1. INTRODUÇÃO
A principal intenção é compartilhar análise realizada sobre o art. 9º, I e III, do Decreto-lei nº 1.001, de 21 de outubro de 1969 (Código Penal Militar), ato do poder público que foi recentemente impugnado pelo Procurador-Geral da República por via da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF nº 289/DF, e refletir um pouco, sob o viés constitucional, o papel institucional das Forças Armadas no Estado Brasileiro, do Ministério Público e da Justiça Militar da União e a repercussão que essa ADPF pode ocasionar no arranjo do ordenamento jurídico, em especial, na leitura do direito penal ante a teoria garantista de FERRAJOLI.
O objetivo propugnado por este artigo se circunscreve basicamente em aferir e afirmar a recepção da competência da Justiça Militar para julgar civis em tempo de paz, frente a argumentos contrários trazidos pela Chefia do Ministério Público da União no sentido de ferimento: i) a preceitos fundamentais apontados como consistentes no próprio conceito de estado democrático de direito (art. 1º); ii) ao princípio do juiz natural (art. 5º, LIII); iii) ao devido processo legal material, como reflexo da proibição de excesso legislativo; e iv) à literalidade dos próprios artigos 124 e 142 da Constituição da República.
A aludida ação de controle concentrado visa a obter interpretação conforme à Constituição da República Federativa do Brasil, de modo a extirpar, em tempo de paz, a competência da Justiça Militar para processar e julgar civis pelo cometimento de crimes militares. Em resumo: questiona-se a submissão de civis, em tempo de paz, à jurisdição da Justiça Militar da União, apontando a não recepção dos incisos I e III do art. 9º do CPM pela atual ordem constitucional.
No entanto, algumas considerações, tanto sob o aspecto jurídico quanto pragamático, dão espaço à preservação da competência nos moldes de um real garantismo penal (integral), sem exageros protecionistas de uma única ótica tutelar – do acusado –, de modo que se atenda o verdadeiro papel de um Estado Democrático de Direito.
2. GARANTISMO PENAL INTEGRAL, FUNÇÃO CONSTITUCIONAL DAS INSTITUIÇÕES MILITARES E PRESERVAÇÃO DA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA MILITAR DA UNIÃO PARA PROCESSAR E JULGAR CRIMES MILITARES COMETIDOS POR CIVIS
Não bastasse a equivocada dicotomia classificatória de crime militar, tomando-se como fator de incidência tão somente o sujeito ativo da conduta: militar ou civil (classificação superada pela doutrina e jurisprudência[1]) para fins de fixação da competência da Justiça Militar da União, a tese que defende a não compatibilidade constitucional do processamento e julgamento de civis por este ramo especializado do Poder Judiciário parece permear aspectos que acabam por contradizer incumbência constitucional que foi atribuída ao propositor do controle concentrado.
Explica-se.
O caput art. 127 da Constituição da República é literal ao incumbir ao Ministério Público defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis[2].
Ainda, a Norma Ápice também conferiu ao Parquet a digna função institucional de zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia (art. 129, II[3]).
Pois bem.
Ao imprimir interpretação que, numa suposta defesa de direitos fundamentais de acusados, nulificam os dispositivos da legislação penal militar no tocante à competência material da justiça especializada para processar e julgar civis pelo cometimento de crimes militares definidos em lei[4], a nobre Instituição Permanente tende a se inclinar para uma visão monocular, a favorecer exclusivamente as garantias e direitos individuais, desprezando, neste ponto, a sua ótica de defensor da sociedade (interesses sociais – coletividade).
Seguindo as linhas de sensato estudo crítico[5] de Membro do Ministério Público Federal, do Procurador Regional da República Douglas Fischer, a doutrina tem convencionado a denominar essa “exarcebada” tendência de garantismo penal hiperbólico monocular, decorrente de uma distorção da visão originária da teoria garantista idealizada pelo jurista italiano Luigi Ferrajoli (em sua obra DIREITO E RAZÃO).
Como se sabe, o garantismo penal é fruto do movimento de um grupo de juízes autonominado de MAGISTRATURA DEMOCRÁTICA, surgido nos idos dos anos 70 (setenta). Nasceu em oposição a visão simplista de legalidade (positivismo), tomando como partida o Estado Democrático de Direito, apontando para um critério de interpretação da lei conforme a Constituição.
Por meio dela, opõe-se a figura do juiz como mero aplicador da lei (repugna-se a alcunha de “boca da lei”), sendo ele também guardião dos direitos fundamentais, núcleo intangível, a exercer a função de estabelecer o objeto e os limites do direito penal nas sociedades democráticas. Tem-se o investigado ou o acusado como sujeito de direitos e não objeto da instrução processual, bem como a afirmação da necessidade de adoção de um sistema acusatório, com a presença de um juiz imparcial e competente para o julgamento da causa. Para tanto, fincaram-se dez axiomas: 1. nulla poena sine crimine; 2. nullum crimen sine lege; 3. nulla lex (poenalis) sine necessitate; 4. nulla necessitas sine injuria; 5. nulla injuria sine acione; 6. nulla actio sine culpa; 7. nulla culpa sine judicio; 8. nullum judicium sine accusatione; 9. nulla accusatio sine probatione; 10. nulla probatio sine defensione.
A leitura míope da teoria garantista leva a um exagero – uma hipérbole – unicamente (monocular) focado na tutela de proteção do cidadão (acusado), com interpretações cada vez mais brandas do Direito Penal e do Direito Processual Penal, tirando-lhes, muitas vezes, a força necessária para a sua existência e importância no contexto do controle social, ao ponto de a teoria garantista viabilizar manobras que, muitas vezes, beiram à impunidade.
Ao contrário disso, defende-se uma aplicação equilibrada do garantismo penal, de forma sistemática, com o olhar voltado para o ordenamento jurídico em seu conjunto (integral), abrangendo-se também, aqui, a atividade Estatal de prestação positiva, no sentido de proteger e garantir interesses e direitos de toda a coletividade – fim maior do Direito Penal e do Direito Processual Penal.
Pertinentes e elucidativas são as observações delineadas por Douglas Fischer na defesa de um garantismo penal integral, destacando, inclusive, na oportunidade, manifestação abstrata do Ministro do Pretório Excelso Gilmar Ferreira Mendes. Em letras (com destaques acrescidos):
Se compreendidos sistemicamente e contextualizados à realidade vigente, há se ver que os pilares do garantismo não demandam a aplicação de suas premissas unicamente como forma de afastar os excessos injustificados do Estado à luz da Constituição (proteção do mais fraco). Quer-se dizer que não se deve invocar a aplicação exclusiva do que se tem chamado de “garantismo negativo”. Hodiernamente (e já assim admitia Ferrajoli embrionariamente, embora não nessas palavras),(12)[6] o garantismo penal não se esgota numa visão de coibir (apenas) excessos do Leviatã (numa visão hobesiana). Em percuciente análise do tema ora invocado, Gilmar Mendes já se manifestou de forma abstrata acerca dos direitos fundamentais e dos deveres de proteção, (13)[7] assentando que “os direitos fundamentais não contêm apenas uma proibição de intervenção [...], expressando também um postulado de proteção [...]. Haveria, assim, para utilizar uma expressão de Canaris, não apenas uma proibição do excesso (Übermassverbot), mas também uma proibição de omissão (Untermassverbot). Nos termos da doutrina e com base na jurisprudência da Corte Constitucional alemã, pode-se estabelecer a seguinte classificação do dever de proteção: [...] (b) Dever de segurança [...], que impõe ao Estado o dever de proteger o indivíduo contra ataques de terceiros mediante adoção de medidas diversas; [...] Discutiu-se intensamente se haveria um direito subjetivo à observância do dever de proteção ou, em outros termos, se haveria um direito fundamental à proteção. A Corte Constitucional acabou por reconhecer esse direito, enfatizando que a não-observância de um dever de proteção corresponde a uma lesão do direito fundamental previsto no art. 2, II, da Lei Fundamental. [...]”. É o que se tem denominado – esse dever de proteção – de garantismo positivo. Sintetizando, em nossa compreensão, embora construídos por premissas e prismas um pouco diversos, o princípio da proporcionalidade (em seus dois parâmetros: o que não ultrapassar as balizas do excesso e da deficiência é proporcional) e a teoria do garantismo penal expressam a mesma preocupação: o equilíbrio na proteção de todos (individuais ou coletivos) direitos e deveres fundamentais expressos na Carta Maior.
Quer-se dizer com isso que, em nossa compreensão (integral) dos postulados garantistas, o Estado deve levar em conta que, na aplicação dos direitos fundamentais (individuais e sociais), há a necessidade de garantir também ao cidadão a eficiência e a segurança, evitando-se a impunidade. O dever de garantir a segurança não está em apenas evitar condutas criminosas que atinjam direitos fundamentais de terceiros, mas também (segundo pensamos) na devida apuração (com respeito aos direitos dos investigados ou processados) do ato ilícito e, em sendo o caso, na punição do responsável.
Sob essa diretriz, não há falar em excesso ou desproporcionalidade que implique na nulificação (não recepção) – ou suposta interpretação conforme – das regras contidas no art. 9º, I e III[8], do Código Penal Militar (Decreto-Lei nº 1.001, de 21 de outubro de 1969), pelo simples fato de, textualmente, tipificar como crime militar, em tempo de paz, condutas praticadas por civis, que, por via de disposição constitucional (art. 124), reflita na apuração da responsabilidade penal na esfera da justiça especializada.
Isso porque, utilizando as palavras de LOBÃO[9], as ofensas definidas na repressiva castrense que dizem respeito à destinação constitucional, às atribuições legais das instituições militares, à autoridade militar, o serviço militar, têm, como agentes, tanto o civil quanto o militar (...), incidindo, por conseguinte, em razão da matéria, a competência da Justiça Militar.
Vê-se que, diferentemente do que se lardeia, principalmente depois da propositura da ADPF 239/DF, a justificativa da existência de legislação penal e jurisdição militar especial, não repousa tão somente nos pilares da hierarquia e disciplina, de caráter estritamente militar, presta-se também para prevenir e reprimir condutas que tenham o intuito atingir às Forças Armadas para as finalidades constitucionais a que se destina, ou seja, que visem a lesionar os bens e interesses vinculados à destinação constitucional das instituições militares, às suas atribuições legais, ao seu funcionamento, à sua própria existência[10], aplicando-se plenamente, neste ponto, aos agentes civis que agirem com tais desígnios.
Abre-se, nesta oportunidade, um parêntese para lembrar que, mutatis mutandis, a Suprema Corte já observou que há crimes que, embora tenham por alvo imediato pessoas ou bens, cujas normas penais visam a proteger aparentemente esferas individuais, imprimem forças que alcançam toda uma estrutura organizacional do Estado, com reflexos nitidamente coletivos. É o caso, por exemplo, do tipo previsto no art. 149 do Código Penal Brasileiro (Decreto-Lei nº 2.848/1940), redução a condição análoga a de escravo, no qual se concluiu que o delito, não obstante inserto no capítulo relativo à crimes contra a liberdade pessoal, atentam contra toda a organização do trabalho, motivo pelo qual se assentou a competência da Justiça Federal (RE 398041, Rel. Min. Joaquim Barbosa).
Nesse ponto – repercussão coletiva –, assemelham-se os crimes militares descritos na legislação infraconstitucional que admitem civis como sujeitos ativos, eis que afetam coletivamente as instituições castrenses, o que reforça, em tais casos, a necessidade de uma prestação jurisdicional especializada, como medida, inclusive, de preservação da unidade de jurisdição, principalmente, nos casos em que militares também contribuam para o fato delituoso.
Ora, não há dúvida de que as Forças Armadas[11] exercem papel fundamental no país, não só em virtude de atuar diretamente na defesa da pátria, mas, sobretudo e principalmente, na garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.
De tal sorte, tem-se por legítimo e merecido que a sociedade, os órgãos e demais instituições do Estado prestem respeito e proteção às Forças Armadas, de modo que não se abale a credibilidade e efetividade do exercício de suas missões constitucionais, como condição, inclusive, ao fim e ao cabo, de conservação do próprio Estado Democrático de Direito (garantia dos poderes constitucionais – CRFB, art. 142).
Essas são as razões que levam a uma interpretação pela qual a Constituição de 1988, diferentemente de suas antecedentes[12], optou por silenciar eloquentemente quanto à indicação dos sujeitos dos delitos militares (ratione personae), a ponto de claramente firmar a competência da Justiça Militar da União exclusivamente em razão da matéria (ratione materiae), estendendo-se, assim, esse foro especial ao civil nos casos especificados na legislação ordinária.
Uma verdadeira interpretação conforme à Constituição leva a conclusão de que não foi outro o intuito do constituinte originário. As codificações penal e processual penal militar são preexistentes à Constituição de 1988, cujos elementos (subjetivos e objetivos) de configuração dos crimes militares já estavam preestabelecidos.
Se outra fosse a intenção, ter-se-ia taxado, de imediato, as hipóteses de sua competência, assim como se dispõe em relação a outros órgãos do Poder Judiciário (v.g.: arts. 109[13] e 114[14]), ou, especificamente quanto à atuação no processamento e julgamento de civis por cometimento de crimes militares, bastaria excepcionar de forma expressa a atuação jurisdicional da Justiça Militar da União in ratione personae, à semelhança do que foi feito em relação a Justiça Militar estadual (§§ 4º e 5º do art. 125). Esta última referência chama ainda mais atenção pelo fato de se ter realizado em sede de reforma, com o advento da Emenda Constitucional nº 45/2004. Confere-se:
Art. 125. Os Estados organizarão sua Justiça, observados os princípios estabelecidos nesta Constituição.
[...]
§ 4º Compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os militares dos Estados, nos crimes militares definidos em lei e as ações judiciais contra atos disciplinares militares, ressalvada a competência do júri quando a vítima for civil, cabendo ao tribunal competente decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004).
§ 5º Compete aos juízes de direito do juízo militar processar e julgar, singularmente, os crimes militares cometidos contra civis e as ações judiciais contra atos disciplinares militares, cabendo ao Conselho de Justiça, sob a presidência de juiz de direito, processar e julgar os demais crimes militares. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004).
Pela própria característica de sempre exercer uma política pacifista em sede internacional, o emprego das Forças Armadas no Estado Brasileiro tem ganhado cada vez mais expressão em operações de paz e, no âmbito interno, contribuído para preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, como instituição legítima na atuação da garantia da lei e da ordem[15] (GLO).
Como consequência, natural é um maior contato como a comunidade civil, que, em situações de confronto, acabam por cometer os crimes militares definidos em lei, cuja competência foi atribuída a Justiça Militar da União, considerando que, quando tipificadas, as condutas ofensivas voltam-se contra os bens e interesses vinculados à destinação constitucional das Forças Armadas, às suas atribuições legais, ao seu funcionamento, à autoridade e serviço militares ou, até mesmo, à sua própria existência.
Lembre-se que a atuação das Forças Armadas em tais hipóteses é considerada atividade militar para os fins do art. 124 da Constituição Federal, consoante disposto no § 7º do art. 15 da Lei Complementar nº 97, de 9 de junho de 1999 (dispõe sobre as normas gerais para a organização, o preparo e o emprego das Forças Armadas), com redação dada pela Lei Complementar nº 136, de 2010 (v. transcrição na referência 15).
Nessa conjuntura, destituir a Justiça Militar da União da função de processar e julgar civis em matéria de sua competência resultaria num desprestígio às próprias Forças Armadas como instituição constitucional que é, bem como às missões e valores que lhes são caros.
Não obstante se ataque, a todo tempo, a competência da Justiça Militar da União, na verdade, o argumento da impossibilidade desta julgar civis objetiva e traz como resultado principal o reconhecimento da não recepção de normas que prevejam o agente civil como sujeito ativo de crimes militares, tendo em vista que o ato do poder público impugnado na prefalada ADPF é o Código Penal Militar (Decreto nº 1.001/69), em específico os incisos I e III de seu art. 9º, norma de ordem material que conceitua crimes militares passíveis de serem praticados por civis.
Portanto, numa eventual procedência, as instituições militares e seus membros ficariam descobertos da proteção tutelar penal específica (militar) que, de forma reflexa, lhes foi conferida constitucionalmente pelo art. 124 e respectivo parágrafo único – condição que certamente fragilizará a atuação das Forças Armas em operações de GLO, por exemplo.
Por essa razão, pode-se asseverar que as tipificações específicas na legislação penal militar e a existência de uma jurisdição especializada competente para processar e julgar tais crimes revelam uma forma de proteger quem protege e, assim, garantir o dever prestacional de segurança pelo Estado a toda sociedade, haja vista que, em tais situações, as instituições militares são vítimas do delito.
Ainda, não se pode deixar de cogitar o fomento à impunidade (ou descriminalização, conforme melhor aprouver), haja vista a possibilidade de ocorrer hipóteses sem correspondência de tipos penais na legislação penal comum dos atos ofensivos praticados por civis, em razão do princípio da reserva legal (art. 5º, XXXIX, da CRFB[16]).
Por esse e por outros argumentos jurídicos despendidos, retoma-se a conclusão de que o Ministério Público aparenta contradizer a sua tarefa constitucional de defesa dos interesses sociais e da incumbência de zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia (art. 129, II[17]).
Em nome de suposta garantia de direitos fundamentais individuais de prestação negativa, põe-se em evidente risco o dever de proteção de toda a coletividade (prestação positiva), a desestabilizar o controle das relações sociais no que toca ao dever de segurança, que impõe ao Estado o dever de proteger o indivíduo contra ataques de terceiros mediante adoção de medidas diversas[18], em total desfavor às atividades e serviços prestados pelas Forças Armadas.
Outrossim, não há espaço para se falar em tribunal de exceção, considerando que os órgãos da Justiça Militar da União são instituídos e constituídos por membros escolhidos por critérios objetivos e impessoais previamente definidos em lei, com condução processual por um juiz-auditor militar, igualmente civil, de carreira, vitalício após dois anos de exercício do cargo, aprovado em concurso de provas e títulos, munidos de independência e com dever de imparcialidade (Constituição da República, Lei Complementar nº 35/79 e Lei nº 8.457/1992[19]).
Destarte, os argumentos de uma constituição excepcional de um tribunal militar para o julgamento de civil peca pelo exagero comparativo com “tribunais de guerra”, situação completamente diversa da eleita pela própria Constituição da República de 1988, conforme antes visto. Seja juiz-auditor, seja Conselho Permanente de Justiça, estão atendidos os preceitos consubstanciadores do princípio do juiz natural L. 8.457/92, arts. 18 a 19, 21 a 22 e 97, [20], e CPPM, arts. 82, §1º e 683), quais sejam imparcialidade e competência previamente estabelecida em lei em razão da matéria (critério constitucional – art. 114 da CRFB).
Em sua acepção constitucional, a Justiça Militar da União é o juízo natural para processar e julgar o feito, assemelhando-se, por exemplo, quando da necessidade de constituição de Conselho de Justiça Permanente, ao procedimento de composição do tribunal do júri (CRFB, art. 5º, XXXVIII[21]), onde, uma vez recebida a denúncia pelo juiz togado, o corpo de juízes de fato é convocado para realizar julgamento, ficando àquele juiz de carreira a incumbência técnica de decidir quanto a todos demais atos e questões processuais incidentais e aplicação da pena. Tal aproximação desconstrói a tese de constituição excepcional de corpo colegiado (tribunal) para julgamento do cidadão civil.
Nesse ponto, percebe-se que, longe de se vislumbrar uma inconstitucionalidade relacionada à competência jurisdicional, no máximo, o que, talvez, poder-se-ia exigir do Estado seria uma aplicação concreta do princípio da adequação procedimental em sua acepção pré-jurídica (LACERDA:1976) [22], a fim de, por meio de empreendidas do Poder Legislativo, ajustar e adaptar o rito processual para atribuir mais autonomia técnica ao juiz-auditor em sua atuação.
É bom lembrar que, sob o viés do ensaio de introdução geral desenvolvido pelos então Professores das Universidades de Standford e de Bloomington, Mauro Cappelletti e Bryant Garth para o “Projeto de Florença” no tocante ao enfoque do acesso à justiça, dos Professores Mauro Cappelletti, a especialização de órgãos do Judiciário é um dos mecanismos de viabilizar uma prestação jurisdicional mais próxima do justo – se é que isso é possível – , eis que preza pela adequação como premissa. Em letras:
Examinamos, até agora, as possibilidades de reforma dos tribunais regulares e as fórmulas gerais para desviar os casos dos tribunais. Ambas as técnicas, como notamos, são crescentemente importantes. No entanto, o movimento mais importante em relação à reforma do processo se caracteriza pelo que podemos denominar de desvio especializado e pela criação de tribunais especializados. O ímpeto dessa nova tendência em direção à especialização pode ser tornado claro se fixarmos nosso foco de atenção nos tipos de demandas que, em grande medida, provocaram as “três ondas” de reforma para possibilitar melhor acesso à justiça.
Como ramo especializado do Poder Judiciário que é, enquadra-se a Justiça Militar da União no conceito de Kazuo Watanabe de acesso a uma ordem jurídica justa, adequada, efetiva e tempestiva[23]:
A problemática do acesso à justiça não pode ser estudada nos acanhados limites do acesso aos órgãos judiciais já existentes. Não se trata apenas de possibilitar o acesso à Justiça, enquanto instituição estatal, e sim de viabilizar o acesso à ordem jurídica justa. Uma empreitada assim ambiciosa requer, antes de mais nada, uma nova postura mental. Deve-se pensar na ordem jurídica e nas respectivas instituições, pela perspectiva do consumidor, ou seja, do destinatário das normas jurídicas, que é o povo, de sorte que o acesso à Justiça traz à tona não apenas um programa de reforma como também um método de pensamento, como com acerto acentua Mauro Cappelletti. (...) São seus elementos constitutivos: a) o direito de acesso à Justiça é, fundamentalmente, direito de acesso à ordem jurídica justa; b) são dados elementares desse direito: (1) o direito à informação e perfeito conhecimento do direito substancial e à organização de pesquisa permanente a cargo de especialistas e ostentada à aferição constante da adequação entre a ordem jurídica e a realidade socioeconômica do país; (2) direito de acesso à justiça adequadamente organizada e formada por juízes inseridos na realidade social e comprometidos com o objetivo de realização da ordem jurídica justa; (3) direito à preordenação dos instrumentos processuais capazes de promover a efetiva tutela de direitos; (4) direito à remoção de todos os obstáculos que se anteponham ao acesso efetivo à Justiça com tais características[24].
De toda sorte, apenas para não ser omisso, salutar também é destacar que, no caso do Conselho de Justiça, os juízes militares (oficiais) no exercício das suas atribuições, não deverão obediência senão, nos termos legais, à autoridade judiciária que lhe é superior (independência funcional – art. 36, § 2º, do CPPM[25]).
Assim, se se retomar os axiomas da teoria do garantismo penal sustentado pelo jurista italiano Ferrajoli, observa-se que a competência da Justiça Militar da União em relação aos civis não contraria a máxima nulla culpa sine judicio, estando presentes tanto um juiz imparcial quanto previamente competente para o julgamento da causa.
Ousa-se, ainda, dizer que, dado a adoção do sistema nitidamente acusatório pelo ordenamento processual penal pátrio, apresenta-se igualmente descurada a construção de ferimento ao princípio do juiz natural realizada pela Chefia do Ministério Público da União em sua promoção perante o Supremo Tribunal Federal, pois reflete e depõe contra as atribuições decorrentes do princípio do promotor natural atinente a ramo que o compõe: o Ministério Público Militar (art. 128, I, da Constituição da República e art. 24 da Lei Complementar nº 75/93[26]), ante a máxima axiomática do nullum judicium sine accusatione.