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O cheque prescrito, a ação monitória e a ilegalidade da súmula 18 do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

18/07/2013 às 17:19
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O cheque é regido por lei própria, que prevalece sobre as normas de ordem geral como o Código Civil ou o Código de Processo Civil. A Lei do Cheque estabelece o prazo prescricional de 2 anos para a cobrança do cheque prescrito, sendo ilegal o prazo de 5 anos referido na súmula 18 do TJSP.

Introdução.

Objetiva, este pequeno ensaio, a análise crítica da súmula 18 do Tribunal de Justiça de São Paulo, pretendendo demonstrar a sua ilegalidade, em face dos dispositivos legais aplicados à espécie, precipuamente em relação à Lei do Cheque e ao Código Civil.

A referida súmula 18 dispõe:

Súmula 18: Exigida ou não a indicação da causa subjacente, prescreve em cinco anos o crédito ostentado em cheque de força executiva extinta (Código Civil, art. 206, § 5º, I).

Isso significa que, para o Tribunal paulista, a cobrança do cheque prescrito (que perdeu sua força cambial), prescreve em 5 anos.

Evidente a ilegalidade dessa interpretação, como veremos a seguir.


II. Do cheque.

O cheque é um título de crédito, com previsão legal na Lei 7.357/85 (Lei do Cheque). Por definição legal, o cheque é uma ordem de pagamento à vista que, como título cambial, prescreve em seis meses, na forma do art. 59 do referido diploma legal.

O cheque é um título executivo extrajudicial, como previsto no art. 585, I, do Código de Processo Civil. Todavia, uma vez prescrito, o cheque perde sua força cambial, não mais podendo ser cobrado através da ação de execução, conforme disposto nos arts. 59 e 47 da Lei 7.357/85.


III. Da cobrança do cheque prescrito.

Se o cheque prescrito não pode ser executado, como fazer para cobrar-lhe?

A Lei do Cheque traz a resposta no art. 61: o credor deverá ajuizar a ação de enriquecimento. Ela é a ação competente para a cobrança contra o emitente e outros coobrigados que se locupletaram injustamente com o não pagamento do cheque.

Trata-se de ação própria, prevista em lei especial, que prevalece sobre a norma geral, que no caso é o Código de Processo Civil.

Ocorre que a Lei do Cheque prevê o prazo prescricional de 2 anos para o ajuizamento da ação de enriquecimento. Voltaremos a isso mais adiante.


IV. Da ação monitória.

Ação monitória é a ação que compete a quem, com base em prova escrita sem eficácia de título executivo, pretender o pagamento de quantia em dinheiro ou a entrega de bens. Ela está prevista no art. 1102A do Código de Processo Civil.

É certo que o cheque prescrito é um documento sem eficácia de título executivo, mas o uso da ação monitória não pode, no caso, passar por cima da lei especial. Mas isso tem acontecido.

O problema é que se passou a dispor da ação monitória como uma panaceia, para curar todos os males de prescrição, o que não se pode admitir.

No caso do cheque prescrito, ação própria para sua cobrança é a ação de enriquecimento, prevista no art. 61 da Lei 7.357/85, cuja prescrição se dá em 2 anos.

A ação monitória não pode substituí-la, porque a lei especial (Lei do Cheque) prevalece sobre a geral (CPC).

Pensar o contrário é contraria todo o sistema jurídico.


V. Dos prazos de prescrição no Código Civil.

A prescrição do cheque é regulada por lei própria, vale lembrar, a Lei 7.357/85. Nesse passo, ela é de 6 meses para a ação de execução e de 2 anos para a ação de conhecimento (ação de enriquecimento – art. 61).

Mas, mesmo que, por absurdo, se entenda que a prescrição é regulada pelo Código Civil (que é norma geral, ao passo que a Lei do Cheque é norma especial, que a prefere), o prazo de prescrição seria de 3 anos. Vejamos:

Entendo-se que o cheque prescrito constitui um enriquecimento sem causa (como a própria Lei do Cheque prevê), é de se aplicar a regra do art. 206, § 3º, IV, do Código Civil:

Art. 206. Prescreve:

[...]

§ 3º Em três anos:

[...]

IV - a pretensão de ressarcimento de enriquecimento sem causa;

Por seu turno, o inciso VIII do § 3º do art. 206 do Código Civil estabelece o prazo de 3 anos a prescrição da pretensão para haver o pagamento de título de crédito. E não há dúvidas de que o cheque é um título de crédito.

O que não se pode admitir, todavia, é que o cheque seja considerado um instrumento particular, para se aplicar o prazo de 5 anos previsto no art. 206, § 5º, I, do Código Civil.

Assim, fosse possível aplicar ao cheque o prazo de prescrição do Código Civil, este seria de 3 anos. Voltaremos a isso adiante.


VI. Da ilegalidade da súmula 18 do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

O Tribunal de Justiça de São Paulo editou a súmula 18, que fixa o prazo de 5 anos para cobrança do cheque prescrito.

Essa decisão não encontra amparo legal.

Com efeito, como vimos acima, o cheque é regido por lei própria, que por ser especial, prevalece sobre as normas de ordem geral como o Código Civil ou o Código de Processo Civil.

Nesse diapasão, a Lei do Cheque estabelece o prazo prescricional de 2 anos para a cobrança do cheque prescrito, como vimos acima, no item III.

Não dá para desconhecer essa realidade, nem suplantar as regras tradicionais de hermenêutica, sob pena de violentar o sistema.

E, mesmo que se pudesse aplicar o Código Civil, o prazo de prescrição seria de 3 anos, como vimos no item V, e não de 5, como estabelecido na referida súmula.

A orientação jurisprudencial do Excelso Pretório paulista, consubstanciada na súmula 18, não encontra amparo na lei


VII. Conclusão

Sabemos que a jurisprudência é fonte renovadora do direito. Por isso, a sua uniformização é de suma importância, porque serve como indicar da posição do Tribunal sobre um determinado assunto. Isso dá segurança jurídica a todos aqueles que a ele se dirigem. E nesse ponto, as súmulas exercem um papel de destaque, porque condensam o pensamento de um dado tribunal sobre alguma questão jurídica.

Todavia, em razão mesmo dessa importância, as súmulas não podem servir de revisão da lei, cujo papel é atribuído a outro Poder, o Legislativo.

E, infelizmente, a súmula 18 do Tribunal de Justiça de São Paulo padece dessa mal.

Editada contra legem, negando vigência à Lei do Cheque, referida súmula é flagrantemente ilegal.

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Sobre o autor
Fernando Augusto Sales

Advogado em São Paulo. Mestre em Direito. Professor da Universidade Paulista - UNIP, da Faculdade São Bernardo - FASB e do Complexo de Ensino Andreucci Proordem. Autor dos livros: Direito do Trabalho de A a Z, pela Editora Saraiva; Súmulas do TST comentadas, pela Editora LTr; Manual de Processo do trabalho; Novo CPC Comentado; Manual de Direito Processual Civil; Estudo comparativo do CPC de 1973 com o CPC de 2015; Comentários à Lei do Mandado de Segurança e Ética para concursos e OAB, pela Editora Rideel; Direito Ambiental Empresarial; Direito Empresarial Contemporâneo e Súmulas do STJ em Matéria Processual Civil Comentadas em Face do Novo CPC, pela editora Rumo Legal; Manual de Direito do Consumidor, Direito Digital e as relações privadas na internet, Manual da LGPD, Manual de Prática Processual Civil; Desconsideração da Personalidade Jurídica da Sociedade Limitada nas Relações de Consumo, Juizados Especiais Cíveis: comentários à legislação; Manual de Prática Processual Trabalhista e Nova Lei de Falência e Recuperação, pela editora JH Mizuno.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SALES, Fernando Augusto. O cheque prescrito, a ação monitória e a ilegalidade da súmula 18 do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3669, 18 jul. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24961. Acesso em: 19 abr. 2024.

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