apenas produziu uma despenalização, no sentido de vedar a aplicação de pena privativa de liberdade àquele que praticar uma das condutas descritas em seu artigo 28.
Nossa opinião quanto à natureza jurídica do artigo 28 da Lei de Drogas: Assim, nossa opinião, devidamente subsidiada nos grandes doutrinadores e no entendimento jurisprudencial dominante, inclusive, no Supremo Tribunal Federal, a mais Alta Corte de Justiça do país, é a de que natureza jurídica do artigo 28 da Lei 11.343/06, ou seja, o porte de droga para consumo pessoal, continua sendo crime para todos os efeitos e consequências penais. O que houve foi apenas uma despenalização, consistente a mesma na vedação da aplicação da pena privativa de liberdade ao usuário ou dependente de drogas. Portanto, o usuário e o dependente de drogas continuam, dentro do ordenamento jurídico-penal brasileiro, sendo vistos e classificados como criminosos. Com o que não concordamos. Embora reconheçamos a natureza jurídico-penal de crime ao porte de droga para consumo pessoal (e, portanto, do artigo 28 da Lei 11.343/06), o fazemos apenas por questão científica, ou seja, de análise do dispositivo (art. 28) dentro do ordenamento jurídico-penal pátrio. Reconhecemos, porém, não concordamos com a tipificação das condutas que impliquem no porte de droga para consumo pessoal. E fundamentamos nossa discordância no fato de que o usuário ou dependente de drogas é uma pessoa doente e não um criminoso ou tóxico-deliquente.