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Preconceito racial contra o negro à luz da Lei nº 7.716/89 - crimes resultantes de preconceito de raça e cor

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Agenda 01/09/2014 às 13:40

Breve análise histórica, sociológica e jurídica sobre o preconceito racial contra o negro à luz da lei nº 7.716/89 - Crimes de racismo.

1- HISTÓRIA DO PRECONCEITO:

O comportamento do homem, ao longo da história da humanidade, sempre foi diferenciado para alguns grupos, sobretudo na origem étnica. O racismo vem surgir como desculpa para o tratamento desigual dessa etnia.  Neste contexto, pode-se dizer que o preconceito é um entrave ao desenvolvimento e ao relacionamento fraterno da humanidade. É uma arma que dói que perfura e maltrata. É indiscutível sentir o preconceito e não sofrer, pois só quem já o sentiu é capaz de descrevê-lo.  Existe discriminação calcada em quase todas as razões e motivos: pelo vestuário, pela linguagem, pela cor, pelo credo, pela posição social e por outras.  Enfim, o preconceito causa frustrações e um grande sentimento de impotência, sobretudo o preconceito racial que é um dos tipos de exclusão mais comum nas sociedades. Para compreendê-lo com mais profundidade, faz-se pertinente discorrer sobre ele com base em uma perspectiva histórica, ou seja, na história da humanidade. Observa-se que o preconceito racial sempre esteve presente, notadamente desde a trajetória de povos errantes, e que, em dado momento, passaram a organizar-se em sociedades tradicionais.  Observa-se que já havia, desde essa época, distinção entre diferentes classes sociais e, com efeito, discriminação entre elas.

Entretanto, não é possível determinar assertivamente datas que indiquem o surgimento do tratamento discriminatório em relação às diferentes etnias na humanidade. O mais antigo evento racista aceito pela história teria ocorrido no Egito antigo. Sobre esse momento, assim discorre Eliane Azevedo:

A mais antiga referência à discriminação racial data de aproximadamente 200 a. C. e consta de um marco erigido acima da segunda catarata do Nilo, proibindo qualquer negro de atravessar além daquele limita, salvo se com o propósito de comércio ou de compras. Fica óbvio que a discriminação era fundamentalmente de ordem econômico-política, usando a raça como referência. (AZEVEDO, 1987, p. 23)

 Como se pode depreender das considerações apresentadas, as políticas de separação racial parecem surgir permeadas por motivos econômicos, pois os negros parecem ocupar, hoje, o mesmo lugar dos egípcios pobres. Existia, além disso, uma outra “modalidade” de preconceito coletivo, que não era essencialmente racial, mas etnocêntrico, contra outros povos considerados bárbaros e inferiores. Eliane Azevedo explica:

Os gregos consideravam bárbaros todos os povos não gregos. Aristóteles chegou mesmo a propor a hipótese do escravo nato, admitindo que alguns já nasceram para escravos, e outros, para senhor. Por outro lado, os persas consideravam-se superiores ao resto da humanidade e assim também pensavam sobre si os germanos, os normandos, os romanos e os bárbaros das estepes da Ásia. (AZEVEDO, 1987, p. 24)

 Com base no exposto anteriormente neste estudo, pode-se verificar que o homem não nasce com o preconceito, pois se observa que o comportamento diferenciado parece ser historicamente atrelado a interesses econômicos e justificado por ele na disputa de poderes entre diferentes grupos. Assim, parece que o sentimento discriminatório foi-se desenvolvendo, em várias culturas, como um construto justificador do crescimento e da soberania de algumas classes sobre outras.

 Não obstante, o preconceito também é questão cultural, um juízo herdado pela criação social, manifestado na forma de uma atitude indiferente perante pessoas, lugares ou tradições que são considerados “diferentes” ou “estranhos”. Na concepção do sociólogo Anthony Giddens:

O conceito de cultura, tal como o de sociedade, é uma das noções mais amplamente usadas em sociologia. A cultura consiste nos valores de um dado grupo de pessoas, nas normas que seguem e nos bens matéria e s que criam. Os valores são ideias abstratas, enquanto as normas são princípios ou regras que se espera que o povo cumpra. As normas representam o permitido e o interdito da vida social [...] pensamos muitas vezes na cultura como equivalente às coisas mais elevadas do espírito – arte, literatura, música e pintura. [...] A cultura refere-se aos modos de vida dos membros de uma sociedade, ou grupos dessa sociedade. Inclui a forma como se vestem os costumes de casamento e de vida familiar, as formas de trabalho, as cerimônias religiosas e as ocupações dos tempos livres. Abrange também os bens que criam e que se tornam portadores de sentido para eles [...]. Nenhuma cultura pode existir sem uma sociedade. (GIDDENS, Anthony:[s/d])

 Desse modo, vê-se que o preconceito, como elemento ligado diretamente à cultura e à história, apresenta grande fluidez de manifestações, que, no entanto, parecem ter em comum o fato de tornarem hierarquicamente superiores aqueles que pertencem a um grupo étnico dominante ou, mais precisamente, a grupos culturais, políticos e economicamente mais bem estabelecidos e que, por razões ideológicas, distanciam-se de outros grupos sociais.

Importa salientar, contudo, que, no âmbito jus-sociológico, interessa primordialmente o reconhecimento da existência de experiências de aversão étnica que se transformaram em atos de discriminação preconceituosa, que são reiterados e transmitidos de geração em geração.

Conclui-se, então, que o preconceito está ligado diretamente à cultura e à história da humanidade, tornando, assim, desiguais aqueles que, supostamente, pertencem a um “grupo étnico” dominante ou, mais precisamente, a grupos culturais, políticos e economicamente bem estabelecidos e que, por razões históricas, distanciam-se de outros grupos étnicos.

1.1- BREVE HISTÓRIA DA ESCRAVIDÃO NO BRASIL

No início da descoberta do Brasil os portugueses escravizaram os índios; porém, por volta de 1550, os índios foram substituídos pelos africanos pelo fato de estes se adaptarem melhor ao tipo de trabalho pesado realizado na Colônia.

O pensamento dos colonizadores brasileiros era comum ao dos europeus, ou seja, o de que o homem negro era como um bem a ser negociado, e não como um ser humano como eles. Sobre essa questão, José Júlio Chiavenato (1980, p.123) afirma que, tratados como “simples mercadoria, os negros eram vendidos por meio e por tonelada. A própria forma como se comercializavam os negros africanos era reflexo de sua desumanização.”

O sentimento de superioridade dos brancos em relação aos negros era enraizado no Brasil-Colônia enquanto a coroa portuguesa obtinha lucros com o tráfico de escravos, pois os negros eram vistos como peças a serem comercializadas: “Eram examinados como animais: apalpados, dedos enfiando-se pelas bocas, procurando os dentes para adivinhar a idade ou conferir se o vendedor não mentia”. (CHIAVENATO, 1980, p.127)

É importante ressaltar que o vergonhoso comércio de escravos, sem dúvida um dos mais tristes momentos da nossa história, representou uma excelente alternativa econômica para a Europa e trouxe grandes lucros para os comerciantes europeus. A escravidão do negro representou uma excelente alternativa econômica para a metrópole, pois o tráfico negreiro era mais rentável do que a escravidão do índio e, por isso, valia a pena o alto custo do investimento.

Os escravos negros eram aprisionados e submetidos a péssimas condições de trabalho, sendo explorados até o limite de suas forças, como se fossem máquinas. A vida útil do escravo adulto, em média, não passava de 10 anos, por causa da dureza dos trabalhos e da precariedade da alimentação; e seus filhos, desventuradamente, eram seus substitutos nesse infortúnio.

Nas novas e exóticas terras da América nas quais eram lançados, como destaca Cristina Gomes, os escravos não podiam contar nem mesmo com a solidariedade ou com laços linguísticos e sociais de possíveis conterrâneos.

A presença negra na América começou por volta de 1550. O escravo africano era considerado por muitos como simples mercadoria e a escravidão chegou a ser indispensável para o progresso e prosperidade do país. Quando chegaram aqui (nos navios negreiros), eram exibidos para que os compradores pudessem analisá-los. Evitavam comprar escravos da mesma família ou da mesma tribo (pois não queriam rebeliões). (GOMES,[s/d])

Vale também ressaltar que os escravos que, por algum motivo, cometiam algum “deslize”, eram severamente punidos; e que muitos, para fugir de toda essa tortura, suicidavam-se, matavam seus feitores ou fugiam para os quilombos que se espalhavam no território colonial. Alguns escravos não conseguiam chegar até o quilombo e eram capturados pelos capitães do mato, homens remunerados para capturar os negros e mantê-los em seu status de coisa, e não de ser humano.

Portanto, a inferiorização foi a herança deixada por nossos antepassados, que transformaram aquele povo de cor negra em escravos, sob condições degradantes, no intuito de obter mão de obra barata; os negros eram considerados uma simples mercadoria, ou seja, transformados de pessoas em coisas precificáveis, desprovidas de humanidade.

1.2- O SURGIMENTO DO PROCESSO ABOLICIONISTA

Entre os primeiros movimentos contra o tráfico escravagista esteve a pressão estrangeira, mais propriamente a que era feita pela Inglaterra, cuja preocupação - vale ressaltar - não era com o negro, pois este, igualmente, não era reconhecido como ser humano; o interesse era, na verdade, sustentado por motivos econômicos daquele momento histórico. Robert Conrad explica:

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Durante a sua cruzada de quarenta anos contra o comércio de escravos no Brasil, a Inglaterra negociou uma série de tratados com os governos do Brasil e de Portugal entre 1810 a 1826, tendo sido eles recebidos com grande relutância por parte dos governos brasileiros, que sempre tiveram consciência da amarga oposição da maioria dos seus cidadãos mais poderosos, evidentemente contrário a quaisquer concessões na questão dos escravos. (CONRAD, 1978, p. 54)

Mais tarde, os brasileiros não resistiriam, no final, às pressões dos ingleses e chegaram a um acordo para diminuição gradual do tráfico escravagista. Este, porém, era feito às escondidas, e não demorou muito para que os ingleses começassem a destruir os navios negreiros do Brasil, pois nosso país mostrava-se resistente à extinção do tráfico.

Nesse mesmo sentido, outro movimento que sinalizou o declínio da escravatura foi o Projeto de Lei do Ventre Livre, que estabelecia o início do estágio de evolução para um sistema de trabalho livre, sem prejudicar o sistema econômico agrário brasileiro. Sobre o projeto, Conrad (1978, p. 113) comenta que o projeto, apresentado na Câmara dos Deputados em 12 de maio de 1871 e transformado em lei quase sem modificações, em 28 de setembro do mesmo ano, continha mais - contudo - do que uma mera previsão do nascimento livre.

Para os proprietários de escravos, o Projeto de Lei do Ventre Livre era uma certeza de prejuízo e de perda de patrimônio; por isso, eles se posicionaram totalmente contra essa proposição.

Cabe lembrar que essa foi a lei inicial para o derradeiro rompimento da relação escravagista propriamente dita. Segue-se a essa lei a crescente reação dos próprios negros, que resistiam de forma cada vez mais intensa à manutenção da escravidão, o que se somou às pressões dos intelectuais abolicionistas para extinguir de vez essa condição opressora, em vez  de diminuí-la. Nesse sentido, diz Robert Conrad (1978, p. 113): “Anunciada com grande reforma, essa lei era, realmente um compromisso intrincado. Todavia, contribui significativamente para o colapso da escravatura.”

 O abolicionismo estava, de fato, crescendo e disseminando-se no Brasil. Após a Guerra do Paraguai, configura-se a necessidade de recuperação e de modernização da economia; soma-se também a esse fato o de que muitos escravos e ex-escravos haviam lutado na guerra, e esses negros voltaram posteriormente, como heróis.

Júlio José Chiavenato relata:

Somente depois da Guerra do Paraguai é que aparece um movimento sistematizado para a libertação dos escravos. Embora uma necessidade dos novos tempos, uma exigência de agilização da economia, também reflexo político da nova mentalidade que os 20 negros “vadios” que voltaram da guerra, com a oficialidade transformada em representação do heroísmo nacional, implantaram na discussão política. (CHIAVENATO,1980, p. 211)

Nesse momento, contudo, a grande imprensa não se mostrou a favor da causa abolicionista, até mesmo por questões econômicas.

Robert Conrad (1978, p. 180) explica que “a maior parte da imprensa do Brasil estava ligada, direta ou indiretamente, aos interesses agrícolas e comerciais; assim, os abolicionistas receberam pouco apoio de jornais sólidos e responsáveis durante a fase de luta.”

Em contrapartida, os intelectuais e juristas davam sua contribuição em favor da causa abolicionista no Brasil. É o que diz Joaquim Nabuco:

Pouco tempo falta para que a humanidade inteira estabeleça, proteja e garantia por meio do Direito Internacional o princípio seguinte: Não há propriedade do homem sobre o homem. A escravidão está em contradição com os direitos que confere a natureza humana, e com os princípios reconhecidos por toda humanidade. (NABUCO, 1977, p. 121)

Nesse momento da história, a lei nacional protegia o cidadão brasileiro contra a escravidão de qualquer natureza, por meio da Constituição. Contudo, a Lei Magna não considerava os escravos como cidadãos brasileiros; eles eram considerados estrangeiros ou não tinham pátria, e a lei no Brasil não podia autorizar à escravidão os que estivessem sujeitos às leis do Direito Internacional no que tange à liberdade pessoal.

O direito à liberdade dos escravos tinha um fundamento na esfera econômica, na política e na ordem social, conforme discorre Joaquim Nabuco:

A escravidão, assim como arruína economicamente o país, impossibilita o seu progresso material, corrompendo-lhe o caráter, desmoronando-lhes os elementos constitucionais, tirando-lhe a energia e a resolução, rebaixa a política habitua-o ao servilismo, impede a imigração, retarda a aparição de indústrias, promove a bancarrota, desvia os capitais do seu curso natural, afasta as máquinas, excita o ódio entre classes, produz uma aparência ilusória de ordem, bem-estar e riqueza, a qual encobre os abismos da anarquia moral da miséria e destruição, que de norte a sul margeiam todo o nosso futuro. (NABUCO, 1977, p. 124)

Outrossim, a escravidão não era mais lucrativa para a economia brasileira, ficando cada vez mais evidente que os trabalhadores livres e assalariados seriam mais úteis do que os escravos, já que esses, como mão de obra, não representavam mais o mesmo interesse para o sistema produtivo.

Julio José Chiavenato afirma:

A Lei Áurea apenas regulariza uma situação de fato. A escravidão já tinha acabado entre o fervor dos abolicionistas, com seus discursos exaltados, campanhas humanistas e passeatas célebres, mas principalmente porque se tornou mais que evidente, a partir de 1872, quando, em São Paulo, a maioria da força de trabalho era de trabalhadores livres - que o trabalho escravo era um modo de produção anacrônico. (CHIAVENATO, 1980, p. 212)

Ressalte-se que grande parte dos abolicionistas apoiava as indenizações pela perda dos escravos enquanto lutavam pelo fim da escravidão, o que evidencia que as classes dominantes, mesmo quando “abolicionistas”, ainda viam os escravos como uma propriedade a defender.

Por outro lado, o Partido Conservador arriscou-se a ver sua legislação ser rejeitada e optou por uma abolição incondicional; e, no dia 7 de maio de 1888, perante todos os presentes, anunciou sua decisão de propor a imediata e incondicional extinção da escravidão no Brasil. A partir desse momento, os senhores e os escravos teriam que estabelecer entre si uma relação trabalhista remunerada; mas esse fato pouco aconteceu, pois os negros foram preteridos em relação aos imigrantes brancos, uma vez que estes, como trabalhadores, eram considerados racial e economicamente superiores e foram, por isso, incentivados à imigração para o trabalho em substituição aos escravos.

 Por fim, em 13 de maio de 1888, a Princesa Isabel assinou a Lei Áurea, dando aos negros a liberdade formal. Tal fato, no entanto, não impediu um universo de desigualdades, pois os negros, mesmo não sendo mais escravos, não eram tratados como cidadãos plenos em igualdade de condições; e tinham, ainda, que se preocupar com um fator que até hoje os persegue: a desigualdade fundada no preconceito racial.


2- O RACISMO NO BRASIL

No Brasil, o primeiro diploma a cuidar especificamente do preconceito e da discriminação racial foi a Lei nº 1.390, de 3 de julho de 1951, denominada Lei Afonso Arinos,  de autoria do então deputado federal pelo Estado de Minas Gerais, Afonso Arinos de Melo Franco.

Em seguida, aprovou-se a Lei nº 7.716/89, que até hoje está em vigor; essa lei foi modificada pela Lei nº 9.459 de 13 de maio de 1997, e expandiu significativamente seu alcance tipificado, já que nela está apontada, expressamente, a discriminação, acrescentando-se os crimes resultantes de preconceito ou discriminação de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Entretanto, não se definem precisamente as expressões nela contidas, como por exemplo, o que é raça e cor, que é um dos objetivos da pesquisa em tela.

2.1 - O QUE É RAÇA

 Até a primeira metade do século XX acreditava-se que havia diferentes raças humanas, umas hierarquicamente superiores a outras, e que existiriam raças puras e absolutas. Porém, com o amadurecimento dos estudos culturalistas pós-II Guerra Mundial e por meio de pesquisas realizadas nas últimas décadas, tanto no âmbito da Antropologia quanto no da Biologia, comprovou-se que esse pensamento racialista é equivocado. O Geneticista Bruce Wallace assim aborda o assunto:

Não há nenhuma verdade na velha noção de raça “pura”, raças puras não existem e quem quer que pense que existam está acreditando em bobagem.Como todos os membros de uma população diferem geneticamente, esta deve ser considerada como abrangendo todos os vários tipos de indivíduos que são gerados em seu seio, através de casamentos ao acaso de seus membros. (WALLACE, 1979, p.153)

Ainda nesse sentido aborda Pontes de Miranda (2002, p. 578): “Não há raça pura. Seria preciso descer mais trinta mil anos, para se encontrar alguns grupos ‘teoricamente’ homogêneos, ou muito menos heterogêneos do que de hoje.”

Paulo José da Costa Júnior (2003, p. 228) também formula um conceito para raça: “ Raça é o conjunto de indivíduos com origem étnica, linguística ou social comum.”

Portanto, destaca-se, para este trabalho, que raça é o conjunto de indivíduos que apresentam homogeneidade cultural e linguística, compartilhando história e origem comuns. Pode-se distinguir uma raça de outra pelas semelhanças - não somente físicas, mas fundamentalmente simbólicas - que um grupo apresenta, ou seja, laços culturais que um conjunto de indivíduos com origem étnica, linguística ou social apresentam historicamente em comum e que os fazem se auto-perceberem distintos dos demais grupos.

Porém as características de cada raça não são permanentes, podendo, então, surgir outra raça com semelhança em comum. Considerando-se que as raças se transformam constantemente, torna-se impossível delimitá-las biologicamente; portanto, a definição de raça terá que ser, necessariamente, imprecisa, como em um conceito aberto.

É o que afirma Eliane Azevedo:

A definição permite chamar de raça a qualquer agrupamento humano que apresente características hereditárias com frequências diferentes de outros grupos. Essa característica depende do isolamento, cujo grau também é variável (mais ou menos isoladas), e tanto pode ser geográfico, como social, religioso, político, econômico, etc. (AZEVEDO, 1987. p. 21)

Conclui-se, então, que é extremamente difícil dizer assertivamente quantos negros mulatos e mestiços existem no Brasil. A raça negra foi por tanto tempo marginalizada que muitos descendentes não se consideram pertencentes a ela. O fato é que, no mundo todo, pessoas continuam a ser discriminadas em virtude de sua raça, por seu tipo fenótipo. Mas não só a raça pode caracterizar um povo, mas também a cor de sua pele.

2.2- O QUE É COR

No que tange ao conceito de cor, deve-se considerar sua pertinência mais apropriada ao universo físico do que ao social, conforme explica Christiano Jorge Santos:

Cor é um fenômeno físico e o termo melhor utilizado para definição cromática de qualquer matéria, do que propriamente para distinção de pessoas, embora seja empregado para definição de pigmentação epidérmica dos seres humanos. [...] Muitas vezes, a palavra é utilizada em nossa língua (encontra-se plenamente enraizada em nosso cotidiano) como sinônimo de raça, por vezes até como forma de eufemismo. (SANTOS, 2010, p.57-58)

Observa-se, porém, que, no que se refere à cor, há implicações conectadas ao crime de racismo, ou seja, para a distinção de pessoas, utiliza-se a expressão “de cor”, característica clara de diferenciação sujeita à discriminação. Outrossim, tal evocação à cor pode-se tornar, muitas vezes provocativa. Christiano Jorge Silva (2010, p. 58) comenta: “Ao invés de dizer que uma mulher ou homem são negros, diz-se que fulana ou beltrano são de cor”.

Para aplicação no direito positivo, a expressão “cor” deve-se ser entendida como já exposto anteriormente, ou seja, a tonalidade da pele, não havendo correspondência exata entre as cores e as “cores” da pele. Isso porque as cores das pessoas, no sentido de preconceito de cor, são objeto de idêntica classificação racial.

Sobre a prática social de rotular indivíduos como sendo “de cor”, Christiano Jorge Santos, oportunamente, questiona:

De que cor? Branca, bege, marrom, preta, ocre? Até porque, de fato, raramente alguém é de cor branca. Quem apresenta características típicas da raça branca pode ser classificado “cromaticamente” como sendo de cor rosa, bege, acinzentada, tudo isso dentre milhares de tons. Igualmente, qual oriental é de fato “amarelo” e que índio possui a “pele vermelha?[...] Normalmente classificam-se as pessoas em três grandes grupos: brancos, pretos e amarelos.” (SANTOS,2010, p. 58)

Portanto, a cor de um negro que, porventura, tenha nascido com pele branca não o faria deixar de pertencer à sua raça negra, embora se possa verificar que, eventualmente, sua cor pode aproximar-se muito mais da raça branca do que a tonalidade da pele de alguém que pertença à própria raça chamada branca.

Não obstante tais considerações, é importante observar que atualmente, no Brasil, a população da raça e da cor negra é acometida, diariamente, por olhares de indiferença e desconfiança e, quando não, por palavras e insinuações rudes relacionadas à cor de sua pele. Não há como negar a existência desse tipo de comportamento que, mesmo sendo considerada uma atitude vil e desprezível, infelizmente ainda persiste em nossos dias.

2.3- PRECONCEITO RACIAL

Para que se possa entender melhor a dinâmica do preconceito racial no Brasil, deve-se destacar o atraso com que a sociedade e as lideranças brasileiras, vieram constatar o erro inaceitável que era a escravidão.

Conforme já se afirmou neste estudo, o preconceito não é algo naturalmente característico do ser humano; é, no entanto, resultado de sua socialização e da bagagem cultural que o acompanha. Desde crianças somos levados a acreditar que o diferente é ameaçador, e, por isso, para a nossa proteção, precisamos diferenciá-lo e, de algumas formas, rejeitá-lo.

Arnold M. Rose (1972, p. 179) avalia esta questão: “Uma das características do preconceito é a de se fazer acompanhar por sentimentos de temor e de angústias em face dos grupos que são vítimas dele.” 

Portanto, o preconceito pode ser entendido com um conjunto de atitudes que provocam, favorecem ou justificam medidas de discriminação. Ele opera, assim, de forma depreciativa, feita sem qualquer exame e separada de uma realidade de fato. É em razão desse conceito pré-concebido que as pessoas utilizam palavras e atitudes discriminatórias contra indivíduos com características diferentes, surgindo, desta forma, a abominável atitude racista.

O preconceito racial indica, por sua vez, a opinião ou o sentimento que, favorável ou desfavorável, vai sendo elaborado sem exame crítico, ou, ainda, a atitude, sentimento ou parecer insensato assumido em consequência da generalização apressada de uma experiência pessoal ou imposta pelo meio, favorecendo, geralmente, a intolerância racial.

Cabe ressaltar que, no universo simbólico do homem, opera a representação social, ou seja, formas simbólicas que organizam e atribuem sentido às coisas do mundo, com a função de ação para construção. O homem, para relacionar-se com o mundo, desde criança, precisa transformar em interno o que é externo, precisa reunir um dado novo a um sistema de relações construídas; e é desse trabalho de montagem de informação que surgem as representações sociais. Serge Moscovici assim conceitua a expressão “representações sociais”:

As representações sociais são entidades quase tangíveis. Elas circulam se entrecruzam e se cristalizam continuamente, através duma palavra, dum gesto, ou duma reunião, em nosso mundo cotidiano. Elas impregnam a maioria de nossas relações estabelecidas, os objetos que nós produzimos ou consumimos e as comunicações que estabelecemos. Nós sabemos que elas correspondem dum lado, à prática específica que produz essa substância, do mesmo modo como ciência ou mito correspondem a uma prática científica ou mítica. (MOSCOVICI, 2004, p.10)

No entanto, essa representação social simbólica está diretamente relacionada à uma cultura específica. Moscovici esclarece:

Todos os símbolos presentes e ativos em uma sociedade obedecem tanto à lógica do intelecto quanto a lógica das emoções, mesmo que estes símbolos possam estar fundamentados em princípios diferentes. Afirmo que isso vale para qualquer cultura e não apenas para as assim chamadas primitivas [...]. Quando fazemos discriminação contra um grupo, expressamos não apenas nossos preconceitos sobre essa categoria, mas também a aversão ou desprezo a que elas são indissoluvelmente ligados. (MOSCOVICI,  2004, p.183-184).

Faz-se, portanto, necessário entender o que acontece nos grupos sociais enquanto agrupados, pois nesses agrupamentos há uma diversidade de representações e um universo imenso e espetacular a ser explorado na tentativa de acrescentar ao estudo do preconceito na sociedade, na qual estão inseridos vários grupos, com diferentes manifestações.

Portanto, conclui-se que as representações sociais contribuem para as atitudes e crenças de um indivíduo ou de um grupo na elaboração de suas idéias, em função de um objeto, de uma situação, de um conceito, de outros indivíduos ou grupos; apresentam, assim, uma visão subjetiva e social daquele objeto em questão, gerando uma gama plural de comportamentos sociais, entre eles, muitas vezes, o preconceituoso e discriminatório.

2.4 - O QUE É RACISMO

O entendimento sobre o racismo pode ser mais preciso se o considerarmos como uma ação ou proposição inescapavelmente inferiorizante, que atinge a moral do indivíduo ou a de um grupo, levando em consideração características essenciais de sua conformação étnico-identitária. Como bem esclarece Orlando Soares (1990, p. 125), o racismo pode manifestar-se não somente com a inferiorização do outro, mas também com a crença em uma superioridade essencial sobre o outro: “Racismo estabelece que certos povos ou nações sejam dotados de qualidades psíquicas e biológicas que tornam superiores a outros seres humanos.”

Maria Luiza Tucci Carneiro acrescenta ainda que:

Muitos mais que apenas discriminação ou preconceito racial, é uma doutrina que afirma haver relação entre características raciais e culturais e que algumas raças são, por natureza superior a outras. As principais noções teóricas, do racismo moderno derivam das idéias desenvolvidas por Arthur de Gobineau. O racismo deforma o sentido científico do conceito de raça, utilizando para caracterizar diferenças religiosas, linguísticas e culturais. (CARNEIRO, 1998, p. 6)

Portanto, racismo é um tratamento desigual, manifestado intelectual ou concretamente por um indivíduo ou grupo étnico em função da raça, da cor de pele ou de traços essenciais à constituição étnica de alguém ou de uma coletividade; é também qualquer outro ato no qual se identifique a constituição de desigualdade sob critérios racialmente estabelecidos. Em regra, o racismo ou preconceito racial é o que leva à intolerância e à marginalização.

Diante do exposto, faz-se necessário discorrer sobre o “racismo “brasileiro”, que, além da questão histórica - já discutida, pode ser comparado com o dos Estados Unidos, sociedade cujo racismo é, do mesmo modo, intenso, podendo até mesmo ser compreendido como uma espécie de separação fechada de castas, como explica Jesse Souza, relacionando o racismo norte-americano ao brasileiro:

[...] Os Estados Unidos preencheram a função de expressar uma espécie de caso ideal concreto de higiene racial em oposição ao caso brasileiro. Compreender o Racismo deles era, na verdade, o de menos, a questão era construir um referencial para a ideologia higienista que via no intercurso entre as “raças”, a chave para a interpretação do nosso fracasso histórico. Era ali que já se montava a ideia arraigada de que uma separação hermética entre duas castas atende, embora com a ocorrência de exceções, a uma definição cabal do racismo norte-americano e, posteriormente, que essa separação hermética de castas é o que define o racismo propriamente dito: Uma Higiene Racial absoluta levada a cabo por cada membro da sociedade. (SOUZA,  2009, p.367)

 Apesar de esta ser uma definição específica mais adequada à concepção norte-americana, constata-se que, no Brasil, existe uma forte miscigenação, sendo os Estados Unidos, assim, somente uma referência comparativa.

Todavia, o racismo brasileiro tem uma marca de plasticidade, de sorte que a higiene racial é menos rigorosa, ou seja, enquanto a base, no conceito norte-americano, é de “Preconceito de Origem”, no Brasil é mais estético. Sobre esse aspecto, comenta Jesse Souza:

[...] Esse dado é o bastante para borrar irremediavelmente a imagem fácil do racismo norte-americano, pois se existe lá uma estrutura de castas, pelo menos não se pode torná-la como explicação para este tipo de discriminação como explicar com base no conceito de “preconceito de origem” - que define o racismo norte-americano como aquela higiene racial absoluta baseada na consangüinidade [...] Existe lá um outro tipo de discriminação racial que se revela semelhante ao tipo de discriminação racial brasileira: Um racismo que só pode ser compreendido em termos de um “continuum racial”, característica que sempre se tentou ver como exclusivamente brasileira. (SOUZA, 2009, p. 368-369).

Neste sentido o “Continum Racial”, ou seja, a preterição estética deve ser entendida não só como uma característica estética de uma classe social, mas também como um fator influente que determina a construção social do negro que passa a ser “julgado” de forma mais autônoma. Jesse de Souza (2009, p. 372) esclarece: “A beleza é preterida ao negróide em função da posição que os negros ocupam no espaço social, mas a partir do momento em que é socialmente construído, torna-se um critério autônomo de julgamento.”

Portanto, não basta somente analisar a construção social do negro mediante a percepção do estético; deve-se analisar como os negros vivem e se relacionam, sobretudo com as leis, na condição de classe inferior. Muitas são as normas que trazem em seu corpo expresso as formas de discriminação racial.

A Declaração das Nações Unidas traz, em seu artigo 1º, todas as formas de discriminação racial de 1968, bem como o significado da discriminação racial:

Para fins da presente, a expressão discriminação racial significará toda distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tenha por objeto ou resultado anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício em um mesmo plano de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural ou qualquer outro campo da vida pública (NAÇÕES UNIDAS. Declaração sobre eliminação de todas as formas de discriminação racial de 1968).

Portanto, quer na lei ou na doutrina, o racismo é caracterizado como um tratamento desigual baseado precipuamente na raça e cor. Desta forma, o racismo cria uma situação de desigualdade repudiada pela CR/88 ao assegurar o direito à igualdade para que todas as pessoas sejam tratadas de forma igual, não importando os fatores raciais descritos. Assim, todo cidadão, com suas diferenças étnicas, deverá ser tratado igualitariamente, pois todos nós temos o direito subjetivo da igualdade na diversidade.

Dessa forma, o princípio constitucional que atende a esse direito será o da Igualdade ou da Isonomia, segundo o qual todos, sem distinção, devem ser tratados de forma igualitária, não importando a sua cor da pele ou a raça a que pertencem. Cabe ressaltar que o racismo é, no Brasil, crime de maior gravidade, ao qual a lei atribui um tratamento mais duro ao autor, sendo imprescritível, inafiançável e de ação penal pública incondicionada, ou seja, é promovida por membros do Ministério Público com oferecimento de denúncia, que é a petição inicial dessa ação; e, por ser incondicionada, seu exercício não depende da manifestação de vontade de quem quer que seja. Portanto, a discriminação racial expressa a ruptura do princípio da Igualdade, como exclusão, restrição ou preferências, motivadas por raça, cor, sexo, idade, trabalho, credo religioso ou convicções políticas.

Sobre o autor
Lair Ayres

Advogado Previdenciário

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AYRES, Lair. Preconceito racial contra o negro à luz da Lei nº 7.716/89 - crimes resultantes de preconceito de raça e cor. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4079, 1 set. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/29420. Acesso em: 22 dez. 2024.

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