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O abuso acontece numa rodoviária perto de você:

A Resolução 4.308 da ANTT e a recusa ilegal da certidão de nascimento como documento de identificação para embarque de crianças e adolescentes

Agenda 09/12/2014 às 13:37

Não havendo lei que estabeleça obrigatoriedade de o adolescente tirar ou portar carteira de identidade, é ilegal que regulamento administrativo determine o que a lei não exigiu.

Está acontecendo agora, numa rodoviária perto de você! A família humilde embarca no ônibus. De repente ingressa no veículo um fiscal da empresa. Descobre que a filha de 12 anos da mãe assustada que precisa visitar o tio canceroso não possui carteira de identidade. De nada adianta a mãe apelar, é minha filha, veja aqui a certidão de nascimento, seu moço. São expulsos do ônibus. A empresa entende que, para viajar, adolescente tem que ter carteira de identidade. A coisa dá confusão, choro, humilhação da família, e o caso vai parar num Conselho Tutelar para, depois, quem sabe, acabar numa Vara da Infância perto de você. De onde vem o abuso?

Com o propósito de deixar claras as regras para identificação de usuários de transportes rodoviários e ferroviários, a Agência Nacional dos Transportes Terrestres baixou a Resolução nº 4.308, de 10.04.2014. A norma reproduz em seu artigo 2º a disposição do mesmo artigo da Lei nº 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente). Assim, define “criança” como sendo a pessoa até 12 anos de idade e “adolescente” aquela entre 12 anos e 18 incompletos. Na sequência, entretanto, a Resolução pisa na bola, afrontando o mesmo ECA, ao prever exigência de documento de identidade não previsto na Lei para adolescentes.

Por mais que se possa - como bem fazia, e com justo senso de cuidado, o saudoso Desembargador Dr. Alyrio Cavalieri - criticar tal disposição, o fato é que o ECA prevê a possibilidade da viagem do adolescente desacompanhado, em todo o território nacional. E se assim é, não existindo obrigatoriedade de porte de documento de identificação por criança ou adolescente que não a certidão de nascimento, logo, resulta estar facultado ao adolescente viajar identificando-se apenas com a respectiva certidão.

Quem já leu outros textos e estudos que produzi, sabe o quanto sou crítico quanto ao excesso de liberalidades para com crianças e adolescentes, com educação permissiva e uma leitura equivocada do ECA, leitura que imagina jamais poder ser o menor de 18 anos ensinado, repreendido, cerceado, castigado, educado, enfim. Mas trato disso em outros textos, disponíveis em meus livros, e na internet. O fato aqui é que a Resolução da ANTT não afronta uma liberalidade, afronta um direito específico e fundamental.

Este breve estudo, por óbvio, não pretende esgotar o tema, mas propor algumas reflexões sobre a dita Resolução.


O QUE DIZ O ECA

Art. 83. Nenhuma criança poderá viajar para fora da comarca onde reside, desacompanhada dos pais ou responsável, sem expressa autorização judicial.

§ 1º A autorização não será exigida quando:

a) tratar-se de comarca contígua à da residência da criança, se na mesma unidade da Federação, ou incluída na mesma região metropolitana;

b) a criança estiver acompanhada:

1) de ascendente ou colateral maior, até o terceiro grau, comprovado documentalmente o parentesco;

2) de pessoa maior, expressamente autorizada pelo pai, mãe ou responsável.

§ 2º A autoridade judiciária poderá, a pedido dos pais ou responsável, conceder autorização válida por dois anos.

Vê-se que a Lei nº 8.069/90 ECA exclui a necessidade de qualquer autorização judicial para o adolescente que viajar dentro do território nacional. A autorização só é necessária para crianças. Mas mesmo esta pode viajar sozinha, desde que o faça para Comarca contígua à da residência, e não saia do estado da federação ou da região metropolitana em que reside. E quando fala em documentos, fala tão somente em comprovação documental de parentesco, para o caso de viagem de criança com ascendente ou colateral maior. Ora, se é bastante a comprovação do parentesco, esta se faz com os documentos de identidade dos adultos e a certidão de nascimento da criança ou adolescente.

Pois, como afronta à Lei, a Resolução 4308 tem compelido empresas de viação a imaginarem possível e necessária a autorização de viagem para adolescentes que não portem documentos além da certidão de nascimento. Ou seja, a ANTT quer por a estrutura das Varas da Infância e da Juventude a trabalhar para a Agência ou para as empresas transportadoras, concedendo autorizações que apenas atendem a sua ordem administrativa. Ora, à margem outros debates e considerações decorrentes de recentes abusos e desvios de magistrados aqui e ali, o Juiz é poder do Estado, é órgão do Estado. Não deveria estar submetido aos caprichos, por mais bem intencionados que se aparentem, de quem quer que seja.

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Não se olvide que o Art. 16 do ECA, em seu inciso I, prevê, dentre os itens garantidores do direito à liberdade da criança e do adolescente, o “ir, vir e estar nos logradouros públicos e espaços comunitários, ressalvadas as restrições legais”. O ir e vir não é necessariamente o ir e vir apenas caminhando. Tal direito se viabiliza também pelo uso do transporte coletivo, em geral operado como concessão pública. Assim, ao criar norma cerceadora do direito de o adolescente viajar apenas com a certidão de nascimento, a ANTT viola um direito fundamental garantido a todo cidadão pela Constituição Federal e particularizado pelo ECA, ao impedir o uso de um serviço público.

E tudo porque a ANTT não considera a certidão de nascimento um documento de identificação.


CERTIDÃO DE NASCIMENTO É DOCUMENTO DE IDENTIFICAÇÃO

A argumentar, inicialmente, ser a Certidão de Nascimento, de per si, documento de identificação primeiro e primário da cidadania, sem o qual nenhum dos demais se constitui. Pela certidão se prova a existência, a filiação, a data de nascimento e o local de origem. Ainda que se admita seu caráter precário, seu estado frequentemente roto ou debilitado pelo uso, ou a ausência de foto, nada disto basta para desconstituir a prova do registro de nascimento como documento pessoal. A questão da ausência de foto se dilui na comparação com a realidade fática dos documentos que mesmo trazendo foto, não se prestam à identificação visual do portador, por antigo. Não é incomum, em identidades de crianças ou de idosos a aparência física retratada distar muito, ao ponto da quase impossibilidade de, por esta via, constatar-se ser a apresentante a mesma pessoa.

Sobreleva ainda mais o caráter de documento de identificação da Certidão de Nascimento, o novo status da Declaração de Nascido Vivo, com o advento da Lei 12.662. Ainda que em limites estritos, conforme o artigo 2o  dessa Lei, a DNV “tem validade em todo o território nacional até que seja lavrado o assento do registro do nascimento”. Ora, se presume, portanto, que serve a DNV como identificação provisória, certamente ainda mais precária que a Certidão de Nascimento, mas nem por isso de valor menor, ainda que por tempo exíguo e para situações específicas.

Que de futuro se estabeleça uma certidão de nascimento de melhor robustez física, e com conteúdos mais confiáveis, fidedignos e de segurança melhor aferível - como defende o Desembargador Rogério de Oliveira Souza em seu Artigo “Certidão de Nascimento e Segurança Jurídica”, publicado na  Revista da EMERJ nº 43/2008 – é desejável e necessário. Mas até que isso aconteça, que a ninguém seja dado exorbitar.


DA ILEGALIDADE DA EXIGÊNCIA DO PORTE DE DOCUMENTO DE IDENTIDADE

Quanto à exigência de se portar documento de identidade, ela inexiste até mesmo para adultos. Claro que, como determinados direitos e acessos, por disposição legal - e não é o caso da viagem rodoviária de adolescentes - só se farão mediante apresentação de documento de identidade com foto, disso resulta a necessidade de se extrair o chamado “RG”. Mesmo com isso, inexiste a obrigação de porte de documentos. Tal disposição invadiria o campo das liberdades pessoais, o que é inaceitável. Daí estarmos frente a um constrangimento ilegal, mais coerente com regimes espúrios banidos pelas democracias modernas.

Portugal pode parecer uma exceção, com a Lei nº 05 de 1995, que dispôs em seu Art. 2º que “Os cidadãos maiores de 16 anos devem ser portadores de documento de identificação sempre que se encontrem em lugares públicos, abertos ao público ou sujeitos a vigilância policial”. Mas não é. A polêmica em torno da lei resultou na necessidade de esclarecimentos. Dos quais de viu que a presunção é a de que a própria abordagem do cidadão demanda fundada suspeita, para a exigência da documentação estabelecida.

Consideremo que por detrás da Resolução tenha havido a excelente intenção de inibir a possibilidade de evasões e sequestros de crianças e adolescentes. Não se pode presumir que todo adulto com uma criança ou adolescente, que se identifique devidamente e apresente a certidão de nascimento, esteja a sequestrar ou evadir-se ilegalmente com um menor de idade. Da mesma forma, de um adolescente que viaje sozinho portando apenas sua certidão, também não se pode presumir que o esteja fazendo em situação irregular, sem autorização parental, ou foragido. Mas que estes casos podem ocorrer, é risco evidente. Portanto, o conceito da “fundada suspeita” como base para a ação do responsável pelo embarque é a solução. Fundada suspeita que não é palpite, não é achismo e muito menos deveria ser preconceito contra humildes, pobres e negros, como já se viu, com base na Resolução debatida. A fundada suspeita deve emergir de comportamentos inadequados, furtivos, sinais de opressão contra a criança ou intimidação contra o adolescente que acompanhe o adulto. É viável criar-se um protocolo, orientado por psicólogos e assistentes sociais com experiência na área, em que algumas perguntas-chave ajudam a sanar a dúvida. Se a dúvida persistir, aí sim, com alguma raiz poderá ocorrer, não só a exigência de documento de identidade, mas ainda o acionamento do Conselho Tutelar.

Citada a situação portuguesa, acresçamos que a obrigatoriedade de documento para adolescentes, conforme a Wikipedia, até existe em outros países, como a Romênia, que o exige aos 14 anos de idade; a Bélgica e a República Checa, que o impõem a partir dos 15; e a Alemanha e a China, aos 16. Ao que constam, todos com fundamento legal que, entretanto, não ocorre no caso brasileiro.

O Princípio da Legalidade conforme o Artigo 5º da Constituição Federal, em seu inciso II estabelece que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. É coluna basilar das liberdades civis, a nos defender contra abusos de autoridades. Não havendo lei que estabeleça obrigatoriedade de o adolescente tirar ou portar carteira de identidade, é ilegal que regulamento administrativo determine o que a lei não exigiu. A exceção é quando a lei previu reserva para norma reguladora ou complementar. Não é o caso.


PODER NORMATIVO DA ANTT

A ANTT é uma Agência Reguladora, que detém poderes normativos circunscritos ao campo de sua atuação - atuação técnica, diga-se - conforme o Art. 24 da Lei 10.233 que assim os discrimina:

IV – elaborar e editar normas e regulamentos relativos à exploração de vias e terminais, garantindo isonomia no seu acesso e uso, bem como à prestação de serviços de transporte, mantendo os itinerários outorgados e fomentando a competição;

V – editar atos de outorga e de extinção de direito de exploração de infraestrutura e de prestação de serviços de transporte terrestre, celebrando e gerindo os respectivos contratos e demais instrumentos administrativos;

É interpretação elástica demais, imaginar que aqui se dá lastro para o normativo baixado. A coisa piora quando se vê que o preâmbulo da Resolução 4.308 invoca o Regimento Interno da própria instituição, estabelecido pela Resolução nº 3.000, e que em seu Art. 25 dispõe;  “– Compete à Diretoria - VIII - exercer o poder normativo da ANTT”.  Com todas as vênias, parece simplória tal autolegitimação, posto que, ao poder normativo da Agência, não é dado impor a  a verdadeira invasão de competência exclusiva do legislador, redutora de uma liberdade civil básica.

Sei que o assunto é complexo e dá debates acalorados. Mas creio ser consenso que o poder normativo de uma agência reguladora é essencialmente endereçado aos operadores do setor regulado. Nasce da presumida competência técnica para atuar em espaços específicos em que a minúcia não pode ser coberta pela lei. Não pode, ainda que de forma indireta - eis que a Resolução 4.308 é endereçada, naturalmente, às empresas prestadoras de serviços de transporte rodoviário e ferroviário - uma norma da ANTT, à moda de lei, obrigar particulares, de modo abstrato e genérico. É o que acaba ocorrendo pois, ao “obrigar” a transportadora a exigir de passageiros documento de identidade não previsto em lei, constrange o particular.


ANAC X ANTT E O PREJUÍZO AOS MAIS HUMILDES

Tratando do mesmo assunto, a ANAC – Agência Nacional de Aviação Civil, em sua Resolução nº 130, produziu mais coerente regulamento. Assim se vê do § 4º do Artigo 2º daquela norma, quando determina os documentos exigíveis para menores de 18 anos de idade:

§ 4º Em se tratando de criança ou adolescente:

I - no caso de viagem em território nacional e se tratando de criança, deve ser apresentado um dos documentos previstos no caput ou certidão de nascimento do menor – original ou cópia autenticada – e documento que comprove a filiação ou parentesco com o responsável, observadas as demais exigências estabelecidas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente e pela Vara da Infância e Juventude do local de embarque;

Vê-se que a certidão de nascimento é alternativa que prevalece na ausência de outro dos documentos de identificação comumente aceitos.

Lembrando-se que o transporte rodoviário é o transporte mais corriqueiro do humilde, chega a causar estranheza que justo a ANTT busque inovar, em claro prejuízo dos desfavorecidos.

Da combinação das duas Resoluções, teríamos o absurdo de alguém em viagem longa, que demandasse transporte pelos dois meios, poder ingressar num avião com a certidão de nascimento do filho, mas quando fosse embarcar no ônibus que o deixará no destino final,  ser obrigado à apresentação de um documento de identidade que não tem porque não é exigido legalmente.

É sabido que, em alguns casos, Comissários da Infância e Juventude plantonistas em rodoviárias, ou mesmo os Cartórios da Justiça especializada, acabam por, na emergência da situação de confronto passageiro x transportadora, emitir autorizações para o embarque. Tratam-se de autorizações sem previsão legal, cuja concessão se entende como solução de emergência até humanitária, mas cuja permanência só alimenta esse ciclo de irregularidades.


CONCLUSÃO

Nas rodoviárias, cenas como a descrita na abertura deste texto, lamentavelmente, têm sido comuns. Houve casos em que, premido pelas informações de Conselhos Tutelares ou da Vara da Infância quando à ilegalidade do procedimento, mas ao mesmo tempo, não querendo receber multas impostas pela fiscalização da ANTT, gerentes de transportadoras chegaram a efetuar o transporte dos passageiros que acompanhavam menores de idade em carros de passeio da empresa. Mas houve gente que perdeu viagem ou viajou de carona. Tem gente processando transportadoras.

O fato é que a norma aqui contestada veio trazer confusão, ao ponto de bilheteiros estarem recusando a venda de passagens, motoristas estarem impedindo embarques de adolescentes, inclusive portadores de carteiras de identidade, e até de adolescentes acompanhados de ambos os pais! E note-se que todas essas situações absurdas são agravadas por surgirem em momentos de premência, com ânimos acirrados, às vezes com coletivos já de motores ligados para a partida, afligindo famílias.

Deste estudo breve e apressado, parece urgente que as associações de usuários, as entidades de defesa do consumidor, e o Ministério Público diligenciem a mudança do item da Resolução da ANTT, que traz exigência ilegal, desnecessária, e fomentadora de comportamentos abusivos. Providência que urge, ainda mais neste período em que se aproximam as festas de fim de ano, em que o transporte rodoviário fica ainda mais sobrecarregado, o que, pode, naturalmente, trazer ainda maiores constrangimentos aos usuários.

Sobre o autor
Denilson Cardoso de Araújo

Serventuário de Justiça do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Escritor. Palestrante.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARAÚJO, Denilson Cardoso. O abuso acontece numa rodoviária perto de você:: A Resolução 4.308 da ANTT e a recusa ilegal da certidão de nascimento como documento de identificação para embarque de crianças e adolescentes. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4178, 9 dez. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/34739. Acesso em: 2 nov. 2024.

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