Introdução
Hodiernamente existe uma discussão na seara jurídica sobre a legitimidade das associações que oferecem proteção veicular no mercado. Para as seguradoras, tais associações comercializam “seguros piratas”, termo utilizado para referir-se aos seguros que não recebem controle da SUSEP. Por outro lado, as associações defendem sua atuação com base no art. 5.º da Constituição que prevê a livre associação.
Explicitaremos as questões que julgamos, nessa oportunidade, mais relevantes para o tema: o ponto de vista das partes e da jurisprudência, no tocante à legitimidade da atuação, a incidência do Código do Consumidor e a possibilidade de resilição unilateral.
As Associações de Proteção veicular Vs a Susep
Atualmente, o mercado se depara com o crescimento das associações de proteção veicular. Estas instituições oferecem vantagens para os proprietários de veículos, tais como o ressarcimento dos danos sofridos por furtos, incêndios ou acidentes de trânsito.
Inegavelmente, os benefícios ofertados pelas associações focam o mesmo público das seguradoras de veículos: os proprietários de automóveis, motocicletas e caminhões. Se antigamente, a população deveria analisar todas as seguradoras do mercado para ponderar o custo-benefício, hoje, ela também deverá consultar os programas disponibilizados pelas associações.
Sendo a única opção de indivíduos que possuem veículos fora do perfil rentável para as seguradoras, ou daqueles impossibilitados de arcar com um alto custo da proteção do seu veículo, as associações tornaram-se alvo da SUSEP, superintendência ligada ao Ministério da Fazenda.
Segundo ela, as mencionadas associações oferecem seguro, e por não se adequarem às exigências legais que regulam o mercado nacional de seguros deveriam ser extintas.
Na concepção das seguradoras, as associações não atuariam legitimamente. Por não possuírem autorização da SUSEP, as associações seriam uma ameaça à sociedade. Já as associações aduzem que a Constituição Federal em seu artigo 5.º institui o direito à livre associação, o que legitimaria a atuação em qualquer área do mercado.
Interessante revelar que os seguros surgiram exatamente na cooperação entre mercadores que necessitavam dividir os riscos dos negócios. Assim, o prejuízo era dividido entre todos de modo a evitar que o indivíduo diretamente lesado se arruinasse. Progressivamente, o instituto do seguro evoluiu assim como sua relevância para o mercado. Como consequência, o Estado passou a regulamentar os seguros mediante o Código Civil, o Código do Consumidor e outras legislações extravagantes.
Há alguns anos, as grandes corporações tinham a exclusividade na venda de seguros. Esse cenário permitia que a SUSEP regulamentasse o setor e oferecesse uma proteção mais efetiva aos consumidores; principalmente quanto à solvibilidade da seguradora. Soma-se a isso o fato da SUSEP fiscalizar as cláusulas presentes nos contratos oferecidos aos segurados.
As associações, entretanto, não ofertariam um seguro. Habitualmente, o associado paga uma mensalidade e reparte os prejuízos sofridos por algum deles a cada mês. Nesses termos, caso nenhum veículo se acidente ou seja furtado, os associados somente arcariam com o valor da contribuição fixa mensal, geralmente de preço muito inferior ao valor de um seguro.
Mas a SUSEP defende que a proteção oferecida pelas Associações seria uma cópia de seguro, um “seguro pirata”. Nesses termos, as associações, deveriam ser submetidas às mesmas regras impostas às seguradoras. Entretanto, a sistemática das Associações parece ser distinta. Elas utilizam o mecanismo de rateio, como já mencionamos. Desta forma, a contribuição dos sócios oscila constantemente, de acordo com os eventos lesivos ocorridos no período.
Se a proteção ofertada pelas associações é considerada ou não seguro, é uma discussão que está longe de acabar. As seguradoras pensam que se trata, inequivocamente, de um seguro e por isso as associações deveriam ser regulamentadas pela SUSEP. As associações ao contrário, aduzem que o serviço é uma repartição de riscos entre os sócios. A jurisprudência, em seu turno, evita abordar essa questão de maneira direta. A maioria, entretanto entende que os serviços ofertados pelas associações tem natureza de seguro. As mesmas decisões jurisprudenciais, todavia, reconhecem a legítima atuação das Associações no mercado.
Uma decisão é paradigmática. Proferida pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais, Estado onde há o maior número de associações, a decisão poderá tornar-se um importante fundamento para as associações. O acórdão emitido na apelação n.º 1.0105.10.016159-2/001, pelo desembargador Dr. Guilherme Luciano Baeta Nunes da 18ª câmara cível em 11/12/2012 é de clareza invejável.
“Apesar de a autora ser uma associação sem fins lucrativos, e não uma sociedade-seguradora, ela oferece serviços de seguro a seus associados”. Entretanto, “a lei não proíbe que pessoas se associem para ratear despesas advindas de risco futuro”.
O desembargador prossegue e revela uma importante posição sobre o tema: “o monopólio das seguradoras apenas atende a interesse corporativo, que visa lucros, não podendo as pessoas ficar à mercê das seguradoras, para proteção do seu patrimônio individual”.
Outra decisão da mesma corte, entende que a associação não poderia realizar um contrato de seguro, exatamente por não ser autorizada pela SUSEP. Consequentemente, o desembargador declara ser inválido o contrato firmado entre a associação e o associado. O voto do desembargador, todavia, foi vencido. A referida apelação cível n.º 1.0079.07.387606-6/002 publicada em 17 de outubro de 2011, aborda outro importante fato: a incidência ou não, dos preceitos consumeristas. A maioria dos desembargadores defende que o contrato celebrado entre associação e associado, que tenha como objeto a proteção veicular, é regido pelas normas do Código de Consumidor; uma vez que as associações atuariam como verdadeiras prestadoras de serviço.
A tese da existência de relação de consumo é controvertida. As associações não tendo finalidade lucrativa, poderiam não ser abarcadas pelas normas protetivas do Código do Consumidor. A maior consequência desse entendimento é a impossibilidade de responsabilizar objetivamente as associações por quaisquer danos que inflijam aos associados; as demais proteções consumeristas poderiam ser utilizadas por meio dos princípios da boa-fé, da transparência e do dever de informação.
O Código de Defesa do Consumidor, todavia, não impõe como requisito pra caracterização como fornecedor de serviço a busca por lucro. Soma-se isso a caracterização de consumidor como o indivíduo que adquire ou utiliza um serviço como consumidor final. Deste modo, é plausível considerar que a proteção veicular ofertada pelas associações seja regida pelas normas do direito do consumidor.
Outro ponto de embate é a possibilidade da seguradora ou da associação em negar o pagamento do benefício ao alegar o inadimplemento do cliente ou associado. Sobre o tema, o Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do recurso especial n.º 316.552-SP, bem como no de n.º 286.472-ES, reafirma que a rescisão do contrato de seguro necessita de prévio aviso e constituição de mora do segurado, pela seguradora. Sem tal requisito, o contrato não poderia ser suspenso, ou seja, ocorrendo um evento danoso, a seguradora deverá pagar o sinistro mesmo que o segurado esteja inadimplente, a menos que o advirta da sua mora.
As decisões possuem mais de 10 anos, entretanto o Tribunal mineiro, em 2009, proferiu o mesmo entendimento, na apelação n.º nº 1.0079.07.340822-5/001. Segundo a decisão, as associações destinadas à proteção veicular devem atender as normas consumeristas, especialmente o dever de informação; não sendo lícita a negativa de ressarcimento com base na falta de pagamento sem prévia notificação.
O embate perdurará por tempo indeterminado. A SUSEP, visando o satisfazer o interesse das seguradoras, denuncia regularmente as associações que oferecem a proteção veicular. Atualmente algumas instituições já foram denunciadas ao Ministério Público e investigadas pela Superintendência da Polícia Federal. Apesar disso, as associações crescem a cada ano e são importantes, principalmente para os indivíduos excluídos do mercado de seguros devido ao seu perfil econômico não ser interessante para as seguradoras.
A jurisprudência, como apresentamos, defende a posição das associações. Apesar de imputar-lhes obrigações previstas na legislação consumerista, os magistrados defendem a legitimidade da atuação das instituições sem finalidade lucrativa.
O cenário atual indica uma propensão a aceitar as associações de proteção veicular. Nesse sentido, um projeto de lei, n.º 4844/2012, que atualmente está em análise pelas Comissões de Viação e Transportes, Constituição e Justiça e de Cidadania trata da matéria. A proposta visa alterar o art. 53.º do Código Civil acrescentando a possibilidade dos transportadores, de pessoas ou cargas, organizarem-se em associações que visem prevenir e reparar danos ocasionados aos veículos por furto, acidente, incêndios e outras situações correlatas.
Embora o projeto de lei busque legitimar a proteção veicular oferecida somente por associações de transportadores, poderíamos utilizar tal previsão legal para legitimar, por analogia, as demais associações. Mas é cedo para fixar as consequências jurídicas da referida alteração. Pode-se até ocorrer um prejuízo para as demais associações: visto que a lei contemplou exclusivamente as associações de transportadores, alguns juristas poderão advogar que a lei deverá ser interpretada restritivamente, ou seja, somente as associações de transportadores poderiam comercializar proteção veicular.
Conclusão
Atualmente, tudo não passa de conjecturas. É cedo para apresentar um cenário provável, contudo, as associações estão ganhando a batalha contra as seguradoras. Se há uma previsão constitucional permitindo a livre associação entre os indivíduos, tal direito não poderia ser privado pela falta de norma infraconstitucional reguladora nos moldes das dedicadas a policiar as seguradoras.
Mas sempre cabe uma advertência aos consumidores. As associações podem ser uma boa alternativa diante das grandes seguradoras, entretanto, deve-se pesquisar com atenção a instituição a que deseja se associar. Uma vez que não há regulamentação, o risco para o consumidor é maior. Assim, ele deverá consultar os conhecidos e os sócios, para ter ciência da verdadeira condição da associação.