Introdução.
Objetiva, este pequeno ensaio, a análise crítica da súmula 18 do Tribunal de Justiça de São Paulo, pretendendo demonstrar a sua ilegalidade, em face dos dispositivos legais aplicados à espécie, precipuamente em relação à Lei do Cheque e ao Código Civil.
A referida súmula 18 dispõe:
Súmula 18: Exigida ou não a indicação da causa subjacente, prescreve em cinco anos o crédito ostentado em cheque de força executiva extinta (Código Civil, art. 206, § 5º, I).
Isso significa que, para o Tribunal paulista, a cobrança do cheque prescrito (que perdeu sua força cambial), prescreve em 5 anos.
Evidente a ilegalidade dessa interpretação, como veremos a seguir.
II. Do cheque.
O cheque é um título de crédito, com previsão legal na Lei 7.357/85 (Lei do Cheque). Por definição legal, o cheque é uma ordem de pagamento à vista que, como título cambial, prescreve em seis meses, na forma do art. 59 do referido diploma legal.
O cheque é um título executivo extrajudicial, como previsto no art. 585, I, do Código de Processo Civil. Todavia, uma vez prescrito, o cheque perde sua força cambial, não mais podendo ser cobrado através da ação de execução, conforme disposto nos arts. 59 e 47 da Lei 7.357/85.
III. Da cobrança do cheque prescrito.
Se o cheque prescrito não pode ser executado, como fazer para cobrar-lhe?
A Lei do Cheque traz a resposta no art. 61: o credor deverá ajuizar a ação de enriquecimento. Ela é a ação competente para a cobrança contra o emitente e outros coobrigados que se locupletaram injustamente com o não pagamento do cheque.
Trata-se de ação própria, prevista em lei especial, que prevalece sobre a norma geral, que no caso é o Código de Processo Civil.
Ocorre que a Lei do Cheque prevê o prazo prescricional de 2 anos para o ajuizamento da ação de enriquecimento. Voltaremos a isso mais adiante.
IV. Da ação monitória.
Ação monitória é a ação que compete a quem, com base em prova escrita sem eficácia de título executivo, pretender o pagamento de quantia em dinheiro ou a entrega de bens. Ela está prevista no art. 1102A do Código de Processo Civil.
É certo que o cheque prescrito é um documento sem eficácia de título executivo, mas o uso da ação monitória não pode, no caso, passar por cima da lei especial. Mas isso tem acontecido.
O problema é que se passou a dispor da ação monitória como uma panaceia, para curar todos os males de prescrição, o que não se pode admitir.
No caso do cheque prescrito, ação própria para sua cobrança é a ação de enriquecimento, prevista no art. 61 da Lei 7.357/85, cuja prescrição se dá em 2 anos.
A ação monitória não pode substituí-la, porque a lei especial (Lei do Cheque) prevalece sobre a geral (CPC).
Pensar o contrário é contraria todo o sistema jurídico.
V. Dos prazos de prescrição no Código Civil.
A prescrição do cheque é regulada por lei própria, vale lembrar, a Lei 7.357/85. Nesse passo, ela é de 6 meses para a ação de execução e de 2 anos para a ação de conhecimento (ação de enriquecimento – art. 61).
Mas, mesmo que, por absurdo, se entenda que a prescrição é regulada pelo Código Civil (que é norma geral, ao passo que a Lei do Cheque é norma especial, que a prefere), o prazo de prescrição seria de 3 anos. Vejamos:
Entendo-se que o cheque prescrito constitui um enriquecimento sem causa (como a própria Lei do Cheque prevê), é de se aplicar a regra do art. 206, § 3º, IV, do Código Civil:
Art. 206. Prescreve:
[...]
§ 3º Em três anos:
[...]
IV - a pretensão de ressarcimento de enriquecimento sem causa;
Por seu turno, o inciso VIII do § 3º do art. 206 do Código Civil estabelece o prazo de 3 anos a prescrição da pretensão para haver o pagamento de título de crédito. E não há dúvidas de que o cheque é um título de crédito.
O que não se pode admitir, todavia, é que o cheque seja considerado um instrumento particular, para se aplicar o prazo de 5 anos previsto no art. 206, § 5º, I, do Código Civil.
Assim, fosse possível aplicar ao cheque o prazo de prescrição do Código Civil, este seria de 3 anos. Voltaremos a isso adiante.
VI. Da ilegalidade da súmula 18 do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
O Tribunal de Justiça de São Paulo editou a súmula 18, que fixa o prazo de 5 anos para cobrança do cheque prescrito.
Essa decisão não encontra amparo legal.
Com efeito, como vimos acima, o cheque é regido por lei própria, que por ser especial, prevalece sobre as normas de ordem geral como o Código Civil ou o Código de Processo Civil.
Nesse diapasão, a Lei do Cheque estabelece o prazo prescricional de 2 anos para a cobrança do cheque prescrito, como vimos acima, no item III.
Não dá para desconhecer essa realidade, nem suplantar as regras tradicionais de hermenêutica, sob pena de violentar o sistema.
E, mesmo que se pudesse aplicar o Código Civil, o prazo de prescrição seria de 3 anos, como vimos no item V, e não de 5, como estabelecido na referida súmula.
A orientação jurisprudencial do Excelso Pretório paulista, consubstanciada na súmula 18, não encontra amparo na lei
VII. Conclusão
Sabemos que a jurisprudência é fonte renovadora do direito. Por isso, a sua uniformização é de suma importância, porque serve como indicar da posição do Tribunal sobre um determinado assunto. Isso dá segurança jurídica a todos aqueles que a ele se dirigem. E nesse ponto, as súmulas exercem um papel de destaque, porque condensam o pensamento de um dado tribunal sobre alguma questão jurídica.
Todavia, em razão mesmo dessa importância, as súmulas não podem servir de revisão da lei, cujo papel é atribuído a outro Poder, o Legislativo.
E, infelizmente, a súmula 18 do Tribunal de Justiça de São Paulo padece dessa mal.
Editada contra legem, negando vigência à Lei do Cheque, referida súmula é flagrantemente ilegal.