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A questão da indisponibilidade dos bens doados pela Presidenta da Petrobras e o TCU

Os bens de Graça Foster, presidente da Petrobras, podem ou não serem tornados indisponíveis?

Muito se tem discutido acerca da possibilidade de o Tribunal de Contas da União – TCU tornar indisponíveis os bens doados pela Presidente da Petrobras, devido ao processo que apura existência de dano aos cofres públicos no processo de aquisição da refinaria Pasadena.[1]


1. Da competência do TCU para a indisponibilidade de bens

A Lei Orgânica do Tribunal permite decrete cautelarmente, por prazo não superior a um ano, a indisponibilidade de bens do responsável, tantos quantos bastantes para garantir o ressarcimento dos danos em apuração. Há vários precedentes do TCU nesse sentido.[2]

Embora não possua a prerrogativa legal para expedir cautelares, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal - STF, com base na teoria dos poderes implícitos, autoriza a expedição[3].


2. Dos requisitos para a indisponibilidade

A lei somente autoriza a indisponibilidade dos bens: a) do responsável, b) os necessários ao ressarcimento, c) vinculados a um dano em apuração, d) por meio de cautelar que deve suprir seus requisitos legais.

O dispositivo legal que autoriza a indisponibilidade deve ser interpretado restritivamente, pois se trata de norma com conteúdo constritivo de direito. Essa assertiva decorre da garantia constitucional de que ninguém pode ser privado de seus bens sem o devido processo legal.[4]


3. Da doação e da sua anulação em relação ao caso de Pasadena

A doação é o contrato em que uma pessoa, por liberalidade, transfere do seu patrimônio bens para o de outra, formalizada por escritura pública ou instrumento particular.

Pode ser anulada, em alguns casos, a exemplo da transferência da totalidade dos bens, sem reserva de parte ou renda suficiente para a subsistência do doador. Também quando exceder à parte que o doador poderia dispor em testamento, mas quando é realizada aos ascendentes ou cônjuge, trata-se de um adiantamento à legítima.

Como é um negócio jurídico, pode ser anulada, também no caso de: a) coação, b) erro, dolo, fraude contra credores, estado de perigo ou lesão e c) de atos de incapazes.

De todos os requisitos para a anulação, somente interessam, no presente caso, o dolo e a fraude contra credores, pois seriam os únicos, em tese, que poderiam ocasionar um suposto desfazimento do ato por impedir a indisponibilidade a ser decretada pelo TCU.

O dolo seria a intenção consciente de se utilizar do instituto da doação para fins ilícitos que deturpassem sua finalidade. Deve, nesse sentido, ser provado que a doação não foi um ato deliberado de transferência do patrimônio para os filhos, mas uma ação intencional para burlar a indisponibilidade dos bens.

Deve haver provas e não suposições. Não se condena ou decide processos com base em conjecturas, ou seja, desconfiar fosse essa a intenção. Nem indícios são admissíveis.

A fraude contra credores, como óbvio, requer a existência de credores. Se no processo de Controle, ainda se discute a existência, quantificação e responsabilidade do possível prejuízo, inexiste o credor que seria a própria Estatal.

Corolário lógico é que se não existe ainda credores ou débito constituído, impossível a fraude contra credores.


4. Da possível incompetência do TCU para desfazer negócio jurídico privado

A jurisdição do Tribunal é uma função definida pela Constituição e limitada, somente alcançando as partes processuais que são responsáveis ou interessados.

Responsável é aquele assim qualificado na Constituição Federal, na Lei Orgânica do Tribunal ou em respectiva legislação aplicável. Um exemplo pode ser extraído do inc. II do art. 70 da Constituição Federal:

[...] julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos da administração direta e indireta, incluídas as fundações e sociedades instituídas e mantidas pelo Poder Público federal, e as contas daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário público.

 Todos aqueles que manejarem os bens e valores públicos definidos no dispositivo constitucional são considerados responsáveis. No caso da Petrobras, como os recursos utilizados são da companhia de que o Governo federal é o acionista majoritário, assenta-se a responsabilidade de quem participou da aquisição da refinaria. Nesse sentido, o conceito atribuído aos diretores é o de responsáveis.

Interessado é aquele que, em qualquer etapa do processo, tenha reconhecida, pelo relator ou pelo Tribunal, razão legítima para intervir no processo. Exemplo de uma empresa que representa ao Tribunal acerca de supostas falhas em licitação. Não é responsável, mas interessada no resultado útil do processo de Controle, logo, é parte processual interessada.

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A Presidenta pode ser arrolada no processo como responsável. A jurisdição do Tribunal, contudo, não abarca terceiros sem liame jurídico com agente público ou com órgão ou entidade. Ou seja, a sua jurisdição somente alcança o terceiro sem vínculo com a Administração Pública se configurada a responsabilidade solidária com um agente público:

Conforme reiterada jurisprudência desta Corte, empresa contratada pela administração só pode ser responsabilizada por dano ao erário, em processo perante esta Casa, quando sua conduta irregular complementar a atuação igualmente irregular de administrador público, pois compete a este Tribunal apreciar precipuamente os atos praticados por administradores públicos. Apenas por extensão à análise desses atos pode ser apreciada a eventual participação de terceiros. Assim, a atuação faltosa de terceiros, isolada de uma correspondente atuação irregular por parte do administrador, encontra-se fora da competência da Corte de Contas. No presente caso, tendo-se concluído pela conduta regular por parte dos administradores envolvidos, a atuação da empresa deve ser entendida como inadimplência contratual, a ser apreciada pelo Poder Judiciário mediante iniciativa da própria administração [...][5]

Somente o privado que participou do negócio de aquisição da refinaria, supostamente, em conluio com os referidos Diretores é que estaria sob a jurisdição do Tribunal. Os filhos que receberam a doação não possuem nenhuma relação com o fato, logo, estão alijados da jurisdição do Controle.

Sob outro aspecto, a doação como negócio jurídico privado foi entabulada entre a Presidenta e seus filhos que não são jurisdicionados do Tribunal; logo, não teria o Controle competência para suspender os efeitos jurídicos de um negócio privado celebrado à luz do Código Civil. Caberia apenas ao Poder Judiciário por reserva de jurisdição.

Veja-se um exemplo de situação similar: atualmente o Tribunal não pode desconsiderar a personalidade jurídica de empresas para penalizar seus sócios – terceiros privados, o que outrora fizera em diversas oportunidades, conforme recente decisão do STF:

[...] ainda não se pronunciou sobre a validade da aplicação da “disregard doctrine” no âmbito dos procedimentos administrativos, seja porque há eminentes doutrinadores, apoiados na cláusula constitucional da reserva de jurisdição, que entendem imprescindível a existência de ato jurisdicional para legitimar a desconsideração da personalidade jurídica (o que tornaria inadmissível a utilização dessa técnica por órgãos e Tribunais administrativos), seja porque se mostra relevante examinar o tema da desconsideração expansiva da personalidade civil em face do princípio da intranscendência das sanções administrativas e das medidas restritivas de direitos, seja, ainda, porque assume significativa importância o debate em torno da possibilidade de utilização da “disregard doctrine”, pela própria Administração Pública, agindo “pro domo sua”, examinada essa específica questão na perspectiva do princípio da legalidade.[6]

Em síntese, não há plausibilidade jurídica na tentativa de nulificar o ato lícito de doação pelo Tribunal de Contas e espera-se a questão não seja decidida com base em suposições, mas com o emprego da técnica jurídica recomendável e responsável para realizar a verdadeira justiça assentada na legalidade das ações.


Notas

[1] BRASIL. Tribunal de Contas da União. Processo nº 005.406/2013-7. Disponível em: www.tcu.gov.br.

[2] Exemplo: Acórdão 263/2003 – Plenário e Acórdão 7/2003 – Plenário.

[3] BRASIL. STF. Mandado de Segurança nº 24.510-7/DF. Relator: Ministro Celso de Melo.

[4] BRASIL. Constituição (1988). Art. 5º, LIV.

[5] BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão 1768/2004 – Plenário.

[6] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. MS nº 32.494-MC/DF. Relator: Ministro Celso de Mello.

Sobre os autores
Jorge Ulisses Jacoby Fernandes

É professor de Direito Administrativo, mestre em Direito Público e advogado. Consultor cadastrado no Banco Mundial. Foi advogado e administrador postal na ECT; Juiz do Trabalho no TRT 10ª Região, Procurador, Procurador-Geral do Ministério Público e Conselheiro no TCDF.Autor de 13 livros e 6 coletâneas de leis. Tem mais de 8.000 horas de cursos ministrados nas áreas de controle. É membro vitalício da Academia Brasileira de Ciências, Artes, História e Literatura, como acadêmico efetivo imortal em ciências jurídicas, ocupando a cadeira nº 7, cujo patrono é Hely Lopes Meirelles.

Jaques Reolon

Economista, consultor e advogado especialista em Direito Administrativo. Vice-Presidente da Jacoby Fernandes & Reolon Advogados Associados. Ocupou diversos cargos no poder público, dentre os quais se destacam assessor de conselheiro do Tribunal de Contas do Distrito Federal, assessor-chefe e secretário executivo do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas do Distrito Federal. Autor de diversos artigos no campo de licitações e contratos.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERNANDES, Jorge Ulisses Jacoby; REOLON, Jaques. A questão da indisponibilidade dos bens doados pela Presidenta da Petrobras e o TCU. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4082, 4 set. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/31683. Acesso em: 22 dez. 2024.

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