5. ESCLARECIMENTOS SOBRE O JULGAMENTO MS 24584 PELO STF. AUSÊNCIA DE MUTAÇÃO JURISPRUDENCIAL.
Anteriormente transcrevemos na íntegra a ementa de dois julgamentos de Mandados de Segurança apreciados no âmbito do Supremo Tribunal Federal que tratam da eventual possibilidade de responsabilização do procurador que emite parecer jurídico, conforme a disposição trazida pela lei de licitações. O primeiro, MS 24073, julgado em 06/11/2002 e publicado no DOU em 31/10/2003, e o segundo MS 24584, julgado em 09/08/2007 e publicado dia 20/06/2008.
À primeira vista, em uma análise superficial, pode parecer que o segundo julgamento, mais recente, teria significado uma mudança de entendimento da Suprema Corte, posto que passaria a indicar que o parecer emitido com base no artigo 38 da Lei 8666/93 não se limitaria a simples opinião jurídica, pois exigiria a aprovação pelo órgão jurídico, ao contrário do que explanava o primeiro julgado, que pregava a natureza consultiva do parecer, ressalvando apenas a situações em que existente dolo ou erro grave do profissional.
Não é o que aconteceu. No julgamento do MS 24584, em que pese ter sido defendida a tese de afastamento da natureza opinativa do parecer, consubstanciada, em especial, no posicionamento trazido pelo Ministro Joaquim Barbosa, tratava referido mandamus de situação peculiar, qual seja a determinação dos procuradores-impetrantes para que fossem ouvidos e apresentassem razões de justificativa perante o Tribunal de Contas da União, conforme constou no relatório da ação mandamental. Foi este, sem dúvida, o âmago da questão: a obrigatoriedade ou não do comparecimento dos impetrantes perante aquela Corte de Contas.
No voto do Relator, Min. Marco Aurélio, ficou claro tal fato, como se pode observar nos seguintes trechos:
“Sim, descabe a adoção de postura que acabe por enfraquecer o Tribunal de Contas da União.”
(...)
“Antecipadamente, não podem gozar da proteção mandamental da impetração para eximirem-se dos riscos da investigação administrativa.”
(...)
“Aguardem os levantamentos a serem feitos pelo Tribunal de Contas da União e aí, se for o caso, acionem o Judiciário, a fim de afastar glosas inapropriadas”
Também o eminente Ministro Joaquim Barbosa, em seu voto-vista, rechaçando qualquer tentativa de análise de responsabilidade pelo STF naquele caso, assim entendeu:
“Noto que não cabe, no presente julgamento, avaliar a existência ou inexistência de responsabilidade dos impetrantes, em razão da circunstância de que nem o TCU procedeu a juízo dessa natureza. O que fez o TCU foi apontar possível responsabilidade, solicitando esclarecimentos aos impetrantes”
Iniciando divergência no julgamento, tecendo importantes considerações sobre a condição na qual os pareceristas-impetrantes foram chamados perante o Tribunal de Contas, qual seja a de responsáveis pelo ato irregular, passando a impressão de estarem verdadeiramente na condição de réus, o Ministro Gilmar Mendes, explanou com acerto que:
“Não estou a afirmar que esses mesmos procuradores não possam ser ouvidos em procedimento administrativo, a fim de esclarecer eventuais dúvidas sobre a prática de determinado ato administrativo.
No entanto, diferente é a situação quando se tem a notificação para, nos termos do artigo 43, II, da Lei nº 8443, de 17.07.92 – Lei Orgânica do Tribunal de Contas da União – apresentarem justificativas, no prazo de 15 (quinze) dias, como responsáveis, em relação a atos considerados irregulares pelo Tribunal de Contas da União, atos estes que extrapolam a consultoria jurídica”
Realmente, há grande diferença entre ser ouvido para prestar esclarecimentos na condição de consultor jurídico de um ente público da condição de responsável por atos irregulares. Certamente que tal situação mereceria a correção necessária tanto a nível legislativo como nos próprios procedimentos do Tribunal de Contas.
No mais, em que pese o resultado do julgamento já estar praticamente sedimentado, interessante anotar aqui a confirmação do voto do eminente Ministro Eros Grau. Ao se posicionar favorável a divergência apontada pelo Ministro Gilmar Mendes, demonstrou extrema preocupação com a redação do acórdão a ser confeccionada, que deveria demonstrar a peculiaridade do caso examinado, a fim de não ser tido como paradigma de responsabilização do procurador. Observe-se:
“Sra. Presidente, reafirmo meu voto e manifesto minha preocupação não com o resultado, que já está definido, mas com a redação que será adotada no acórdão.
Temo que a afirmação pura e simples da responsabilização do procurador que oficia na Administração vá produzir algumas dificuldades nas atividades regulares da Administração. Haverá um cuidado muito grande da parte do profissional, uma espécie de temor.
(...)
No caso dos procuradores, apenas menciono a preocupação de como será comunicada essa decisão. Que fique muito claro que se trata de um caso especial etc.”
Assim sendo, procedendo-se uma análise minuciosa do julgado em questão, ousamos discordar de parcela da doutrina que, a exemplo de Joel de Menezes Niebuhr[14], defende o entendimento de que ocorreu uma revisão do posicionamento da Suprema Corte, permitindo-se a eventual responsabilização do assessor jurídico em casos similares. Com a devida vênia, tal fato não ocorreu. Houve, apenas, a análise de uma situação peculiar, qual seja, a legitimidade da recusa ou não do parecerista em comparecer perante o Tribunal de Contas, a fim de prestar esclarecimentos. Em que pese ter sido sustentada a ideia de que o parecer jurídico não seria ato de mera opinião, a redação final do acórdão deixou claro que o ponto nevrálgico da questão dizia respeito apenas aquele fato, como se observa no seguinte trecho da ementa: “(...) descabe a recusa à convocação do Tribunal de Contas da União para serem prestados esclarecimentos.”
Desta feita, sustentamos que o entendimento veiculado no MS 24073 ainda permanece aplicável atualmente, posto que adentrou nas minúcias das hipóteses de responsabilização do parecerista, não podendo o julgamento do MS 24584 ser invocado como marco modificativo no entendimento do Supremo Tribunal Federal.
6.CONCLUSÃO
O presente estudo, calcado na disposição constante do parágrafo único do artigo 38 da Lei 8666/1993 procurou esmiuçar o alcance deste dispositivo bem como as consequências de sua aplicação prática na tormentosa questão da responsabilização do consultor jurídico na elaboração de parecer em procedimentos licitatórios.
Por nosso estudo concluímos que dada a imposição legal para a apreciação jurídica dos atos, tal qual solicitado, nenhum procedimento licitatório deveria ser realizado sem a prévia análise do profissional competente para tanto, lembrando que quando se está diante de situações que admitem a contratação direta sem licitação, mesmo na falta de aparente obrigatoriedade, tal passagem assume notória importância.
Somado a isto, constatamos que a existência de teorias diametralmente opostas sobre a natureza jurídica do parecer jurídico que pode acarretar em diferentes hipóteses de responsabilização de seu emissor. Pretendemos demonstrar a insubsistência da adoção da natureza vinculativa do parecer, posto que poderia acarretar em hipótese absurda de afastamento da responsabilidade do administrador público. Por outro lado, a adoção da natureza opinativa ao parecer seria a medida mais salutar, posto que o parecer não seria mais do que um ato integrador do procedimento, não podendo ser considerado um ato administrativo isolado, somando-se a isto, ainda, a reafirmação da existência da independência funcional e liberdade de interpretação do operador do direito chamado a se manifestar, característica essencial da advocacia consultiva.
Citamos, ainda, que no âmbito sancionatório, o entendimento majoritário caminha no sentido de não se punir o operador do direito que labora nesta seara, fornecendo subsídios à Administração Pública, evidenciando sua imunidade profissional, indene, é claro de dolo ou culpa grave, sob pena de lhe atribuir a conduta de verdadeiro criminoso na arte interpretativa, fato este que não é e nem pode ser punível no nosso ordenamento.
Ademais, ao analisar o julgamento do MS 24584, pelo STF, procuramos demonstrar que não houve mudança de entendimento neste mais recente julgamento, frente à especificidade da situação combatida, mantendo-se ainda aplicáveis as razões de decidir encampadas no MS 24073, que dão conta da não responsabilização do parecerista, em face da natureza meramente consultiva de seu mister, e ressalvados, por óbvio, os casos de erro grave inescusável ou dolo.
Neste diapasão, entendemos que a figura do parecerista não pode ser confundida com a do gestor público, assumindo eventual responsabilidade decorrente do poder decisório deste último. É certo que os operadores do direito baseiam-se, via de regra, apenas na verossimilhança dos documentos e informações textuais que compõem o procedimento, sendo que este é composto de vários elementos técnicos, projetos, cálculos, que são prévios à análise jurídica e elaborados por diversos órgãos e servidores distintos. Ora, sendo a decisão unicamente do gestor, também por isso que lhe é dada a prerrogativa de nomear servidores para cargos em comissão, nos mais diversos órgãos que compõem o ente público, incluindo-se aí secretários e ministros no mais alto escalão. Sendo funcionários nomeados de sua confiança, o gestor é o responsável pela correta atuação destes funcionários e por todos os atos realizados. O político eleito como chefe do executivo deve ser o fiscal último de todo o procedimento, possuindo o dever de anulá-lo quando evidenciar qualquer ilegalidade ou mesmo outro equívoco que possa macular o procedimento, mesmo que isto tenha passado despercebido pelo advogado chamado a opinar.
Entender de modo diverso seria também colocar em descrédito os demais profissionais que executaram seus trabalhos até então, pois atribuiria, em última instância ao advogado a responsabilidade do acerto ou desacerto de projetos técnicos; a conveniência dos preços de mercado orçados pelo ente público para evitar superfaturamentos; ou mesmo o receio de chancelar procedimentos em que existam cálculos, vistorias e perícias realizadas por profissionais das ciências exatas, como os realizados por engenheiros, arquitetos e contadores, dentre outras situações absurdas que seriam totalmente estranhas a sua formação acadêmica e ao seu dever de fiscalizar e pugnar apenas pela aplicação apenas da lei e do seu entendimento possível.
Contudo, é de se ressaltar que o operador do direito que milita junto a Administração Pública possui extremo dever de zelo, não apenas inerente a atividade jurídica, mas também na qualidade de servidor público. O profissional jurídico que cede as pressões do administrador de momento ou que apenas atua de forma negligente, sem analisar detidamente os documentos que lhe são apresentados sequer merece exercer a advocacia pública. E é aqui que a independência funcional deste operador assume a importância devida, tal como constou nos diversos julgados citados neste trabalho. Independência esta que será melhor alcançada, certamente, quando a consultoria jurídica for exercida exclusivamente por servidores efetivos, selecionados via concurso de ingresso e devidamente organizados em carreira própria. A existência de consultores jurídicos nomeados de forma comissionada, ao sabor político do detentor de mandato eletivo temporário, torna-os alvo fácil para que sofram algum tipo de coação, dada a precariedade de seu cargo, o que certamente acarretaria na mitigação ou mesmo no afastamento de sua liberdade de convicção e independência laboral.
Assim sendo, não se pode admitir a responsabilização pura e simples do operador do direito pela emissão de seus pareceres em obediência a lei de licitações, mesmo que de forma solidária com o gestor, pois se estaria desvirtuando a real natureza opinativa da advocacia consultiva bem como subtraindo daquele profissional sua liberdade de convicção na interpretação da lei perante situações fáticas diversas, responsabilizando-o indevidamente por atos decisórios que são da alçada do gestor público em seu dever de bem administrar. Certamente que a existência do verbo ‘aprovar’ no artigo já citado deve merecer interpretação que seja condizente com a natureza e os limites de uma advocacia consultiva, livre em sua atuação, mas balizada nos ditames legais, éticos e morais que devem nortear toda a Administração Pública.
BIBLIOGRAFIA:
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Notas
[1] GUIMARÃES, Edgar. Controle das licitações públicas. São Paulo: Dialética, 2002. p. 66.
[2] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 15ª.Ed. São Paulo: Dialética, 2012. p. 595.
[3] FERNANDES, Jorge Ulisses Jacoby. Sistema de registro de preços e pregão presencial e eletrônico. 2ª Ed. Rev. e Ampl.. 4ª tiragem. Belo Horizonte: Fórum, 2007, p. 592
[4] JUSTEN FILHO, Marçal. Pregão: (comentários à legislação do pregão comum e eletrônico).5ª Ed. Rev. e Atual., São Paulo: Dialética, 2009. p. 107.
[5] Op. Cit. p. 593.
[6] FERNANDES, Jorge Ulysses Jacoby. Contratação direta sem licitação: dispensa de licitação. 7ª Ed. Belo Horizonte: Fórum, 2007, p. 640
[7] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 28ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 189
[8] Art. 49. A autoridade competente para a aprovação do procedimento somente poderá revogar a licitação por razões de interesse público decorrente de fato superveniente devidamente comprovado, pertinente e suficiente para justificar tal conduta, devendo anulá-la por ilegalidade, de ofício ou por provocação de terceiros, mediante parecer escrito e devidamente fundamentado.
[9] NIEBUHR, Joel de Menezes. Licitação Pública e Contrato Administrativo. 2ª Ed. Rev. Atual. E Ampl. Belo Horizonte: Fórum, 2011, p. 289.
[10] BITTENCOURT, Sidney. Licitação Passo a Passo. 4ª Ed. Atual. Rev. e Ampl. Rio de Janeiro: Temas & Ideias, 2002, p. 199-200.
[11] Op. Cit., p. 601.
[12] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Temas polêmicos sobre licitação e contratos. 4. ed. rev. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 890.
[13] Op. Cit. p. 289/291.
[14] Op. Cit., p. 290.