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A consciência do juiz na tomada de decisões e o problema da autocensura

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Agenda 21/06/2013 às 10:29

5. A Consciência do juiz na tomada de decisões

É o artigo 4.º do EMJ que introduz o conceito de “consciência” do juiz na tomada de decisões. Segundo este dispositivo os juízes julgam apenas de acordo com a Constituição, a lei e a consciência. 

Mas, o que será “consciência”?

Dentre as definições do Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora, por consciência temos que se trata de “atributo pelo qual o homem pode conhecer e julgar sua própria realidade”; bem como “faculdade de estabelecer julgamentos morais dos actos realizados”; ou ainda “senso de responsabilidade”.

Mia Couto escreve figurativamente que “cada homem é uma raça”, procurando mostrar que cada indivíduo encerra em si mesmo uma humanidade plena. Cada indivíduo é assim regido por princípios éticos e morais que lhe habilitam a distinguir no seu percurso de vida o “certo” do “errado”. Esta asseveração decorre da capacidade individual de fazer juízos de valor, primeiro sobre os próprios actos, depois sobre os dos outros.

 A consciência do homem não contempla apenas valores positivos. É nela também que se encontram seus preconceitos, traumas, crenças, etc. Podemos nos deparar com decisões preconceituosas envolvendo simpatias ou antipatias por certas causas ou sujeitos. Preconceitos em relação aos homossexuais. Inclinação pró ou contra aborto. Factores como a religião do intérprete também poderão servir de base para julgar pessoas.

Esta asserção serve perfeitamente para o juiz, até por força do imperativo legal.

Para o direito, consciência aparece como um conceito determinado e determinável. É determinado porque o seu conteúdo tem um âmbito definido, quer no que tange às regras sociais vigentes e educacionais propriamente ditas, quer no que tange a normas assentes e dispersas pelo ordenamento jurídico nacional e internacional. É determinável porque o seu conteúdo encontra fundamento no contexto humano, histórico, cultural e social em cada momento da sua efectiva avaliação.

A liberdade de consciência consiste assim na faculdade de escolher os próprios padrões de valoração ético-moral da conduta própria ou alheia.

Seja como for, a consciência do juiz não pode deixar, e hoje mais do que nunca, de ser encarada na dupla perspectiva – qualquer delas envolvendo também uma dupla valoração dinâmica -, quer na perspectiva do juiz enquanto tal, quer na perspectiva do juiz enquanto pessoa e cidadão, quer ainda das garantias em que assenta a sua função.

Há uma certa qualidade pessoal que deve ser cultivada por todo o juiz na qual se inculca a consciência do seu papel de guardião e implementador de mensagens normativas constitucionais, de intérprete de todo um corpo de normas legais imbuído de valores e que tem feição dirigente e de garante da Justiça.

Não quer tal desiderato exprimir que o juízo dado ex sua conscientia pelo juiz reduz à subjectividade o pronunciamento judicial. A consciência não é uma fonte autónoma e exclusiva de que o juiz se serve para decidir o que é bom e o que é mau. Está inscrito nela, de modo profundo, um princípio de obediência em relação a normas objectivas, que fundam e condicionam quaisquer decisões em atenção aos mandamentos e as proibições que estão na base do comportamento humano.

Quando se considerar necessário provar ulteriormente a objectividade requerida do juízo ex conscientia formulado pelo juiz, será necessário recordar todas as disposições e prescrições processuais nas quais se deduz a necessidade de manifestação e do confronto dos argumentos sobre os quais se baseia a certeza moral: a necessidade, sub poena nullitatis, da motivação da decisão (artigo 158.º do CPC), a necessidade de publicação da decisão, com vista ao direito de defesa em sede de recurso (artigo 259.º do CPC), etc.  

Ao pronunciar a decisão, o juiz não manifesta a própria vontade. O juiz manifesta simplesmente o seu juízo sobre a vontade do corpo legislativo num caso concreto. Por conseguinte, a sentença contém apenas a vontade ou a intenção da lei transferida concretamente pelo juiz.

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5.1. Dicotomia: Direito e Justiça

Immanuel Kant concebe o Direito como o “conjunto das condições pelas quais o livre arbítrio de um pode harmonizar-se com o de outro segundo uma lei geral da liberdade” [8].

Não obstante a ligação do Direito com o justo – definindo Justiça como a igual liberdade para todos -, “a questão de se saber aquilo que o direito pede e aquilo que a justiça exige permanece distinta”, observa John Rawls em Uma Teoria da Justiça[9]. A problemática da lei injusta embrionariamente funda-se, pois, numa situação em que a Justiça e a Segurança, dois valores intrínsecos ao Direito, têm exigências diametralmente antagónicas.

A filosofia cristã pré-renascentista assentava no pressuposto que a lei humana derivava da lei natural. Com alguma acuidade surgiria, portanto, a questão da lei injusta, e qual a postura a adoptar perante ela. Na perspectiva de S. Tomás de Aquino, a lei injusta seria, de per si, uma corrupção da lei, e embora não obrigasse em consciência, a atitude a tomar seria de desobediência à lei se esta violasse um bem divino (bonum divinum), ou de acatamento da lei se a mesma violasse um bem meramente humano (bonum humanum).

Já hodiernamente, John Rawls explica o surgimento da injustiça como erros de uma maioria política, “se não por falta de conhecimentos e capacidade de julgamento, pelo menos como resultado de visões parciais e orientadas para o interesse próprio” [10]. O professor de Harvard aponta que a injustiça pode surgir por duas formas: as estruturas existentes afastarem-se dos padrões publicamente admitidos, que são mais ou menos justos; ou, tais estruturas estarem de acordo com a concepção de justiça da sociedade, mas esta concepção ser injusta.

Castanheira Neves define lei injusta como “toda a norma legal positiva que não realize ou não permita realizar concretamente a ideia de Direito”[11]. Note-se que o conceito de justiça concerne não só à perspectiva económica, mas também à perspectiva humana constitucionalmente consagrada no nosso Estado de Direito. Ou seja, refere-se o ilustre professor às leis que porventura recusem a dignidade de personalidade moral a qualquer pessoa, grupo, classe ou raça, para os reduzirem a meros objectos de coacção política ou administrativa; portanto, autênticas perversões do poder legislativo, no sentido da crítica marxista ao Direito.

Em primeiro lugar, e no seguimento das posições doutrinais supra-expostas, urge, neste ponto, alertar para a plurivocidade do conceito de lei injusta que emergirá ao longo desta dissertação. Porquanto, configurará lei injusta não somente o sentido mais gravoso do conceito segundo o qual Castanheira Neves constrói a sua doutrina, e que, no fundo, se subsume a uma violação do Direito Natural. O conceito de lei injusta será necessariamente mais amplo, e abarcará ainda, não só as leis obsoletas ou caducas, mas igualmente situações de mera inconveniência duma solução positiva à luz da justiça.

Em segundo lugar, a injustiça a que nos referiremos é a injustiça substancial ou material, por contraposição à injustiça formal. No âmbito dos processos judiciais, muitas das vezes os tribunais atingem a justiça formal, não logrando, no entanto, alcançar a justiça substancial da questão.

Eis que nos surge a dúvida: poderão, em concreto, os juízes deter-se perante uma lei injusta?

Porquanto parecem sobrelevar duas possíveis abordagens jusfilosóficas, as disposições legais, quer de índole ordinária quer constitucional, mencionadas supra poderão deixar o intérprete confundido acerca de qual a teleologia inerente ao sistema: se o valor da justiça, se o positivismo legalista.

5.1.1 - Orientações Jusfilosóficas

a) - O Positivismo Legalista

A primeira das orientações parece seguir no sentido da consagração do adágio latino “dura lex sed lex”, como afirmação de uma máxima juspositivista. Enquanto corrente de pensamento, o Positivismo Jurídico funda-se numa concepção avalorativa do Direito, segundo a qual a validade das normas jurídicas afere-se por critérios de vigência (validade formal) e eficácia (validade social)[12]. Consequentemente, a injustiça de uma lei não beliscará a sua validade e vinculatividade.

O expoente máximo do positivismo jurídico é Hans Kelsen, que na obra Teoria Pura do Direito, apresenta uma concepção de ciência jurídica segundo a qual o Direito celebraria um corte epistemológico relativamente à moral e a qualquer outra disciplina, visando torná-lo num saber objectivo e exacto. No que à justiça concerne, o mesmo filósofo é paradigmático ao afirmar que “A justiça não pode, portanto, ser identificada com o direito”, e que, “Como todas as virtudes, também a virtude da justiça é uma qualidade moral; e, nessa medida, a justiça pertence ao domínio da moral[13].”

b) - A Justiça como compromisso com o Direito Natural

Por outro lado, a segunda das possíveis orientações parece preconizar que o Direito não se resume à lei, i.e., que não se esgota numa aplicação tout court das normas legais, estando a ordem jurídica sob a postulação vinculante de três vertentes: Justiça, Bem Comum e Segurança[14]. Na senda duma concepção valorativa do Direito, de realçar será o contributo doutrinal de Oliveira Ascensão[15] que de encontro aos vectores atrás apontados, sustenta que uma teoria do direito justo estaria impreterivelmente ligada à ideia de Direito Natural. Defendendo que o Direito Natural é variável consoante a sociedade histórica em questão, argumenta este autor que ele deve ser entendido como Direito Positivo, na medida em que, assente na pessoa e sua pendência social, é o melhor caminho para se prosseguir o valor da Justiça. Consequentemente, as leis injustas não serão nem verdadeiras leis nem genuíno Direito, porquanto as normas positivas só serão legítimas – válidas intrínseca ou eticamente – se consonantes com a justiça.

c) – Posição Adoptada

Se, por um lado, é condenável sustentar uma exacerbada permeabilização do sistema jurídico por todo o tipo de valores, que impreterivelmente conduz às indesejáveis insegurança e incerteza jurídicas, será reprovável também, por outro lado, o ideal positivista, mormente de Kelsen, traduzido num sistema normativo auto-referenciado, em que o casuísmo do Direito se limita a uma operação lógico-dedutiva, ou que qualifica “a justiça e a recta finalidade” como preocupações secundárias do Direito, sendo a sua preocupação primordial a certeza e a segurança.


6. O Juiz perante a Injustiça da Lei e da Causa

De repudiar será, portanto, uma orientação formalista-normativista do sistema jurídico, alvo das críticas mais acesas elaboradas na esteira do chamado Movimento de Renascimento da Filosofia Jurídica, ocorrido após a trágica experiência histórica do Estado-assassino de Hitler. Citando Perelman[16], “com o advento do Estado-criminoso que foi o Estado nacional-socialista, pareceu impossível, mesmo a positivistas declarados, tais como Gustav Radbruch, continuar a defender a tese de que ‘lei é lei’(...). Uma lei injusta, dirá Radbruch, não pertence ao direito”.

Consequentemente, chegamos à mesma conclusão que Baptista Machado[17]: “o que nos separa dos positivistas é, afinal, o irrealismo destes”porquanto o Direito não pode ser alheio – sob pena de autismo – à nossa condição humana e social. O que impreterivelmente nos leva a concluir que a actividade jurídica carece não só de positivismo mas também de transpositivismo.

Por isso, também nós vamos recuperar o sentido de Justiça como ideal ético fundamental, e, consequentemente, como escopo do Direito. Sem justiça, o Direito não logrará alcançar os demais vectores a si inerentes: o Bem Comum e a Segurança. No plano dos princípios, o Direito não poderá (ou melhor, não deverá) ter como escopo outro princípio que o valor (transpositivo) da Justiça. Pois, como expende o mesmo autor, a justiça “é a pauta axiológica do direito, é a exigência última do direito positivo”.

Neste ponto, embora com as diferenças metodológicas supra-apontadas, mesmo Hans Kelsen reconhece que “Para a questão da validade do direito, isto é, para a questão de saber se as suas normas devem ser aplicadas e acatadas, é decisiva a relação que se pressuponha entre justiça e direito”.

No entanto, é a Lei Fundamental que parte a iniciativa de amputar a função do aplicador do Direito, textualmente preconizando o positivismo legalista (artigo 212.º, n.º 2). É ainda a própria lei ordinária, destarte através do Código Civil, no n.º 2 do seu artigo 8º, que impõe o dever de obediência à lei mesmo perante uma situação em que tal conduza a um resultado injusto ou imoral por força do conteúdo do preceito legislativo.

E que resolução dará o Juiz à demanda quando o direito positivo aplicável ao caso sub iudice for, apesar de inequívoco, injusto?

Assola-nos a dúvida se o Juiz, enquanto “jurista ao desempenhar-se da função judicial”, concreta e legalmente terá o poder soberano de recusar a aplicação de uma lei injusta, como sustenta Castanheira Neves.

Não nos suscita qualquer dúvida a postura de recusa de aplicação de uma lei injusta, por parte dos nossos tribunais, nas situações que lhes surgem com maior frequência, que serão os casos em que os factos carreados para o processo se possam subsumir a mais do que uma norma ou instituto jurídicos, ou em que a desenfreada produção legislativa propicia que duas normas divergentes tutelem uma mesma situação jurídica. Em tais situações, a tarefa do aplicador do Direito consiste num trabalho de interpretação e de opção entre as possibilidades fornecidas pelo direito existente, por forma a que a decisão corresponda, tanto quanto possível, à ideia superior de justiça.

Tal dúvida - note-se - surge-nos tão-somente in extremis, ou seja, quando o direito positivo não fornecer ao juiz mais do que uma solução normativa para o mesmo caso concreto.


7. Pressões externas

Trataremos agora da postura a ser adoptada pelo juiz quando, no plano das suas actividades, interferências externas se colocam como valores capazes de abalar as suas convicções pessoais. Estamos no campo da injustiça da causa.

A partir de Theo Callignon[18] define-se causa injusta como aquele litígio que, podendo apresentar-se de boa fé, pode ser defendido, com a ajuda de meios inescrupulosos. Tal deve-se à falta de fundamento da pretensão seja por carência de direito do assistido, seja por manifesta inviabilidade da pretensão, às situações de abuso de direito, uso de meios injustos, dentre os quais os meios de defesa falsos, por um lado, e, por outro lado, os expedientes dilatórios. Há interesses sobre a decisão de forma que o juiz vê o seu poder condicionado por entidades estranhas ao processo, sejam grupos políticos, económicos, ou de outro jaez.

Neste caso, o juiz tem consciência da injustiça vertida no petitório, mas há influências externas que recaem sobre ele. Pretendem que ele aja no sentido de acautelar esses interesses. Mostra-se quebrada a independência do juiz face a qualquer outro poder não necessariamente político.

Em regra o juiz receia quem exerce essa influência. Acaba, por isso, em conformidade, por decidir contra a própria consciência, acomodando os interesses injustos.

Há deste modo uma limitação da decisão livre e independente do princípio do julgamento ex conscientia sua por factores externos ao processo judicial.

 Aduz-se que, se por desonestidade intelectual, fazer-se colidir a consciência do juiz com o interesse público, o juiz em apreço não estará em condições de servir a comunidade onde inserido porque tem a consciência alienada a favor de um interesse particular.

Afinal, sendo o juiz jurista, novamente citamos Castanheira Neves que afirma que “o jurista é o mediador na comunidade e para a comunidade da ideia do direito”. Continua este professor alertando que “esta função implica inevitavelmente uma grande responsabilidade, posto que o jurista não pode então iludir o dever de dizer não às situações e relações de não direito que os homens entre si ou o poder perante eles se proponham criar ou impor.”

Pelo que histórico-comunitariamente situado, a conduta do jurista, de que o juiz não é alheio, não pode deixar de ser a de dizer “não” às situações que a sua consciência repute como “não direito”. É que dando cobertura a estas práticas, propugnando por uma decisão na qual não acredita, só por resposta as pressões vindas de fora, frustrar-se-á o intuito do juiz pugnar pela boa aplicação das leis e pelo aperfeiçoamento da cultura e instituições jurídicas.  

Perante estes casos, o órgão de disciplina não pode deixar de intervir, de não censurar, porque não é exigível nos juízes outro comportamento que não a observância da lei e da consciência.

Sobre o autor
Carlos Pedro Mondlane

Juiz de Direito e docente universitário. Presidente do Tribunal de Polìcia da Cidade de Maputo. Presidente da União Internacional dos Juízes da CPLP. Membro do Conselho Superior da Magistratura Judicial. Formador no Centro de Formação Jurídica e Judiciária (CFJJ). Pós Doutorando em Direitos Humanos, Saúde e Justiça pela Universidade de Coimbra. Doutorado em Direito Privado pela Universidade Católica de Moçambique e Universidade Nova de Lisboa. Mestrado em Direito pela Universidade Católica de Moçambique. Licenciado em Direito pela Universidade Eduardo Mondlane. Prelector e autor de livros e artigos jurídicos publicados em revistas de especialidade. Autor, entre outros, de:- Comentário da Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos (Coord. Pinto de Albuquerque), Lei de Promoção e Protecção dos Direitos da Criança, Anotada e Comentada- Código de Processo Civil, Anotado e Comentado- Colectânea dos 15 Anos da Lei de Terras: Venda de Terra em Moçambique: Mito ou Realidade?- Manual Prático dos Direitos Humanos - Constituição de Moçambique Anotada (no prelo)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MONDLANE, Carlos Pedro. A consciência do juiz na tomada de decisões e o problema da autocensura. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3642, 21 jun. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24762. Acesso em: 22 nov. 2024.

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