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Considerações sobre a atividade judicativa no sistema de justiça criminal brasileiro.

Uma apresentação da pesquisa em “Sentencing”

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Agenda 27/11/2013 às 10:12

Estudamos do processo de elaboração da sentença penal e apresentamos as contribuições da “Theory of sentencing” ou, simplesmente, “sentencing” no estudo do processo de tomada de decisões criminais.

CONSIDERAÇÕES SOBRE A ATIVIDADE JUDICATIVA NO SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL BRASILEIRO: UMA APRESENTAÇÃO DA PESQUISA EM “SENTENCING”.

Resumo: No presente trabalho voltamos nossa atenção para o estudo do processo de elaboração da sentença penal. Para tanto, faremos uma incursão no debate acerca da significação da atividade judicante; do papel institucional do Judiciário, da cultura jurídica e dos sistemas de orientação dos magistrados brasileiros sobre o processo decisional. E em seguida, apresentaremos as contribuições da “Theory of sentencing” ou, simplesmente, “sentencing” no estudo do processo de tomada de decisões criminais.

Palavras-chave: Sistema de Justiça Criminal, Tomada de Decisão, Theory of Sentencing.

 

1. Introdução.

Inicialmente, cumpre esclarecer que, nos últimos anos, os pesquisadores brasileiros passaram a desenvolver mais estudos sobre o universo legal e judiciário buscando a descrição e compreensão de sua estrutura e entraves[1]. A discussão sobre a eficiência ou ineficiência do Sistema de Justiça Criminal em processar adequadamente os delitos que chegam ao seu conhecimento tem motivado a produção de complexos estudos sobre o “fluxo do sistema de justiça criminal”[2], os quais demandam o levantamento de numerosas informações e a construção de bancos de dados sobre uma modalidade de infração penal, desde sua notificação à Polícia até o julgamento. Através dos “estudos de fluxo” os pesquisadores pretendem reconstituir o fluxo de pessoas e procedimentos que atravessam as diferentes instituições que compõem esse sistema, possibilitando o cálculo das taxas de esclarecimento, processamento, sentenciamento, condenação e aprisionamento dos envolvidos em ocorrências criminais.

O cálculo dessas taxas permite a reconstituição do fluxo do processamento de crimes e a mensuração da eficiência do Sistema de Justiça Criminal na persecução daqueles que infligiram a lei e lesionaram direitos de terceiros, bem como uma avaliação global do sistema e de sua capacidade de prevenção, visto que desvela a probabilidade de se sofrer (ou não) uma punição pela transgressão da lei penal, indicada pela grande diferença entre o número de ocorrências registradas pelas Polícias e o número de processos sentenciados pelo Judiciário, com condenação e aprisionamento.

Os métodos utilizados para o cálculo dessas taxas demandam a existência de um banco de dados extenso e confiável. Sendo assim, temos que a grande dificuldade em estudos dessa natureza no Brasil relaciona-se às fontes desses dados, já que, ao contrário do que acontece em países como França, Estados Unidos e Canadá, não dispomos de um órgão federal responsável pela coleta e organização de informações sobre o processamento de delitos.

Além disso, cada uma das instituições integrantes do Sistema de Justiça Criminal brasileiro produz informações distintas, consolidadas em documentos diferenciados (como boletins de ocorrência, inquéritos policiais, denúncias e sentenças), o que dificulta a reconstituição do processamento dos delitos desde a sua ocorrência até a sentença (RIBEIRO & SILVA, 2010). Temos, ainda, que em nossa legislação crimes diferenciados podem implicar modalidades distintas de processamento, desta forma a natureza do delito é determinante na configuração do fluxo que o mesmo assume. Em que pesem as dificuldades apontadas, pesquisadores brasileiros têm se esforçado para realizar estudos sobre o fluxo de processamento em nosso Sistema de Justiça Criminal[3].

Consideramos que todas as decisões tomadas pelos agentes do sistema de justiça criminal no seletivo processo de “criminação-incriminação”[4] e “sujeição criminal”[5] (MISSE, 1999) integram e influenciam os rumos do “fluxo processual”. Vargas (2000, p. 142), em pesquisa sobre a configuração do fluxo da justiça criminal para os crimes de estupro na cidade de Campinas em São Paulo, chamou a atenção para o fato de que a etapa do fluxo processual referente ao sentenciamento, ou seja, à tomada de decisão pelos magistrados, é um tema instigante a ser explorado.

Sendo assim, no presente trabalho voltaremos nossa atenção para o universo legal e judiciário, porém, com um enfoque muito específico, qual seja o processo de elaboração da sentença penal, enquanto importante etapa do “fluxo processual penal”. Para tanto, faremos uma incursão no debate acerca da significação da atividade judicante; do papel institucional do Judiciário, da cultura jurídica e dos sistemas de orientação dos magistrados brasileiros sobre o processo decisional. E em seguida, apresentaremos as contribuições da “Theory of sentencing” ou, simplesmente, “sentencing” no estudo do processo de tomada de decisões criminais.

A relevância desse corpo teórico, que vem ganhando projeção internacional, mas ainda pouco debatido no Brasil, reside na sua utilização como significativo instrumento de análise em estudos de sentenças, capaz de fornecer elementos conceituais aplicáveis à compreensão das condicionantes diretivas que envolvem a atividade judicante, revelando a complexidade da prática judiciária e indagando, sobretudo, acerca da eventual contribuição da justiça penal na reprodução de desigualdades, de preconceitos e do senso comum.

2. A significação na atividade judicativa.

Ribeiro (1999) destaca a freqüência com que questões sobre a conexão entre sistemas simbólicos e outros níveis da vida social tem sido discutidas por teorias sobre as práticas sociais. Nesse sentido, Cicourel (1968) critica as abordagens sociológicas sobre o crime e o desvio fundadas unicamente em estatísticas oficiais e que ignoram o fato destas serem produto de práticas organizacionais e do raciocínio prático dos funcionários das agências de controle social formal (como as polícias, os tribunais, etc.) que definem e constituem o significado do que vem a ser considerado certo, errado, criminoso ou não criminoso[6]

Para Cicourel (1968), na justiça criminal a resolução deste problema estaria em pesquisas que identificassem como são elaborados os “autos criminais” pelos atores envolvidos em atividades socialmente organizadas (como a comunidade, a família, a polícia, os tribunais, etc.), e como esses “autos” fornecem descrições “corretas” da estrutura de caráter, moral, justiça, legalidade, criminalidade aos membros daquelas organizações. Assim, uma alternativa seriam as pesquisas realizadas com o emprego da técnica da observação participante ou que interpretem as estatísticas como representações das práticas dos agentes da lei (policiais, juízes, júri, promotores, advogados), mais do que uma medida das taxas de criminalidade.

Formulações de inspiração fenomenológica sobre a justiça criminal encontradas em Cicourel (1968) foram retomadas e desenvolvidas por Bourdieu, Giddens e Sewell Jr, os quais compartilham a opinião de que as práticas materiais e os sistemas simbólicos se constituem reciprocamente ou são "dualisticamente estruturados".

Em a “A constituição da sociedade”, Giddens (2003) propõe que a estrutura e a ação humana pressupõem-se mutuamente, na medida em que as estruturas informam as práticas humanas, que simultaneamente constituem, reproduzem e inovam as estruturas, transformando-as.

De outro lado, Bourdieu em sua teoria das práticas sociais afirma que as ações e as práticas humanas são criadas e orientadas por algo semelhante ao que Giddens chama de “dualidade da estrutura”. Em lugar de “regras” e “recursos”, o autor apresenta a definição de “estruturas mentais” e do “mundo dos objetos”, sendo estes guiados e transformados pelas práticas dos agentes sociais. Segundo Ribeiro (1999), Bourdieu utiliza o conceito de “habitus” para reformular o dualismo entre ação e estrutura; para definir as práticas informadoras e transformadoras das “estruturas mentais” e do “mundo dos objetos” em campos específicos (e.g. o campo jurídico), assim como entre os campos. O “habitus” é definido como uma espécie de “senso do jogo” que possibilita a constituição mútua da ação e das estruturas.

Para Bourdieu (2006) o “habitus” no campo jurídico permitiria a profissionais de desigual competência técnica e social uma capacidade de compreender os significados e de usar de modo eficiente os recursos que podem e devem ser empregados em cada uma das situações vivenciadas num tribunal[7]. Para o autor a lei tem “o poder oficial de nomear”. Assim como são influenciadas por representações sociais e julgamentos morais difundidos socialmente, os relatos e as decisões consubstanciados nos veredictos definem o certo e o errado na sociedade.

De outro lado, Sewell Jr. (1992) reformula a teoria da estrutura e da prática contida nas abordagens de Giddens e Bourdieu. Ao tratar da dualidade entre estrutura e ação o autor conclui que as estruturas “são mutuamente constituídas por esquemas culturais e conjuntos de recursos que conferem poder e restringem a ação social, e tendem a ser reproduzidos por essa ação” (SEWELL JR., 1992, p. 27, tradução nossa). O autor acrescenta que as estruturas são dinâmicas, apresentando-se como o resultado em constante evolução e a matriz de um processo de interação social.

No contexto do presente trabalho, surge a questão da constituição mútua das práticas punitivas (e.g. a decisão na sentença criminal) e da cultura (e.g. o significado destas sentenças) que tem sido abordada em estudos da “sociologia punitiva”. Garland (1990, p. 198) nos oferece uma relevante análise sobre a relação entre a cultura e a punição. Segundo este autor a punição deve ser entendida como “um artefato cultural complexo que codifica em suas próprias práticas os signos e os símbolos da cultura mais ampla”. Assim, a punição envolve uma rede de práticas sociais materiais (ações) em que as formas simbólicas são sancionadas tanto pela força, quanto pelo uso. Também quando tratamos de práticas punitivas, devemos pensar a cultura (símbolos e seus significados) e as práticas sociais (ação social e práticas instrumentais) como mutuamente constitutivas.

Conforme leciona Garland, “os padrões gerais de significação cultural indubitavelmente influenciam as formas de punição. Mas também é verdade que a punição e as instituições penais ajudam a modelar a cultura e contribuem para a criação dos seus termos" (GARLAND, 1990, p. 249).

Corroborando esse entendimento, Ribeiro (1999) destaca que entre as diversas práticas por meio das quais a punição influencia e propaga significados culturais estão as do julgamento por sentença, sendo que o momento da sentença reifica simultaneamente a significação da atividade judicativa e o significado de outras categorias culturais.

Diante do exposto até aqui, podemos concluir que o estudo do processo de julgamento ou de tomada da decisão criminal surge como uma importante ferramenta na busca por explicações sobre os significados culturais que definem e são definidos por práticas punitivas.

3. O Poder Judiciário e os sistemas de orientação da magistratura brasileira.

O estudo do processo de tomada da decisão judicial exige a contextualização dos atores responsáveis por sua concretização, ou seja, a identificação dos sistemas de orientação e da cultura jurídico-institucional em que estão inseridos. Deste modo, faremos uma breve exposição a respeito da influência das características do Poder Judiciário brasileiro sobre a racionalidade das práticas dos magistrados a ele vinculados.

Nesse sentido, consideramos emblemáticas as palavras de Sadek (1998, p. 1) para quem o Poder Judiciário “vem se transformando em um ator político de primeira grandeza. Juízes vêm ganhando um corpo marcado pela idade, gênero, estado civil, origem social e uma alma, cada vez mais exposta a afetos, sentimentos e paixões”. Num cenário em transformação, esses atores não só disputam os novos espaços como ganham diferentes papéis.

Em “Corpo e Alma da Magistratura Brasileira”, Werneck Vianna, Carvalho, Melo e Burgos (1997) destacam o crescente protagonismo social e político dos magistrados brasileiros, analisando as mudanças institucionais decorrentes do processo de redemocratização/constitucionalização do sistema político e judiciário, bem como das características das demandas que provocam a jurisdição. Embora de forma retardatária, ainda sem identidade plena com o processo de democratização, sem o adequado amadurecimento organizacional e doutrinário, os juízes viram-se alçados à condição de atores cada vez mais influentes na sociedade civil e na vida pública brasileiras. Forçados a atuarem constantemente como guardiões dos direitos fundamentais e sociais, comprometidos com a realização da justiça, deixaram de ser apenas a “boca inanimada da lei” para atuarem como agentes criadores e transformadores da estrutura social.

Werneck Vianna et al. (1997) voltaram-se inicialmente para a figura do juiz e suas circunstâncias, enfatizando o processo de diferenciação cultural dos magistrados. Se antes os juízes brasileiros provinham essencialmente das elites proprietárias, hoje também têm origem social nas camadas médias e nos setores sociais ditos “subalternos”, em virtude da democratização do acesso à qualificação universitária e do recrutamento por concurso público. A magistratura também desconhece mecanismos formais de socialização que integrem o novo juiz à cultura institucional, sendo característica dessa corporação uma maior permeabilidade às correntes de opinião expressas na sociedade.

Werneck Vianna et al. (1997) lembram que, nos primeiros anos do período de transição democrática, o Judiciário esteve comprometido apenas com a manutenção da separação entre os Poderes Legislativo e Executivo, bem como afastado das demandas por direitos sociais. Após a promulgação da Carta Política de 1988 teve seu papel republicano redefinido, levando-o a dirimir conflitos institucionais entre o Legislativo e o Executivo; a atuar em demandas pela ampliação de direitos, relacionadas à defesa do cidadão e da iniciativa privada contra o forte intervencionismo estatal na economia.

Num contexto de expansão desordenada das normas dispositivas, muitas vezes, editadas por fatores conjunturais; de expansão das matérias submetidas a controle jurídico; de diluição dos limites entre público e privado; de aparição de inúmeras fontes materiais de direito, favorecendo o pluralismo jurídico; e de crescente esvaziamento do direito positivo; ocorre a chamada “crise do Poder Judiciário”. Este, ainda sob forte influência dos cânones do positivismo jurídico, do direito codificado e da separação dos Poderes, é colocado diante de um sem-número de novos problemas para cujo enfrentamento não estava preparado material, conceitual e doutrinariamente. A necessidade de adaptação à nova realidade social brasileira leva a uma progressiva transformação da malha institucional do Judiciário e de sua cultura jurídica que, tradicionalmente positivista, tende a incorporar a dimensão da justiça na tutela de direitos e liberdades de sentido promocional e, inclusive, de pequenos interesses antes desamparados. E esse contexto demanda a desneutralização do Judiciário e uma postura mais criativa por parte do juiz na interpretação da lei, abrindo espaço também para uma maior discricionariedade.

Essa transformação repercute sobre o sistema de orientação dos magistrados brasileiros levando a uma tendência de inovação institucional no exercício da jurisdição, implicando um movimento de aproximação entre o sistema de “civil law” – tradicionalmente normativista – e os institutos e orientações da “common law”. Nesse sentido, Werneck Vianna et al. (1997) ressaltam que a magistratura encontra-se recortada pluralisticamente por diversos sistemas de orientação, mantido o consenso apenas sobre a defesa da autonomia do Poder Judiciário e da soberania do juiz. Assim, temos: 1) um sistema de orientação que reconhece o Poder Judiciário como um ator coletivo que quer se envolver no processo de transformação social; 2) um sistema de orientação que aponta o juiz como um agente solitário que aproxima o direito da justiça; 3) um sistema de orientação que compreende aqueles juízes fiéis ao cânon da “civil law” e da “certeza jurídica”; e, por fim, 4) um sistema de orientação, ainda embrionário e minoritário, que defende o uso alternativo do Direito e formas extra-judiciais de composição do conflito.

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Deste modo, ganha força a tendência de desneutralização do judiciário, com aumento da margem de discricionariedade e do ativismo dos magistrados na prática judicativa. Isso leva à chamada “judicialização da política” que questiona a rígida separação entre os Poderes e afasta a exclusividade do Legislativo na formulação de leis. Um fenômeno universal que vem afetando tanto os sistemas de “common law” como os de “civil law”, respeitadas as especificidades de cada modelo e de suas relações com o sistema político (VALLINDER, 1994).

Constatadas essas transformações no perfil institucional do Judiciário, na cultura jurídica e nos sistemas de orientação dos magistrados brasileiros, bem como sua repercussão sobre o processo de tomada de decisão, cumpre registrar o alerta de Werneck Vianna et al. (1997, p. 16) para a importância da “incorporação de análises qualitativas que, tendo como objeto a sentença e a natureza do feito sob julgamento, venham a demonstrar ‘para quê’ e ‘a quem’ vem servindo todo o imenso aparelho do Judiciário”.

4. Os magistrados e a subjetividade.

Diante da pluralidade de sistemas de orientação dos magistrados brasileiros, do aumento de sua margem de discricionariedade na prática judicativa e da tendência de desneutralização do Judiciário, surge a discussão a respeito do mito da imparcialidade do julgador na interpretação e aplicação da lei.

O princípio da imparcialidade do julgador afirma que este deve conservar um posicionamento indiferente e distante em relação ao que está sendo discutido no processo e às partes, bem como ser capaz de se desprender de suas pré-compreensões. Porém, como vimos até aqui, ainda que inconscientemente, o magistrado no exercício da jurisdição atua impulsionado por categorias de significação próprias ou aquelas difundidas na sociedade e no ambiente institucional em que está inserido, sejam elas chamadas de valores, princípios éticos, filosóficos ou ideológicos.

Neste sentido, Ricoeur (2008, pp.175-176) diferencia entre os atos de julgar e decidir. Julgar é opinar; expressar uma opinião a respeito de alguma coisa. Para o autor há um encontro “entre o lado subjetivo e o lado objetivo do julgamento; lado objetivo: alguém considera uma proposição verdadeira, boa, justa, legal; lado subjetivo: adere a ela”. Assim, durante o processo o juiz se convence intimamente sobre os fatos e provas que lhe são apresentados nos autos, sendo que neste momento ele é parcial, pois se posiciona sobre os acontecimentos. Lado outro, é na decisão que ele expõe o resultado deste julgamento, fundamentando-o e expondo suas motivações (livre convencimento motivado).

Segundo Portanova (apud PRATES FRAGA, 2006, pp. 83-84), os elementos ideológicos manifestam-se em três fatores motivacionais do processo decisional, que influem no modo de interpretação da ordem jurídica pelo juiz, quais sejam: 1) a “motivação probatória” que envolve a relação entre o magistrado e as provas a ele apresentadas, ou seja, o modo como os fatos e provas apresentados no curso do processo serão interpretados; 2) a “motivação pessoal” que refere-se às interferências pessoais, psicológicas, aos valores do magistrado, à simpatia ou não por determinada testemunha, ao interesse ou desinteresse em relação à questão objeto da causa, à inclinação para uma interpretação mais rígida ou flexível, os afetos, ódios, rancores, paixões; e, por fim, 3) a “motivação ideológica” que envolve a concepção de mundo dos magistrados, ou seja, a formação familiar, o tipo de educação, os valores presentes em sua classe social, as próprias tendências ideológicas que permeiam sua profissão.

A fim de ratificar esse caráter eminentemente subjetivo das decisões judiciais, Prates Fraga (2006) destaca vários estudos sobre o processo de tomada de decisões judiciais, classificando-os como estudos de “sentencing” por analisarem o papel do sistema penal no contexto social a partir de uma perspectiva essencialmente sociológica, questionando sobre sua eventual contribuição na reprodução de desigualdades, preconceitos e senso comum.  Nessa perspectiva, Prates Fraga (2006, p. 87-89) inclui os seguintes estudos:

  1. Karl-Dieter Opp e Rodiger Penker analisaram a variação na maneira de julgar de acordo com o status social do acusado, demonstrando que a origem social dos acusados teria um papel importante na reprovação de sua conduta e também na severidade da pena imposta;
  2. Em 1990, o Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo[8] constatou “o maior número de prisões em flagrante, o menor grau de acesso à justiça, o comprometimento do direito de defesa, bem como a maior incidência de desfechos condenatórios, sempre em desfavor dos acusados negros”.
  3. A Fundação Sistema de Análise de Dados (FSEADE/FAPESP) também verificou a disparidade de tratamento entre réus brancos e negros, especialmente no que diz respeito à presença desses últimos no fluxo da justiça: “enquanto os primeiros vão saindo gradativamente do sistema (...), com os negros (...) ocorre o inverso, vão gradativamente sendo mais representados e permanecendo no sistema pela prisão, condenação e execução da pena”;
  4. O Instituto Brasileiro de Ciências Criminais analisou os processos nos crimes de roubo em São Paulo e verificou que na fundamentação das decisões judiciais analisadas encontram-se inúmeras motivações de caráter extrajurídico e de natureza eminentemente ideológica, que se refletem no senso comum acerca do tema criminalidade.

Também nesse sentido, podemos citar o estudo realizado por Claudia Priori com detentas da Penitenciária Feminina do Paraná. Priori (2011, p. 2726) coletou passagens de decisões judiciais que “evidenciam como as representações sociais e os estereótipos atribuídos ao feminino, bem como ao rompimento do normativo de gênero são ressaltados pelo discurso do judiciário a fim de produzirem argumentos e definições jurídicas para a condenação”.

Como vimos até aqui, o reconhecimento da pluralidade dos sistemas de orientação dos magistrados brasileiros, do aumento de sua margem de discricionariedade na prática judicativa e da tendência de desneutralização do Judiciário, nos remete à importância da reflexão sobre o atuar dos juízes no momento da decisão.

Embora seja afirmada a imparcialidade do julgador na interpretação e aplicação da lei, percebemos que, mesmo inconscientemente, o magistrado no exercício da prática jurisdicional atua impulsionado por padrões gerais de significação cultural, sejam próprios ou oriundos da sociedade e do ambiente institucional em que está inserido.

Importa destacar que esses padrões gerais de significação cultural orientam e organizam a ação do magistrado na prática decisional, sendo que esta, simultaneamente, constitui, reproduz e inova esses padrões, transformando-os.

Sendo assim, o estudo do processo de tomada da decisão criminal pode auxiliar na busca por explicações sobre os significados culturais que definem e são definidos por práticas punitivas. A seguir, destacamos a relevância dos estudos de “sentencing” na análise do papel do sistema penal no contexto social e da relação entre as práticas punitivas e a cultura, apresentando os fundamentos teóricos que orientam e conformam tais estudos.

5. A contribuição dos estudos de “sentencing”.

Diante de tudo que vimos até aqui, podemos concluir que a decisão judicial, não pode ser concebida apenas como o resultado de uma racionalidade técnico - cientifica; posto que na realidade reflete um complexo sistema de orientações composto por representações, valores, pressões políticas e visões de mundo que influenciam o julgador no momento de proferir sua decisão. E muitas vezes lacunas, imprecisões legislativas ou normas sujeitas à integração interpretativa, possibilitam certa margem de discricionariedade aos seus intérpretes.

 Como vimos, diante de tais situações, os magistrados recorrem à experiência profissional, à intuição, a valores e representações sociais, aos sistemas de orientação que informam a cultura jurídica, ao que Giddens chamou de “regras”, Bourdieu de “habitus” e Sewell Jr de “esquemas culturais”, enfim a categorias que informam as práticas humanas ao mesmo tempo em que são por estas constituídas, reproduzidas e transformadas.

É sob esta perspectiva que surge a “Theory of sentencing”, caracterizada por Vanhamme e Beyens (apud MARTINS, 2011, p. 112), como “um vasto campo de pesquisas empíricas sociocriminológicas, centradas nas disparidades das penas, a partir da tomada de decisão do julgamento penal”, com foco na figura do juiz e nas disposições jurídicas incorporadas à sua práxis social e profissional.

Em artigo dedicado à revisão da bibliografia sobre a “sentencing”, Prates Fraga (2008) observa que, em geral, as pesquisas sobre o processo decisório eram marcadas por certa negligência com a figura do juiz, elas buscaram demonstrar a relação entre vários fatores extralegais e a jurisprudência, mas disseram-nos muito pouco sobre a ligação entre o universo social e a decisão, isto é, e o juiz.

Estudos sobre a sentença são largamente empreendidos na América do Norte (Estados Unidos e Canadá) e na Europa (França, Holanda e Inglaterra), enquanto no Brasil começa a aflorar o interesse pela “sentencing”, corpo teórico que promove a desmistificação da idéia de imparcialidade na tomada de decisões judiciais ao centrar sua análise na atuação dos magistrados e nas práticas e variáveis sócio-históricas, filosóficas e jurídicas incorporadas no processo de racionalização da decisão, influenciando sua práxis e dinamizando uma cultura jurídica capaz de aplicar penas distintas para crimes semelhantes.

Martins (2011) chama a atenção para o fato de que a “sentencing” encara a análise do processo decisório como prática social complexa e subjetiva, em que convergem questões sobre os critérios eleitos pelos magistrados na interpretação da lei e no exercício do poder discricionário.

Vanhamme e Beyens (2007) salientam que a temática central dos estudos de “sentencing”, ou seja, a disparidade das penas na atividade judicativa envolve a discussão acerca da igualdade de tratamento, cuja compreensão requer uma contextualização do leitor sobre o debate sociológico em torno da ruptura entre a modernidade e a modernidade tardia, modelos societais com desenvolvimentos diversos no tocante à sociedade, às formas de Estado, de penalidade e de ciência, cuja configuração interferem nos contextos punitivos e na cultura penal expressos pelos tribunais.

5.1. Modernidade e a pesquisa em “sentencing”.

Vanhamme e Beyens (2007) ressaltam que a modernidade, emergiu gradualmente a partir do século XVII, em torno do consenso de que a razão e o conhecimento são fatores determinantes do progresso social e tecnológico, capaz de promover maior segurança e liberdade. Neste contexto, surgiram novas instituições, não mais baseadas no imediatismo das relações sociais, cuja viabilidade é assegurada por uma legitimidade simbólica fundada, principalmente, na confiança no progresso em que  se apoiam (GIDDENS, 1991). 

O “Estado Providência” ou de “Bem-estar Social”, característico da modernidade, é marcado pela visão de integração de condições para promoção da igualdade de oportunidades e da mobilidade social. Assim, preconiza-se o desenvolvimento de políticas econômicas e sociais (educação, trabalho, saúde) auxiliares na luta contra o crime, sendo este percebido como um sintoma de um problema social e o criminoso como um indivíduo passível de aperfeiçoamento. O objetivo da política penal é a ressocialização. 

De outro lado, Vanhamme e Beyens (2007) localizam a ascensão da modernidade tardia a partir da Crise do Petróleo de 1973. Na década de 1980, o colapso da União Soviética abriu o caminho para a globalização econômica e para o neoliberalismo; sendo que a maximização dos riscos, cada vez mais imprevisíveis, reforçou a insegurança  sentida desde a crise. Essa insegurança abalou a confiança na capacidade da razão para conduzir ao progresso e à liberdade, gerando instabilidade, desencanto e o questionamento da legitimidade das instituições de poder (GIDDENS, 1991). 

A crise estrutural e a globalização privaram gradualmente o Estado do anterior monopólio e controle da economia. Enfraquecido, o Estado adotou a lógica neoliberal:
transferindo cada vez mais ao indivíduo a responsabilidade por seu bem-estar. Assim, cresce a dúvida sobre a capacidade do Estado para condução ao progresso e para proteção do cidadão. A crescente preocupação estatal com “a opinião pública”, evidencia o processo de deslegitimação do poder público.

 Economicamente enfraquecido, o Estado volta-se para a questão da ordem e da criminalidade, investindo no Direito Penal, como fonte de relegitimação (HOUCHON, 1996 apud VANHAMME & BEYENS, 2007). De um lado, isso gera o interesse por uma justiça mais relacional que considera a vítima. De outro, o Estado redireciona a política criminal para a gestão preventiva dos riscos da criminalidade, assumindo o risco e o controle como categorias centrais (GARLAND, 2008). 

Neste momento, a política penal descentraliza a meta de ressocialização do infrator fundada na lógica inclusiva, para reorientar-se para a meta de recuperação e auto-legitimação de suas agências, seguindo uma lógica excludente (YOUNG, 2002). Isso conduz a uma política criminal de expansão das penas, provendo uma mudança do “Estado de Bem-estar Social” para um “Estado Social de Segurança” [9], onde a segurança se torna um fim em si mesmo e a pena um instrumento de regulação de uma política de redução dos riscos, principalmente contra populações sócio-economicamente desfavorecidas (MARY, 2001).

O Estado moderno emprega o conhecimento como um fator de dominação, controle e poder (FOUCAULT, 1987)[10]. Vanhamme e Beyens (2007) lembram que na ciência os elementos da modernidade são atualizados para o paradigma positivista, que conhece apenas a realidade material. Visando a previsão, as teorias focalizam relações causais entre diferentes fenômenos e, portanto, se baseiam principalmente em métodos quantitativos. 

As Ciências Humanas se inscrevem numa visão consensual da modernidade. A Sociologia durkheimiana considera que os mesmos valores são compartilhados em estados fortes da consciência coletiva, que os fatos sociais são coisas e que o exame de comportamentos constantes em condições idênticas pode levar ao conhecimento da sociedade (DURKHEIM, 1999; 2007). Nessa mesma linha, o Direito Penal é encarado como uma expressão de consenso social (TAYLOR et al. apud VANHAMME & BEYENS, 2007). 

Na modernidade tardia, encarando a insegurança, a ciência procura a compreensão e reflexão da validade interna do raciocínio. Considerando a existência de diferentes visões do mundo, as Ciências Humanas desenvolvem o construtivismo e abordagens complexas (BRODEUR, 1993).  Na sociologia, os modelos de compreensão são sistêmicos e interacionistas, sendo a realidade social apreendida como algo construído (BERGER e LUCKMANN, 2004). 

Os fatos sociais deixam de ser entendidos como coisas materiais, para surgirem como interpretações humanas sobre as coisas, exigindo uma análise qualitativa. O direito é visto como uma construção social que apoia o grupo social dominante, o que implica numa problematização da reação penal e da atividade do Estado. A criminologia da reação social examina tanto o crime quanto a criminalização, primária e secundária, enquanto construções (PIRES, 1993; TAYLOR et al. apud VANHAMME & BEYENS, 2007). 

As transformações decorrentes da passagem da modernidade para a modernidade tardia abriram espaço para estudos sobre o juízo decisório de aplicação da pena, enfim, sobre a sentença. Como vimos, o tema central destes estudos é a análise da disparidade relacionada à natureza ou à duração das penas, quando aplicadas a sujeitos que praticaram delitos semelhantes.

A desigualdade de tratamento dos casos criminais afronta um princípio basilar do Estado de Direito, qual seja, a afirmação da igualdade de todos perante a lei. Segundo a lógica integradora do “Estado de Bem-estar Social”, o ideal de igualdade é uma preocupação central, motivo pelo qual a investigação sobre os determinantes da condenação alcançou grande desenvolvimento no período que marcou o auge do “welfare state”, final dos anos 1960 e início dos anos 1970. Momento em que emerge a abordagem interacionista e a criminologia da reação social.

Vanhamme e Beyens (2007) identificam duas abordagens dominantes nos estudos de “sentencing”: 1) uma abordagem tradicional (neopositivista), preocupada com o resultado das decisões e a identificação das variáveis ??que produziram resultados diferentes. Produz estudos quantitativos/correlacionais, levantam dados estatísticos de fatores previamente identificados, buscando detectar e explicar as disparidades; e 2) uma abordagem sociológica, que baseada na ideia de reflexividade da modernidade tardia, critica os estudos de tradição neopositivista, pois considera que, ao focarem o resultado, estes estudos deixam de apreender o processo de interpretação e classificação do tomador de decisão enquanto indivíduo, bem como todo o contexto profissional, organizacional e social em que a decisão é tomada, o que pode levar a limitações significativas. Como alternativa, propõe a utilização de técnicas de pesquisa qualitativa, como observações e entrevistas orientadas para a interpretação e percepção de dados “objetivos”. Essas abordagens interpretativas focalizam o processo em contexto e não apenas o resultado.

5.2. Os modelos teóricos em estudos de “sentencing”.

Numa revisão da literatura sobre a “sentencing”, Martins (2011) identifica quatro modelos conceituais em estudos desta espécie, em destaque principalmente em países da Europa, a saber:

  1. Modelo teórico sociobiográfico – desenvolvido na França, volta-se para o universo das representações coletivas dos magistrados, destacando a desigualdade social entre estes e os acusados, que promoveria uma justiça seletiva. Este modelo engloba estudos que pretendem analisar: a) as articulações das representações socioprofissionais dos juízes (e.g. auto-imagem), enquanto modelos geradores de conduta nas práticas judiciárias; b) a mentalidade geral dos juízes e sua visão sobre a criminalidade e sobre as penas, bem como sua repercussão na racionalidade dos julgamentos; c) as características sociobiográficas do juiz (e.g. idade, gênero, percurso profissional, convicções políticas ou religiosas). [11]
  2. Modelo teórico antropológico – também desenvolvido na França, preocupa-se em desvendar os mecanismos de legitimação moral da tomada de decisão dos magistrados perante a coletividade, o que para Weber (apud MARTINS, 2011, p. 117) estaria na “legitimidade técnico-formal das regras anunciadas e pela racionalidade dessas regras na ação social”. As pesquisas fundadas neste modelo são orientadas pelo juridicismo, ou seja, interessam-se pela ação do direito, pela sua legalidade formal, pela legitimação do aparelho institucional e pela formalização de suas normas;
  3. Modelo teórico sócio-estrutural – desenvolvido na Bélgica, ganhou destaque com Beyens (apud MARTINS, 2011) que adota a teoria da estruturação de Giddens (2003) e emprega abordagens quantitativas e qualitativas, ocupando-se da análise da filosofia penal dos juízes, entendendo estes como mediadores entre a sociedade e a cultura penal, e a pena como prática social significativa. Dessa forma, a autora compreende que a cultura penal das instituições, através da intencionalidade da ação do juiz, pode ser punitiva/repressiva ou ressocializadora. Para Keijser (apud MARTINS, 2011) a determinação da pena é mais conduzida pelas considerações pragmáticas que pelos princípios filosóficos doutrinários penais. Hogarth (apud MARTINS, 2011) apresenta uma versão interpretativa dos tipos de juízes que podem ter um perfil mais progressista[12] ou clássico[13], conforme sua filiação a uma cultura penal mais ressocializadora ou repressiva, respectivamente; e
  4. Modelo teórico sociocognitivo – modelo mais complexo, desenvolvido por Vanhamme (apud MARTINS, 2011, p. 118) que compreende o magistrado “como um ator social que pode atribuir um sentido à pena e a sua determinação dentro de um construto macroestrutural de seu contexto de atividade”, Vanhamme afirma que “a tomada de decisão não é mecânica, neutra e objetiva, ela se determina por processos cognitivos, afetivos e morais, pois esses elementos fazem parte do tratamento humano da informação”.
5.3. Categorias de análise e metodologia em estudos de “sentencing”.

Como vimos, existem duas abordagens dominantes nos estudos de “sentencing”: a abordagem tradicional e a abordagem sociológica (VANHAMME & BEYENS, 2007). Em revisão da literatura sobre o tema, Prates Fraga (2008) considera a metodologia e as categorias de análise utilizadas na identificação das disparidades das penas para diferenciar essas duas tradições.

A abordagem tradicional da “sentencing” baseia-se na investigação das disparidades das penas a partir de correlações estatísticas entre a decisão e fatores legais[14] e extralegais[15] que podem influenciar as variações das penas no processo de incriminação. Considera também como a compreensão dos magistrados sobre os objetivos ou funções da pena (punitiva/preventiva ou retributiva/ressocializadora) [16] interfere nas suas orientações decisórias. Sendo que os fatores legais e extralegais são apreendidos a partir de um “corpus” de análise quantitativa sobre o crime.

São critérios legais ou fontes formais das decisões: a legislação, 
a jurisprudência, as diretrizes judiciais definitivas (súmulas e súmulas vinculantes no Direito brasileiro) e, num sentido menos formal e com menor força, a doutrina penal, ou seja, os comentários de juristas renomados sobre diferentes questões (ASHWORTH, 2005).

Tais elementos envolvem diretamente o processo de aplicação das regras jurídicas materiais e processuais, que são manejadas pelos magistrados em sua argumentação para classificação dos comportamentos delituosos, conforme o sistema de valores e a filosofia penal que orientam os dispositivos penais.

Conforme lição de Ashworth (2005), qualquer magistrado ou tribunal criminal considera como finalidades da condenação: a punição dos infratores; a redução da criminalidade (inclusive a diminuisão da capacidade de dissuasão); a ressocialização ou reabilitação dos delinquentes; a proteção da ordem pública; e a reparação pelos ofensores dos danos causados às vítimas de seus crimes. Sendo assim, a natureza e a quantidade da pena aplicada na sentença está relacionada às justificativas que informam a condenação.

Portanto, uma pena baseada na dissuasão geral será aplicada quando o juiz pretende concentrar-se sobre a gravidade da infração e enviar uma mensagem para a sociedade (prevenção/dissuasão geral), enquanto a sanção mais individualizada será usada nos casos em que o magistrado pretende influenciar o comportamento futuro do acusado (prevenção especial/dissuasão individual) (PRATES FRAGA, 2008).

No tocante aos critérios legais se destaca a análise da natureza e da gravidade dos fatos. Na avaliação da gravidade o magistrado revela suas preocupações, sua disposição sobre a realidade ao seu redor, pois é nesse item que ele enquadra os fatos e circunstâncias (agravantes ou atenuantes) que envolvem a conduta do acusado ao disposto na norma jurídica.

Além disso, a “sentencing” demonstra que na avaliação da gravidade do fato, os juízes também levam em conta a finalidade atribuída à sua função institucional, a preservação da ordem social e a defesa de valores da cultura judiciária penal no contexto social aos quais aderem (VANHAMME & BEYENS, 2007).

No tocante aos critérios extralegais, a abordagem tradicional considera as características dos acusados: os antecedentes criminais, o gênero, a posição social e a origem étnica.

A avaliação dos antecedentes criminais (reincidência) envolve a discussão sociológica dos estudos sobre o passado do agressor e repercute em desfavor do acusado no processo de incriminação. Isso porque a existência de antecedentes criminais pode justificar a prisão, indicando uma tendência do acusado à delinqüência latente e à insubordinação social.

O Código Penal brasileiro, no artigo 68, determina que para aferir a pena base o juiz deve considerar a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social, a personalidade do agente, os motivos, as circunstâncias e conseqüências do crime, bem como o comportamento da vítima. E sobre a pena base incidirão, se presentes, as circunstâncias agravantes (artigos 61 e 62) e atenuantes (artigos 65 e 66), bem como as causas específicas de diminuição ou aumento da pena previstas em cada tipo penal.

Assim, os magistrados brasileiros receberam autorização legal para valorar elementos extralegais num único momento da aplicação da pena, vedado o bis in idem, ou seja, tais circunstâncias devem ser apreciadas apenas uma vez na aplicação da pena, sejam elas favoráveis ou desfavoráveis ao acusado.

Quanto aos antecedentes existe a possibilidade de consulta a documento oficial, qual seja a Certidão de Antecedentes Criminais – CAC, geralmente anexada pela Polícia aos autos do Inquérito Policial, sendo certo que o magistrado também poderá determinar, de ofício ou a requerimento das partes, a juntada de certidão atualizada durante a instrução judicial.

O gênero do acusado é outra característica importante, porém, as altas taxas de encarceramento masculino e a subrepresentação feminina nas estatísticas criminais, fizeram com que os estudiosos da “sentencing” não se preocupassem em promover a diferenciação entre homens e mulheres condenados.

Vanhamme e Beyens (2007) registram que geralmente as pesquisas em “sentencing” adotam uma perspectiva masculina, motivo pelo qual não são unânimes os resultados obtidos nas investigações sobre a influência do gênero sobre a decisão. De um lado, citam pesquisas estatísticas que indicam que, mesmo depois de aferir os antecedentes criminais e a gravidade do fato, as mulheres recebem um número menor de condenações à prisão e suas penas são menos longas. De outro, citam estudos que associam à relativa leveza das sentenças atribuídas às mulheres ao cometimento de crimes menos graves, aos antecedentes criminais leves ou ausentes, bem como à conduta social positiva. Ou, ainda, estudos norte-americanos que não encontraram relação entre o gênero e a pena aplicada na sentença.

Existem numerosas teorias na literatura sociológica sobre as diferenças entre a criminalidade feminina e masculina, bem como sobre a resposta do Sistema de Justiça Criminal a ambas. Lembremos, porém, algumas das explicações para o tratamento diferenciado das mulheres nos tribunais. Pollak (1950) afirma que um comportamento paternalista dos magistrados (homens) em relação às mulheres leva à aplicação de penas mais brandas. Para Daly (1987), o custo social e familiar da pena é levado em conta, quando a mulher ou homem são condenados, remetendo a questão para a proteção familiar. Segundo Gelsthorpe (apud VANHAMME & BEYENS, 2007), os juízes enquadram os acusados em duas categorias: aqueles que têm problemas e aqueles que fazem o problema. Segundo a autora, as mulheres estariam na categoria de acusados que têm problemas, por isso, antes da punição, necessitam de ajuda. E Martins (2011) lembra que a indulgência dos magistrados é menor quando a mulher é masculinizada ou se aproxima de papéis masculinos. O que se relaciona à expectativa dos juízes quanto ao desempenho dos papéis femininos na sociedade, situação, que como vimos, também foi percebida por Priori (2011).

A variável classe social do acusado está relacionada à clássica discussão sociológica presente nos estudos de classe, estratificação, desigualdade social e na teoria do conflito (MARTINS, 2011).

Vanhamme e Beyens (2007) explicam que a maior representatividade de grupos sociais desfavorecidos nas prisões, fez com que os estudos de “sentencing” procurassem saber se há alguma relação entre a classe social do acusado e a probabilidade de pronúncia pelos Juízes, bem como de condenação à prisão (tese da discriminação). Grande parte destes estudos limitou-se à análise da probabilidade de prisão dos réus desempregados.

Kannegieter (apud VANHAMME & BEYENS, 2007) constatou, por exemplo, que os desempregados são freqüentemente condenados  à prisão, salvo nos grupos de criminosos em que a diferença entre trabalhadores e desempregados desaparece. Esta seria uma demonstração de que o custo social da punição é levado em conta pelos Juízes: a prisão é vista como uma pena mais severa para os trabalhadores do que para os desempregados. Assim, ter um emprego é um critério para uma discriminação positiva. Kannegieter conclui que, embora a posição social do acusado tenha alguma influência nas decisões judiciais, os fatores relacionados com a gravidade do crime e os antecedentes criminais têm mais peso.

A variável origem étnica recebeu grande atenção dos pesquisadores em países onde se verifica uma proporção significativa de estrangeiros e de minorias étnicas na prisão. Em países com um grande número de imigrantes, as minorias étnicas são mais facilmente associadas à alteridade cultural e à periculosidade, muitas vezes em razão do contexto social e histórico de desenvolvimento dos países de origem. Para Vanhamme e Beyens (2007), a diferenciação dos acusados conforme a origem étnica relaciona-se intimamente com a variável classe social.

Martins (2011) ressalta que uma das dificuldades dessa variável está na dispersão das categorizações de raça/cor, conforme o contexto histórico e social do acusado. Além disso, a pertença étnica muitas vezes é declarada pelo acusado e depende da padronização da autoridade policial, o que abre margem para distorções. No Brasil diversos estudos constataram que a população carcerária nacional é composta por uma esmagadora maioria de indivíduos não brancos (LEMGRUBER, 1983; VARGAS, 2000; SOARES & ILGENFRITZ, 2002; RIBEIRO, 2003; VOEGELI, 2003; CARVALHO, 2007; MARTINS, 2011).

Uma vez exposta a metodologia e as categorias de análise empregadas pela abordagem tradicional da “sentencing”, cumpre registrar que esta foi alvo de duras críticas. As pesquisas desta tradição foram acusadas de não alcançarem elementos capazes de definir um paradigma interpretativo do magistrado, enquanto ator em seu contexto organizacional; de limitarem a análise aos resultados das decisões cognitivas, com ênfase em decodificações do comportamento dentro de formulações matemáticas; e de promoverem o isolamento de cada variável relacionada à decisão do juiz descontextualizando-a (PRATES FRAGA, 2008).

Como alternativa para as dificuldades apontadas pelos críticos da perspectiva tradicional, surge a abordagem sociológica da “sentencing” que assume espectro mais holístico, contextualizando o fenômeno da tomada de decisão e empregando métodos qualitativos no dimensionamento do contexto social e organizacional em torno do processo decisório. As categorias elencadas pela abordagem sociológica para explicar as disparidades das penas envolvem aspectos contextuais da sentencing[17] e características do juiz[18]. (PRATES FRAGA, 2008).

Os estudos de “sentencing” que abordam o processo decisório como fenômeno social complexo e contextualizado podem se localizar numa dimensão macrossocial, considerando o processo punitivo num contexto mais amplo, ou numa dimensão microssocial, que considera o mesmo processo como uma prática localizada, enquanto atividade colaborativa, uma vez que ela converge numa cadeia mais ampla, interagindo com diferentes atores penais. Ambas as dimensões são partes integrantes do mesmo universo contextual, caracterizando a cultura jurídica (MARTINS, 2011).

O conceito de cultura jurídica é essencial para o entendimento da articulação entre as instâncias judiciais e a esfera política. Segundo Souza Santos et al. (1996, p. 19), a cultura jurídica é o “conjunto de orientações a valores e interesses que configuram um padrão de atitudes diante do direito e dos direitos e diante das instituições do Estado que produzem, aplicam, garantem ou violam o direito e os direitos”.

Ainda segundo Souza Santos et al. (1996), nas sociedades contemporâneas, um elemento central da cultura jurídica é o Estado, motivo pelo qual aquela é sempre uma cultura jurídico-política, razão pela qual só pode ser plenamente compreendida no âmbito mais amplo da cultura política. De outro lado, a cultura jurídica reside também nos cidadãos e em suas organizações, sendo também uma parte integrante da cultura de cidadania. E, nesse nível, distingue-se da cultura jurídico-profissional, que se refere apenas aos profissionais do foro assumindo características próprias relacionadas com a formação, a socialização, o associativismo, etc.

Desta forma, a abordagem sociológica da “sentencing” visa compreender a prática judicante a partir do contexto institucional e da cultura jurídica em que estão inseridos os magistrados. Segundo as pesquisas de Beyens, Tata e Hutton (apud MARTINS, 2011), há uma cultura penal tácita apreendida pelos magistrados em início de carreira através do processo de socialização profissional, que demanda uma rede de relações e cooperação sobre o perfil de boas práticas na tomada de decisão, estabelecendo uma uniformização de certos padrões de penalização. Assim, as disparidades das penas seriam relativamente controladas por essa cultura penal, não obstante seja reconhecida a primazia do poder decisional dos magistrados.

Como vimos anteriormente, Werneck Vianna et al. (1997) atribuem um diferencial para a análise da cultura jurídica da magistratura brasileira, decorrente de especificidades no processo de seleção e socialização dos juízes, fator que não poderá ser olvidado pelos pesquisadores que, por ventura, realizarem estudos de “sentencing” no país.

Ainda no âmbito da abordagem sociológica da “sentencing” surge a compreensão da prática decisional como uma atividade colaborativa e interacional. Prates Fraga (2008) aponta que essa perspectiva revela o holismo metodológico ao considerar a influência dos fatos sociais sobre o processo decisório. Essa colaboração e interação ocorre entre os juízes e os demais atores e instituições do Sistema de Justiça Criminal, que dispõem de um canal penal de circulação de informações, vínculos e trabalho, além de uma estrutura organizacional em que coabitam, interagem e se relacionam durante o processo. 

Segundo Manning (apud PRATES FRAGA, 2008), dessa estrutura institucional emerge um contexto social com padrões de interação próprios, que dinamizam papéis e status numa ordem cerimonial, dentro de um mandato expresso em termos ideológicos. Nesse ambiente dinâmico de interação surgem diferentes percepções sobre os fatos e diferentes interpretações dos conceitos legais.

Por fim, a abordagem sociológica da “sentencing” reconhece o caráter prático e intuitivo da tomada de decisão. Sudnow (apud MARTINS, 2011, p. 138), um dos primeiros pesquisadores a trabalhar essa perspectiva, “observou que a experiência profissional desenvolve saberes práticos e estratégicos, que são forjados no exercício desse meio”.

Ou seja, no cotidiano da prática profissional se desenrola um processo de socialização que diferencia aqueles dotados de experiência, daqueles que ainda estão construindo-a. Os saberes assim adquiridos são influenciados por aportes ideológico-profissionais e servem à familiarização dos atores e processos envolvidos, a partir de um meio informal e menos complexo (PRATES FRAGA, 2008).

Embora as duas abordagens metodológicas da “sentencing” sejam geralmente contrapostas, uma não exclui a outra. Conforme salienta Martins (2011), estes aportes metodológicos podem ser utilizados de forma complementar, na medida em que o método qualitativo baseado na técnica de análise de conteúdo de documentos, ou seja, da sentença criminal, pode ser ilustrado por elementos provenientes do método quantitativo, interpretados e contextualizados pelo pesquisador.

6. Considerações finais.

No decorrer deste trabalho, vimos que o reconhecimento da pluralidade dos sistemas de orientação dos magistrados brasileiros, do aumento de sua margem de discricionariedade na prática judicativa e da tendência de desneutralização do Judiciário, nos remete à importância da reflexão sobre o atuar dos juízes no momento da decisão.

Embora seja afirmada a imparcialidade do julgador na interpretação e aplicação da lei, percebemos que, mesmo inconscientemente, o magistrado no exercício da prática jurisdicional atua impulsionado por padrões gerais de significação cultural, sejam próprios ou oriundos da sociedade e do ambiente institucional em que está inserido.

Independente da nomenclatura usada para se referenciar esses padrões gerais de significação cultural, importa ressaltar que os mesmos orientam e organizam a ação do magistrado na prática decisional, sendo que esta, simultaneamente, constitui, reproduz e inova esses padrões, transformando-os.

Vimos, também, que o estudo do processo de tomada da decisão criminal pode auxiliar na busca por explicações sobre os significados culturais que definem e são definidos por práticas punitivas.

Sendo assim, apresentamos de forma sucinta as linhas gerais da “Theory of sentencing”, visando destacar a relevância dos estudos sobre a sentença na análise do papel do sistema penal no contexto social e da relação entre as práticas punitivas e a cultura.

 A relevância desse corpo teórico, ainda pouco debatido no Brasil, reside na sua utilização como significativo instrumento de análise em estudos de sentenças, que promove a desmistificação da ideia de imparcialidade na tomada de decisões judiciais ao centrar sua análise na atuação dos magistrados e nas práticas e variáveis sócio-históricas, filosóficas e jurídicas incorporadas no processo de racionalização da decisão, influenciando sua práxis e dinamizando uma cultura jurídica capaz de aplicar penas distintas para crimes semelhantes.

Esperamos com esse trabalho informar sobre esse importante corpo teórico e contribuir para a discussão sobre sua utilização em estudos sobre a atividade judicante no Sistema de Justiça Criminal brasileiro.

 

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Sobre a autora
Joyce Keli do Nascimento Silva

Advogada atuante em causas cíveis e de família, Bacharel em Direito, Especialista em Ciências Penais, Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Juiz de Fora.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Joyce Keli Nascimento. Considerações sobre a atividade judicativa no sistema de justiça criminal brasileiro.: Uma apresentação da pesquisa em “Sentencing”. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3801, 27 nov. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25940. Acesso em: 5 nov. 2024.

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