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O Supremo Tribunal Federal brasileiro e a proteção dos direitos fundamentais:

a incompatibilidade com os fundamentos da teoria do direito penal do inimigo

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Agenda 20/02/2015 às 10:17

O Direito Penal do Inimigo apresenta-se na direção oposta à dignidade da pessoa humana e da cidadania. A maior severidade no controle das ações criminosas não implica o resgate desta teoria que, fracionando os indivíduos entre cidadãos e inimigos do Estado, pune preventivamente os considerados inimigos do Estado.

Sumário: 1) Direito e sociedade; 2)Constituição Federal de 1988 e a função do Supremo Tribunal Federal; 3)Direitos Fundamentais e suas restrições; 4) Combate ao crime organizado 4.1) Direito Penal do Inimigo – críticas a respeito da Teoria; 4.2) Lei n. 9.034/95; 4.2.1) Dos meios operacionais de investigação e prova; 4.3) Ação Controlada; 5) Conclusão; 6) Referências bibliográficas.

Resumo: O objetivo do presente artigo é apresentar uma análise sobre a importância do Supremo Tribunal Federal brasileiro (STF) na garantia, proteção, aplicação, proporcionalidade e no equilíbrio dos direitos constitucionalmente consagrados. Ainda, é objeto da presente pesquisa o exame sobre a possibilidade de o referido Tribunal admitir a restrição de direitos, na busca pela pacificação social. Cumpre esclarecer que o tema proposto comporta diversas abordagens. Dentre elas, o enfoque escolhido se estabelece à luz dos Direitos Fundamentais e suas restrições, apresentados na obra “Teoria dos Direitos Fundamentais”, de Robert Alexy, em especial no que tange às competências do cidadão e do Estado, bem como pela possibilidade lógica de restrição aos referidos direitos. Ainda, o presente ensaio buscará apresentar a incompatibilidade entre a restrição dos direitos e garantias do ser humano em face da proteção da sociedade, sob o prisma da Teoria do Direito Penal do Inimigo, que, na busca pelo combate a específicas condutas criminosas, dentre as quais se destaca a delinqüência econômica, fraciona os seres humanos em dois grandes grupos: cidadãos e inimigos, e destes (os inimigos) restringe um núcleo intangível de direitos e garantias. Por fim, será apresentada restrição a direitos fundamentais, prevista na legislação brasileira (Lei n. 9.034/95).  

Palavras – chave: direitos fundamentais; restrições a direitos; Robert Alexy; Supremo Tribunal Federal.


Introdução

A Constituição Federal de 1988 brasileira (CF/88) apresenta, em seu art. 1º, os fundamentos da República Federativa do Brasil. Dentre eles, serão destacados para a presente análise a cidadania e a dignidade da pessoa humana, que são dois dos pilares para a construção e o fortalecimento do Estado Democrático de Direito. Ainda, a Lei Maior elenca no art. 5º ( que se encontra no Título II, e prevê os Direitos e Garantias Fundamentais), os direitos e deveres individuais e coletivos. Em continuidade, é importante esclarecer que o art. 102 atribui ao Supremo Tribunal Federal (STF) a guarda da Constituição Federal. Desta maneira, cabe ao STF a nobre função da proteção da sociedade e dos cidadãos, através do amparo das normas constitucionais, e, naturalmente, dos ordenamentos infraconstitucionais também. O presente trabalho versa sobre a limitação ao poder de investigar e de punir do Estado, na esfera das questões penais. As limitações da atuação do Estado frente aos cidadãos busca proporcionar segurança jurídica na sociedade. Esta segurança abrange um conjunto de princípios constitucionais implícitos e explícitos. Dentre os referidos princípios, merecem destaque os princípios da legalidade e da anterioridade. O cidadão possui o direito de saber quais são as conseqüências para a prática de suas condutas, pois estas estão expressamente previstas e tipificadas. Este é um dos exemplos de limitação de atuação estatal.  

Naturalmente, com as relações sociais cada vez mais complexas, a solução dos conflitos também tende a apresentar elevado grau de dificuldade. A ramificação das necessidades humanas e sociais se desdobra em diversas áreas. Dentre estas, destacaremos a proteção da sociedade e dos cidadãos contra o crime organizado.

Frente a este quadro, é imprescindível a reflexão acerca dos seguintes questionamentos: na busca para a pacificação social, é possível a restrição de direitos fundamentais? Ainda, se esta for possível, há limites? Como é possível esta avaliação? É necessária uma profunda ponderação acerca dos questionamentos. Para tanto, é indispensável uma breve explanação sobre a relação entre o direito e a sociedade, a proteção dos direitos, a existência dos núcleos intangíveis e tangíveis de direitos, bem como a possibilidade de  restrição dos direitos fundamentais, segundo a concepção de Robert Alexy.

Em seguida, é necessária a apresentação da importância da atuação, constitucionalmente prevista, para o Supremo Tribunal Federal, bem como a apresentação de um caso concreto do ordenamento jurídico pátrio, na luta contra o crime organizado. Ainda, é fundamental  a análise da incompatibilidade da restrição de direitos prevista da Teoria do Direito Penal do Inimigo com a proteção e garantia da dignidade humana.

Por fim, é importante esclarecer que existem diversos mecanismos previstos, no ordenamento jurídico brasileiro, que são destinados ao combate do crime organizado. Tais medidas possuem previsão normativa para a restrição de uma gama de direitos, desde que exista fundamentada suspeita, e que sejam cumpridos os requisitos legais, em favor da proteção da sociedade. A legislação brasileira prevê diversas medidas restritivas ao direito à intimidade, privacidade, e sigilo, como, por exemplo, a escuta telefônica, ação controlada, a presença de agentes infiltrados nas operações. Estas condutas flexibilizam diversos princípios constitucionais, mas não vulneram a dignidade da pessoa humana. O presente artigo abordará, dentre os mecanismos supracitados, a ação controlada, ação esta que consiste em retardar a interdição policial do que se suspeita ser ação praticada por organizações criminosas, ou organizações vinculadas a ela, conforme a previsão do art. 2º, II, da Lei nº.9.034/95. Este meio investigativo visa tornar mais eficaz o conjunto de informações de provas, bem como o fornecimento de informações.


1)      Direito e sociedade

Existe uma forte relação entre o Direito e a sociedade. Isto porque o ordenamento jurídico apresenta as diretrizes para a proteção – preventiva e repressiva - e organização social. Os mecanismos de proteção ocorrem tanto na esfera preventiva quanto no âmbito repressivo, e se desdobram nas mais diversas áreas de necessidade e atuação humanas.  A construção jurídica que embasa e permeia as sociedades está intimamente relacionada com a evolução e o desenvolvimento histórico delas.

Desta maneira, o ordenamento jurídico atual reflete a história da humanidade. Desde a estruturação dos Estados e suas relações com seus cidadãos, e estrangeiros, até as diretrizes e tratados internacionais adotados, e aplicados em plano nacional e internacional, o comportamento humano influenciou profundamente as diretrizes sociais, políticas, econômicas e jurídicas adotadas pelas sociedades.

As necessidades e expectativas da humanidade foram sendo construídas e refletidas, com o decorrer da história. O Direito apresenta estrita ligação com a sociedade, e com ela evolui. Vale dizer, desta forma, que com o passar do tempo as relações e as necessidades são cada vez mais complexas. Neste ponto é fundamental buscar garantir condições dignas a todos os seres humanos.

Todo o desenvolvimento histórico das sociedades, bem como as reivindicações dos seres humanos, na busca pelo reconhecimento e aplicação de direitos se reflete nos ordenamentos jurídicos. A conjugação do estudo do Direito Privado com o Direito Internacional é de extrema importância. Isto porque inúmeros Tratados Internacionais, e Nacionais, consubstanciam e consagram direitos, e prevêem deveres, dos cidadãos na relação com o Estado, e entre os Estados.

Os cidadãos possuem direitos a ações negativas, que Robert Alexy entende como direitos de defesa, frente ao Estado, como abaixo se expõem[i]:

Direitos a ações negativas (direitos de defesa). Os direitos dos cidadãos, contra o Estado, a ações negativas (direitos de defesa) podem ser divididos em três grupos. O primeiro grupo é composto por direitos a que o Estado não impeça ou não dificulte determinadas ações do titular do direito; o segundo grupo, de direitos a que o Estado não afete determinadas características ou situações do titular do direito; o terceiro grupo, de direitos a que o Estado não elimine determinadas posições jurídicas do titular do direito.

Existem diversos mecanismos de defesa dos cidadãos, em face da atuação estatal. Os direitos de ramificam em dois grandes grupos: os direitos positivos e direitos negativos. Ainda, sobre a relação entre o Estado, o Direito e os cidadãos, importantes são as lições de Miguel Reale[ii]:

O Direito corresponde à exigência essencial e indeclinável de uma convivência ordenada, pois nenhuma sociedade poderia subsistir sem um mínimo de ordem, de direção e solidariedade.

E mais, segue esclarecendo o vínculo entre o Direito e a sociedade[iii]:

De “experiência jurídica”, em verdade, só podemos falar onde e quando se formam relações entre os homens, por isso denominadas relações intersubjetivas, por envolverem sempre dois ou mais sujeitos. Daí sempre nova lição de um antigo brocardo: ubi societas, ibi jus (onde está a sociedade está o Direito). A recíproca também é verdadeira: ubi jus, ibi societas, não se podendo conceber qualquer atividade social desprovida de forma e garantia jurídicas,  nem qualquer regra jurídica que não se refira à sociedade.

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Estabelecida a relação supracitada, é imprescindível retomar o seguinte conceito: as normas apresentam mecanismos de tutela antes e depois das condutas lesivas. Desta forma, compreendemos que o que se busca é evitas a lesão aos direitos e garantias fundamentais. Mas caso isto seja inevitável, e ocorra, existem mecanismos para a reparação dos danos.  É importante retomar o seguinte conceito: os cidadãos, ao longo do desenvolvimento da história, conquistaram direitos e receberam deveres tanto entre si, quanto para com o Estado.   

Ocorre que a sociedade demanda cada vez mais soluções para os novos problemas que surgem. Dentre as complexas questões, enquadra-se a problemática do crime organizado. Afinal, como combater a estes crimes, e garantir a proteção da sociedade e a defesa da dignidade da pessoa humana? Como atingir este equilíbrio na referida relação? A busca pela solução destes questionamentos é de extrema complexidade. A ponderação e o equilíbrio entre os princípios merecem uma análise aprofundada.

Ainda, a peculiaridade do crime organizado de desdobra em inúmeras discussões, que oportunamente serão apresentadas.  


2) Constituição Federal de 1988 e a função do Supremo Tribunal Federal

O tópico anterior se dedicou a demonstrar que o Direito e a sociedade encontram-se profundamente relacionados. Ainda, que o ordenamento jurídico brasileiro, em seu artigo 102, CF/88, garante ao Supremo Tribunal Federal a guarda da constituição brasileira. A Lei Maior brasileira norteia todos os diplomas infraconstitucionais. Desta forma, caso estas a contrariem ou com ela sejam incompatíveis, serão consideradas inconstitucionais, e não serão aplicadas.

Cabe ao ordenamento jurídico, portanto, apresentar as regras de convívio e pacificação social. Além da previsão constitucional, naturalmente, é necessária a análise sobre a aplicação dos princípios e normas, bem como a possibilidade, os limites e as conseqüências da restrição dos direitos fundamentais.  A partir dos parâmetros constitucionais, há desdobramentos para as diversas ramificações, áreas específicas do Direito. Cumpre destacar, ainda, que o Direito é uno, e é fracionado, segregado para fins didáticos. A ramificação do Direito, desta maneira, é importante para apresentar as peculiaridades de cada ramo que o compõem, e para apresentar as tutelas adequadas aos casos concretos.

Para José Afonso da Silva[iv]:

O Direito é fenômeno histórico-cultural, realidade ordenada, ou ordenação normativa da conduta segundo uma conexão de sentido. Consiste num sistema normativo. Como tal, pode ser estudado por unidades estruturais que o compõem, sem perder de vista a totalidade de suas manifestações. Essas unidades estruturais ou dogmáticas do sistema jurídico constituem as divisões do Direito, que a doutrina denomina ramos da ciência jurídica, comportando subdivisões.

Desta forma, é necessária a leitura do Direito Penal em conjunto com o Direito Processual Penal e Direito Constitucional. A Constituição Federal de 1988, Constituição-Cidadã, consagra a proteção à dignidade da pessoa humana como um de seus fundamentos, inserido no Estado Democrático de Direito. Devemos refletir as razões pelas quais a proteção humana figura em plano de tamanho destaque.

Insta salientar que a busca pela proteção da dignidade da pessoa humana decorre de uma preocupação mundial, em especial após as barbaridades ocorridas após as grandes guerras mundiais. Uma das discussões mais importantes repercute na proteção dos direitos dos homens. Na realidade, houve intensa luta para o reconhecimento destes direitos, inerentes aos seres humanos. Ao longo do desenvolvimento da humanidade, o que se verificou foi o movimento de muitos grupos de excluídos, na busca pelo respeito aos seus direitos e garantias fundamentais. Neste sentido, de observação entre a cidadania, e os grupos destes excluídos, entende Gianpaolo Poggio Smanio[v]:

O momento histórico do surgimento do uso lingüístico da expressão “cidadania” no sentido que evoca o que utilizamos atualmente encontra-se em Jean Bodin, em 1576, na Lês Six Livres de La Republique onde ocorre o início da fundamentação jurídica do Estado Moderno, como poder absoluto, perpétuo e incondicionado do soberano sobre os súditos. A formulação da idéia de soberania traz a conceituação da cidadania como instituto. (...)A cidadania era um instrumento para a unificação do Estado Absoluto do século XVI. O indivíduo passava a pertencer a uma determinada esfera jurídica enquanto o cidadão do Estado, detentor de um status jurídico que possibilitava o exercício de relações e direitos em relação ao soberano. Os escravos e os estrangeiros não eram considerados cidadãos porque não gozavam dos direitos e privilégios dos cidadãos. As mulheres e as crianças também não eram consideradas cidadãs porque estavam sujeitas ao poder do chefe de família. Somente o indivíduo livre e nacional do Estado era considerado cidadão.

Abrange desta forma uma série de direitos e de deveres. Os direitos e garantias conferidos aos seres humanos estão relacionados com o exercício da cidadania destes. Afinal, ser cidadão é gozar de direitos e possuir obrigações frente ao Estado, respeitando estas normas, bem como respeitando as normas de convívio social. A cidadania deve ser exercida de modo ativo. Em continuidade, é imprescindível a compreensão das garantias fundamentais do ser humano, frente ao poder punitivo e repressor do Estado. Os questionamentos se desdobram justamente na análise da possibilidade e nos tipos de restrições a estes direitos. E mais, quais seriam os limites possíveis destas restrições?

Complementando esta breve explanação, cumpre retomar uma das atribuições do STF, que é garantir a proteção das normas constitucionais, e, dentre estas, se inclui o exercício da cidadania ( que se encontra no rol dos fundamentos do Estado Democrático de Direito brasileiro, prevista no art. 1º, da CF/88).


3) Direitos Fundamentais e suas restrições

A análise dos direitos fundamentais comporta diversas abordagens. Dentre as inúmeras possibilidades, destacaremos a obra “Teoria dos Direitos Fundamentais”, de Robert Alexy. Antes de adentrarmos ao tema, cumpre esclarecer que o autor apresenta extrema relevância para o estudo do tema. Isto porque Robert Alexy se baseia especialmente na jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal Alemão para a análise do papel dos direitos fundamentais no ordenamento jurídico. Alexy esclarece que sua teoria é desenvolvida em decorrência de três atributos: teoria dos direitos fundamentais da Constituição alemã; teoria jurídica e teoria geral. Cumpre esclarecer que o autor desdobra a obra “Teoria dos Direitos Fundamentais” em dez capítulos, que cuidam do tema na seguinte seqüência:  

Objeto e tarefa de uma teoria dos direitos fundamentais; conceito de normas destes; estrutura das normas de direitos fundamentais; direitos fundamentais como direitos subjetivos; direito fundamental e status; direitos fundamentais e suas restrições; direito geral de liberdade; direito geral de igualdade; direitos e ações estatais positivas; direitos fundamentais e normas de direitos fundamentais no sistema jurídico.

Em cada capítulo, há o desdobramento da Teoria em diversos tópicos. Delimitaremos o estudo na classificação e restrição dos direitos fundamentais. Entende Robert Alexy que os direitos fundamentais podem ser restritos, como abaixo se expõe[vi]:

O conceito de restrição a um direito parece familiar e não problemático. Que direitos tenham restrições e que possam ser restringidos parece ser uma idéia natural, quase trivial, que encontra expressão na Constituição alemã, sobretudo quando se fala expressamente em restrições.

O problema parece não estar no conceito de restrição a um direito fundamental, mas exclusivamente na definição dos possíveis conteúdo e extensão dessas restrições e na distinção entre restrições e outras coisas como regulamentações, configurações e concretizações.

Frente a estas explicações, é fundamental a seguinte pergunta: a busca pelo enfrentamento do crime organizado permite a flexibilização de direitos e garantias fundamentais? É o que se passa a analisar. Para tanto, devem ser estudados alguns dos aspectos do crime organizado.


4) Combate ao crime organizado

É importante esclarecer que o combate ao crime organizado apresenta grande complexidade. Isto porque as facetas de atuação criminosa se desdobram nas mais diversas condutas. Ainda, há grande dificuldade na definição e conseqüente tipificação do que é crime organizado. Segundo Guilherme Madeira Dezem[vii]:

Tema dos mais tormentosos está justamente na identificação do que pode ser entendido por criminalidade organizada. A respeito do tema não há uniformidade entre os doutrinadores, havendo posições das mais variadas. Tem-se desde aqueles que entendem pela impossibilidade da conceituação de crime organizado até mesmo aqueles que distinguem os vários conceitos de crime organizado.

Em seguida, explica o autor que, através das alterações legislativas acerca do tema e a busca pelo conceito de criminalidade organizada[viii]:

Trata-se do previsto na Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, incorporada no Direito brasileiro pelo Decreto n. 5.015, de 12-3-2004.

É certo que referida convenção cuida tão somente da criminalidade organizada transnacional ( que é aquela que atua para além das fronteiras nacionais), não cuidando das organizações criminosas nacionais. Contudo, é razoável admitir a integração desta norma no sistema legal brasileiro como forma de identificação do conteúdo da criminalidade organizada, tendo em vista tratar-se do mesmo fenômeno, apenas com diferença espacial de atuação.

Dentre todos os problemas acarretados pela criminalidade organizada, um dos grandes desafios é conciliar a segurança de todos, o controle das práticas criminosas e a garantia e proteção da dignidade da pessoa humana. É imprescindível a análise desta questão frente às diretrizes constitucionais. E mais, é importante a análise de quais as contribuições do Direito Penal para a sociedade. Esta análise deve estar em harmonia com o Direito Constitucional, que deve ser a base e a diretriz para todos os ramos do Direito.

O Direito Penal apresenta a função de tutelar a sociedade, protegendo-a das lesões e práticas criminosas. Desta maneira, o Direito Penal atua nas esferas preventiva e repressiva. Preventiva pois as condutas criminosas e as infrações penais estão tipificadas. Repressivamente, o Direito Penal visa coibir novos crimes. A leitura do Direito Penal deve ser realizada de acordo com as normas e diretrizes constitucionais.

Pois bem, a Constituição Federal elenca, em seu artigo 5º elenca os direitos e garantias fundamentais. E mais, em seu caput, estabelece que todos são iguais perante a lei.

Diante da consagração constitucional supracitada, questiona-se: como é possível o combate ao crime organizado? Quais serão os limites de atuação estatal? O estudo da presente questão deve versar sobre a Teoria do Direito Penal do Inimigo e as críticas a ela formuladas.

4.1) Direito Penal do Inimigo – críticas a respeito da Teoria

A teoria do Direito Penal do Inimigo, amplamente difundida pelo professor alemão Günther Jakobs mostra-se como um grande exemplo de restrição de direitos e garantias individuais. Entende o professor que existem duas formas de criminalidade bem diferenciadas: a praticada pelo cidadão e a praticada pelo inimigo do Estado.

Para tanto, conseqüentemente, há a aplicação de dois pólos do Direito Penal, um para estes e outro para aqueles. Esta teoria encontra-se relacionada com a questão da segurança cognitiva. O autor entende que o crime praticado pelo cidadão não rivaliza com o pacto social, enquanto o crime praticado pelo inimigo rivaliza com a estruturação do Estado.

Desta forma, entende o autor que[ix]:

Quem não presta uma segurança cognitiva suficiente de um comportamento pessoal não só não pode esperar ser tratado ainda como pessoa, mas o Estado não deve tratá-lo como pessoa, já que o contrário vulneraria o direito à segurança das demais pessoas. Portanto, seria completamente errôneo demonizar aquilo que aqui se tem denominado Direito Penal do inimigo.

Neste cenário, em que a população se sente insegura e fragilizada, frente aos comportamentos criminosos, dentre os quais se destaca para a presente análise o crime organizado, foi resgatada a teoria do Direito Penal do Inimigo, apresentada por Günter Jakobs, professor alemão, na secunda metade da década dos anos 90.

Esta teoria foi objeto de intenso estudo. Após diversas análises sobre o contexto vivenciado, e tomado pela criminalidade, Jakobs estuda a postura adotada pelos seres humanos, frente ao chamado contrato social. Conclui ele que, enquanto muitas pessoas seguem as normas e diretrizes sociais, outras dela se afastam, e cometem crimes. Rogério Greco explica[x]:

Jakobs, por meio dessa denominação, procura traçar uma distinção entre um Direito Penal do Cidadão e um Direito Penal do Inimigo. O primeiro, em uma visão tradicional, garantista, com observância de todos os princípios fundamentais que lhe são pertinentes; o segundo, intitulado Direito Penal do Inimigo, seria um Direito Penal despreocupado com seus princípios fundamentais, pois não estaríamos diante de cidadãos, mas sim de inimigos do Estado.

O raciocínio seria o de verdadeiro estado de guerra, razão pela qual, de acordo com Jakobs, numa guerra, as regras do jogo devem ser diferentes. O Direito Penal do Inimigo, conforme salienta Jakobs, já existe em nossas legislações, gostemos ou não disso, a exemplo do que ocorre no Brasil com a lei que dispõe sobre a utilização de meios operacionais para a prevenção de ações praticadas por organizações criminosas.

A teoria do Direito Penal do Inimigo, portanto, classifica os seres humanos em “cidadãos”, e “inimigos”. Assim sendo, fraciona e fragmenta as normas consolidadas no âmbito do Direito Penal em normas de “Direito Penal do Inimigo”, e “Direito Penal do Cidadão”.

Ocorre que esta fragmentação acarreta uma série de lesões a direitos e garantias fundamentais. Ao classificar os seres humanos em cidadãos e inimigos, estaremos diante de uma enorme insegurança jurídica e social. Trata-se de um exemplo de flexibilização das normas e restrição de direitos que deve ser afastado do ordenamento jurídico.

Quanto às conseqüências da adoção da teoria do Direito Penal do Inimigo, Vicente Greco Filho as apresenta e elenca[xi]:

Ao inimigo, aplicar-se-iam, entre outras, algumas das seguintes medidas: não é punido com pena, mas com medida de segurança; é punido conforme sua periculosidade e não culpabilidade; no estágio prévio ao ato preparatório; a punição não considera o passado, mas o futuro e suas garantias sociais; para ele, o direito penal é prospectivo ou de probabilidade; não é sujeito de direitos, mas de coação como impedimento à prática de delitos, para o inimigo, haverá a redução de garantias como o sigilo telefônico, o ônus da prova, o direito de ficar calado, o processo penal em liberdade e outras garantias processuais.

Assim, o direito penal do cidadão tem por finalidade assegurar as normas do sistema vigente, enquanto o direito penal do inimigo combate (guerra) preponderantemente o perigo. O direito penal do inimigo deve antecipar a tutela penal para alcançar os atos preparatórios mesmo sendo a pena intensa e desproporcional. Para o cidadão, a coação somente deve ser iniciada com a privação da liberdade se houver a exteriorização de um ato que a exija como necessária.

Além disso, é imprescindível destacar que a evolução construtiva de direitos e garantias aplicáveis aos seres humanos deve sempre ser respeitada. Isto significa que devemos evitar o retrocesso dos direitos e garantias fundamentais, que estão constitucionalmente previstos.

Outra observação é importantíssima. As alterações proporcionadas pela fragmentação da esfera material, pela fragmentação deste em direito penal do cidadão e direito penal do inimigo, irão repercutir no âmbito do direito processual.

Frente a esta explicação, é necessário estabelecer uma análise desta teoria em conjunto com o ordenamento jurídico brasileiro, em especial com a Constituição Federal de 1988, que consagra, em seu Título I, os princípios fundamentais que nos regem, sendo um deles a cidadania e em seu Título II, os direitos e garantias fundamentais da República Federativa do Brasil. É imprescindível a observação de que o caput do referido artigo estampa a igualdade de todos, perante a lei.

Portanto, todos os cidadãos devem tanto receber os direitos como cumprir com as obrigações constitucionalmente estabelecidas. O princípio da legalidade, juntamente com o princípio da anterioridade, garante a segurança jurídica e a estabilidade das decisões proferidas. Afinal, para que uma conduta seja considerada ilícita, deve estar previamente tipificada. Ocorre que a lei deve ser aplicada para todos, afinal, esta é abstrata e genérica. E, para a sua aplicação, deve ser analisado o caso concreto.

O fracionamento dos seres humanos entre dois grandes grupos: os cidadãos e os inimigos do Estado viola tanto os direitos ligados à cidadania quanto fere a dignidade humana. Cumpre destacar, ainda, que as críticas destinadas à teoria do Direito Penal do Inimigo não significam, em nenhuma hipótese, a exclusão da punição das condutas relacionadas com o crime organizado. Na realidade, esta teoria foi apresentada para que sejam refletidos os parâmetros de flexibilização dos direitos na busca pelo combate ao crime organizado.

4.2) Lei n. 9.034/95

Apresentada a Teoria do Direito Penal do Inimigo, e as conseqüências graves para a adoção da classificação dos seres humanos entre cidadãos e inimigos do Estado, é importante a análise da legislação brasileira na repressão a esta modalidade criminosa.

A lei n. 9.034/95 cuida da utilização de meios operacionais tanto para a prevenção quanto para a repressão de ações praticadas por ações criminosas, no ordenamento jurídico brasileiro. Desata forma, além dos meios de prova previstos no Código de Processo Penal Brasileiro, a Lei do Crime Organizado estabelece uma série de mecanismos específicos para a obtenção de provas. Tais medidas apresentam maior rigor na investigação dos atos praticados pelos membros participantes do crime organizado. A legislação brasileira prevê a possibilidade da violação do sigilo (preservado ou pela Constituição ou por lei infraconstitucional), e determina que, nestes casos, as diligências deverão ser realizadas pessoalmente pelo magistrado, e deverá ser adotado o mais rigoroso segredo de justiça. É importante destacar que esta ponderação de direitos em momento algum agride a dignidade humana, tal qual a lesão prevista na teoria do Direito Penal do Inimigo.  

4.2.1) Dos meios operacionais de investigação e prova

A Lei n. 9.034/95, que dispõe sobre as ações praticadas por organizações criminosas, bem como meios operacionais de investigação e prova elenca em seu art. 2º, os seguintes procedimentos para a investigação e formação das provas: ação controlada; acesso a dados, documentos e informações (fiscais, bancárias, financeiras e eleitorais); captação e interceptação ambiental de sinais (eletromagnéticos, óticos ou acústicos), bem como seu registro e análise – mediante circunstanciada autorização judicial, e, por fim, a infiltração por agentes de polícia ou de inteligência, mediante circunstanciada autorização judicial.

Ainda, conforme previamente abordado, é importante destacar que a legislação prevê, no art. 3º, as conseqüências para a possível vulneração de sigilo, constitucionalmente previsto. Nestes casos, determina a Lei que a diligência será realizada pessoalmente pelo juiz, e deverá ser adotado o mais rigoroso segredo de justiça.

A respeito da ação controlada, Eduardo Araújo da Silva leciona que[xii]:

A Lei n. 9.034/95 não exige prévia autorização judicial para a adoção da ação controlada, mas tão somente dois requisitos: (1) a existência de um crime em desenvolvimento praticado por organização criminosa ou a ela vinculado; (2) a observação e acompanhamento dos atos praticados pelos investigados até o momento mais adequado para a formação da prova e a colheita das informações (art. 2º, II).

Desta maneira, estando presentes os requisitos, não é necessária a autorização judicial prévia para a referida ação.

4.3) Ação Controlada

Sobre a ação controlada, e a flexibilização da preservação do direito ao sigilo, importante é a análise do Habeas Corpus n. 102.819, de 05/04/2011, um recente julgado do STF, que analisa justamente a legalidade desta ação. No presente, o paciente alegava a nulidade das provas colhidas, argumentando a ilicitude desta colheita.

Dentre os argumentos apresentados, importantes são as transcrições abaixo citadas[xiii]:

O impetrante aponta como autoridade coatora o Ministro Relator do Inquérito nº. 650/DF, em curso no Superior Tribunal de Justiça, que teria autorizado “a preparação de atos para a realização de flagrante delito, a preparação de atos policialescos para a prática de fato criminoso”, com a participação do Ministério Público Federal e de Delegado de Polícia Federal, consoante “Autos Apartados (sigiloso) – Apenso 3. Diz que, mediante “ação controlada”, haver-se-iam cometido ilícitos em detrimento do paciente e da persecução criminal, pois a autoridade coatora teria autorizado “a preparação para a ocorrência de crime, para que um terceiro viesse a praticar flagrante delito ou cometer um crime na fase inquisitorial”. Acentua que, “ao montar ações controladas”, o aparelho do Estado, o membro do Ministério Público Federal e a autoridade atuam com irresponsabilidade ao preparar “um agente do crime, para gravar, filmar e ouvir conversações nas dependências do gabinete por ele ocupado, com aparelhos colocados em vestimentas, a fim de que terceiros viessem a cometer crime e fossem apanhados em flagrante delito. (...) Assevera, por isso, a ilegalidade dos atos praticados em virtude de “ação controlada”, pois a medida foi tomada sem que houvesse fato criminoso determinado. Ao contrário, a autoridade coatora veio a praticar ato autorizativo em favor da Polícia para que, em comum acordo com um dos agentes do crime, pudesse promover as gravações de vídeo ou a chamada “captação ambiental de vídeo e/ou áudio”, usando o corpo do agente do crime para produzir provas nas alegações lançadas nos termos de declarações.

Frente aos fatos apresentados, alega que estão comprometidos tanto o princípio da imparcialidade quanto o devido processo legal.

Por fim, apresenta os seguintes pedidos[xiv]:

A concessão de liminar para 1) sustar o andamento dos “autos apartados (sigiloso) apenso 3”, denominados de “ação controlada”, até o julgamento final da impetração, com o objetivo de assegurar a “desvinculação do juiz, não da colheita de provas, mas da investigação criminal”, e para resguardar a condição de “terceiro imparcial”; 2) determinar que os referidos autos apartados sejam mantidos em sigilo e recomendar que a provedora http://www.ig.com.br retire do sítio a cópia dos autos da mencionada página, até que se conclua o inquérito e a eventual ação penal.

No caso em tela, a Procuradoria Geral da República se manifestou opinando pelo não conhecimento do habeas corpus. Dentre os diversos motivos, se destaca a inadequação da via eleita. Ainda, as questões devem ser analisadas em sede de instrução criminal. E mais, não deve haver a nulificação das provas obtidas, tendo em vista o respeito aos parâmetros legalmente estabelecidos.

É importante a transcrição do voto do Ministro Luiz Fux[xv]:

Há uma preliminar de inadequação do habeas corpus para este fim, porque, na realidade, o que a parte pretende, por via reflexa, é nulificar a prova que foi colhida através de interceptação ambiental, por meio de uma ação controlada.

No campo do Direito Penal, nós estamos sempre sob a óptica da legalidade, e a Lei n. 9.034/95, no artigo 2º, incisos II e IV, permite essa captação e interceptação ambiental de sinais eletromagnéticos, óticos ou acústicos, e o seu registro e análise, mediante circunstanciada autorização judicial.

E foi o que houve. E, na verdade, a nulificação desta prova nulificaria completamente um inquérito que veio exatamente em proveito da moralidade administrativa e do bem público, como destacou o Ministro Marco Aurélio.

De sorte que eu o acompanho na denegação da ordem, não é? Aqui Vossa Excelência denega.

A presente decisão confirma a possibilidade da flexibilização de direitos constitucionalmente garantidos ( sigilo, preservação de intimidade), frente ao combate do crime organizado. Tais restrições, entretanto, não vulneram a dignidade humana. Trata-se de uma limitação de poder de atuação estatal. Desta maneira, o que se verifica é que o ordenamento jurídico brasileiro permite a ponderação de princípios na busca pela pacificação social.

Sobre a autora
Maria Fernanda Soares Macedo

Advogada. Professora Convidada no Curso de Especialização em Direito e Processo Penal, na Universidade Presbiteriana Mackenzie. Professora tutora no Complexo Jurídico Damásio de Jesus, para os cursos de 2ª fase do Exame da Ordem dos Advogados do Brasil, na área de Direito Penal. Professora orientadora dos cursos de pós graduação em Direito Constitucional e Direito e Processo Penal, no Complexo Jurídico Damásio de Jesus (orientações on-line). Trabalha com o ensino à distância, elaborando aulas para o ambiente virtual de aprendizagem dos cursos de MBA das Faculdades Metropolitanas Unidas, com ênfase nos seguintes temas: Sistema Financeiro Nacional, Direito Penal Imobiliário, Mercado de Capitais e Planejamento Tributário. É Professora da Disciplina de Metodologia e Didática para os cursos de Pós graduação das Faculdades Metropolitanas Unidas. Possui graduação em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie , em 2008. Mestre em Direito Político e Econômico, na Universidade Presbiteriana Mackenzie(dissertação aprovada com distinção). Especialista em Direito Empresarial (2010), pela mesma Universidade. Foi bolsista CAPES, no programa de Mestrado em Direito Político e Econômico, bem como estagiaria-docente nas disciplinas de Estado De Direito Democrático e Crime Organizado; Sistemas Jurídicos Contemporâneos; Direito Penal e Direito Processual Penal, na Universidade. Realiza pesquisas nos grupos "Políticas Públicas como instrumento de efetivação da Cidadania" e "Novos Direitos e proteção da cidadania: evolução normativa, doutrinária e jurisprudencial", que são vinculados ao Programa de Pós-Graduação Strictu Sensu da Faculdade de Direito da Universidade Mackenzie. Foi advogada-chefe de sala na aplicação dos Exames da Ordem dos Advogados do Brasil, em São Paulo, em 2010 e 2011 (CESPE/UNB e FGV).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MACEDO, Maria Fernanda Soares. O Supremo Tribunal Federal brasileiro e a proteção dos direitos fundamentais:: a incompatibilidade com os fundamentos da teoria do direito penal do inimigo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4251, 20 fev. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/36480. Acesso em: 22 dez. 2024.

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