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A audiência de custódia e o "jeitinho brasileiro"

Agenda 31/05/2015 às 13:38

O provimento do TJ/SP sobre audiência de custódia determina que todas as pessoas presas em flagrante sejam apresentadas ao juiz competente em até 24 horas. A realidade brasileira comporta essa medida? A impressão que temos é de uma criação para inglês ver.

Desde o último mês de fevereiro, foi implementada na capital paulista a famigerada audiência de custódia, que, por meio de um provimento em conjunto entre a Presidência do TJ/SP e a Corregedoria Geral de Justiça, determina que todas as pessoas presas em flagrante sejam apresentadas ao Juiz competente, em até 24 horas, após sua detenção. Destaque-se que os objetivos dessa medida são basicamente três: analisar a legalidade da prisão; garantir os direitos fundamentais do preso (leia-se: constatar se houve algum abuso policial); e, por fim, verificar a necessidade da manutenção da prisão.

Conforme exposto no Provimento que regulamenta o assunto, a implementação da audiência de custódia visa dar cumprimento ao Pacto de São José da Costa Rica, que em seu artigo 7°, item 5, impõe que “toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada pela lei a exercer funções judiciais”. Numa análise perfunctória do dispositivo, percebe-se que, na verdade, nosso ordenamento jurídico em momento algum violou a referida Convenção, uma vez que toda pessoa presa é apresentada imediatamente ao Delegado de Polícia, que seria essa “outra autoridade autorizada pela lei a exercer funções judiciais”.

Tal conclusão é subsidiada por diversos fatores, sobretudo porque encontramos em nosso ordenamento jurídico diversas funções atribuídas à Autoridade Policial, mas que, em regra, são de competência do Juiz, como: decretação da prisão em flagrante delito, concessão de liberdade provisória mediante fiança, expedição de mandado de condução coercitiva etc. Diferentemente de outros países, que não contam com a figura do Delegado de Polícia, nosso sistema penal dispõe de uma autoridade com formação jurídica na condução da fase pré-processual da persecução penal, o que, sem dúvida, constitui um enorme avanço em comparação com outros sistemas.

Ao realizarmos um estudo sobre o tema, encontramos um documento das Nações Unidas denominado “Conjunto de Princípios para a Proteção de Todas as Pessoas Sujeitas a Qualquer Forma de Detenção ou Prisão - 1988". Este documento, que elenca 39 princípios sobre 45 pessoas capturadas, detidas e presas, ao realizar uma interpretação teleológica sobre o alcance de "ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais.", dispõe em seu anexo, e seu princípio 11.3, o seguinte: 46 "Para los fines del Conjunto de Principios : 47 a) Por "arresto" se entiende el acto de aprehender a una persona con motivo de la supuesta comisión de un delito o por acto de autoridad; b) Por "persona detenida" se entiende toda persona privada de la libertad personal, salvo cuando ello haya resultado de una condena por razón de un delito; c) Por "persona presa" se entiende toda persona privada de la libertad personal como resultado de la condena por razón de un delito; d) Por "detención" se entiende la condición de las personas detenidas tal como se define supra; e) Por "prisión" se entiende la condición de las personas presas tal como se define supra; f) Por "un juez u otra autoridad" se entiende una autoridad judicial u otra autoridad establecida por ley cuya condición y mandato ofrezcan las mayores garantías posibles de competencia, imparcialidad e independencia." (tradução livre do trecho final: por "um juiz ou outra autoridade" se entende uma autoridade judicial ou outra autoridade estabelecida por lei cuja condição e mandato ofereçam as maiores garantias possíveis de competência, imparcialidade e independência).

Percebe-se, pois, que o Delegado de Polícia preenche perfeitamente esses requisitos, vez que é uma autoridade imparcial, sem qualquer interesse no processo posterior, compromissado apenas com a busca de uma verdade possível dentro da investigação criminal, produzindo, não raro, provas e elementos de informações que favoreçam o próprio investigado. Da mesma forma, possui independência funcional (garantida pela Lei 12.830/13 e por diversas constituições estaduais) e, ademais, tem competência (leia-se: atribuição legal) para presidir o auto de prisão em flagrante, instrumento apto para restringir, ainda que de maneira precária, a liberdade de locomoção do conduzido. Destaca-se, ainda, que, no momento da prisão em flagrante, a Autoridade Policial deve analisar todo o contorno jurídico do fato, o que só pode ser feito por um agente com formação jurídica, haja vista que diversos institutos influenciam na caracterização do crime (tentativa, princípio da insignificância, causas excludentes da ilicitude, teoria da imputação objetiva, desistência voluntária, concurso de crimes, presunção de inocência etc.). Parece-nos que todos esses fatores denotam as similitudes que o nosso ordenamento jurídico impõe entre as autoridades policiais e judiciais.

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Em consonância com esse entendimento, salientamos a decisão proferida pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, num julgamento da relatoria do ilustre Desembargador e Professor Guilherme de Souza Nucci. No seu voto decorrente do Habeas Corpus 2016152-70.2015.8.26.0000, ocorrido no dia 12.05.2015, consta o seguinte fundamento: “Inicialmente, quanto à afirmada ilegalidade da prisão em flagrante, ante a ausência de imediata apresentação dos pacientes ao Juiz de Direito, entendo inexistir qualquer ofensa aos tratados internacionais de Direitos Humanos. Isto porque, conforme dispõe o art. 7º, 5, da Convenção Americana de Direitos Humanos, toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais. No cenário jurídico brasileiro, embora o Delegado de Polícia não integre o Poder Judiciário, é certo que a Lei atribui a esta autoridade a função de receber e ratificar a ordem de prisão em flagrante. Assim, in concreto, os pacientes foram devidamente apresentados ao Delegado, não se havendo falar em relaxamento da prisão. Não bastasse, em 24 horas, o juiz analisa o auto de prisão em flagrante.”

Nesse contexto, pode-se afirmar que o sistema adotado no Brasil é até mais consentâneo com a previsão contida no Pacto, haja vista que o preso é apresentado imediatamente a uma autoridade Estatal, o que é mais garantista do que as 24 horas indicadas no Provimento. E nem há que se falar que a audiência de custódia perante o Magistrado seria devida em virtude de previsão constitucional, pois o artigo 5°, LXII, da Constituição da República, estabelece que a “comunicação” da prisão de qualquer pessoa seja feita ao Juiz competente, o que sempre foi feito por aqui.

Destaque-se, ainda, que o Pacto faz menção a qualquer pessoa “detida ou retida”, o que vai muito além das hipóteses de prisão em flagrante. Tendo em vista que o objetivo é dar efetividade ao tratado internacional assinado pelo Brasil, se nós não levarmos em consideração a figura do Delegado de Polícia, qualquer pessoa presa deve ser apresentada, sem demora, ao Magistrado, inclusive nos casos de cumprimento de mandados de prisão preventiva, temporária e nas capturas de foragidos da Justiça, muito embora tal fato venha sendo esquecido pelas instituições responsáveis pelo projeto e pela doutrina de um modo geral.  

A impressão que temos é a de que está sendo criada uma “audiência de custódia para inglês ver”, no “jeitinho brasileiro”, especialmente porque, diferentemente de outros países, aqui o Juiz não poderá analisar questões objetivas ligadas ao mérito do caso. Tudo isso, é bom que se diga, por uma desconfiança em relação ao trabalho do Delegado de Polícia, que, infelizmente, carrega uma pecha desde a época da ditadura, quando a realidade e a própria filosofia do Estado eram completamente diferentes. E, frise-se, eram diferentes não somente com relação à Polícia, mas também em relação a todo aparato estatal, englobando as Forças Armadas, o Judiciário e o Ministério Público, fato este invariavelmente olvidado em relação aos dois órgãos por último citados.

Na verdade, o Delegado de Polícia é o primeiro garantidor da legalidade e da justiça, estando à disposição da sociedade durante 24 horas e tendo o dever de zelar pelos direitos e garantias fundamentais de toda pessoa detida ou retida, restituindo prontamente sua liberdade nos casos em que não for verificada a prática de crime ou quando se tratar de infrações penais de menor potencial ofensivo ou, ainda, nas situações em que for cabível a concessão de liberdade provisória mediante fiança (art.322, CPP). Aliás, seria interessante que o nosso ordenamento jurídico fosse inovado, permitindo que a Autoridade Policial conceda, de maneira imediata e irrestrita, a liberdade provisória ao preso em flagrante sempre que não estiverem presentes os requisitos da prisão preventiva, impondo, se for o caso, as medidas cautelares previstas no artigo 319, do Código de Processo Penal.

Não temos dúvidas de que nosso sistema penal é falho e precisa melhorar muito, mas não podemos olvidar a realidade do nosso país, sendo que o Poder Judiciário não tem condições estruturais para implementar a audiência de custódia da forma que ela foi originariamente concebida. É sabido e consabido que os Tribunais não contam com um grande número de Magistrados em relação à quantidade de demandas existentes. Não por acaso os processos demoram anos para serem julgados. Assim, por que sacrificar nossos juízes com mais essa função? O ideal seria que nossas delegacias de polícia fossem estruturadas com plantões permanentes do Ministério Público e Defensoria Pública, o que já seria suficiente para evitar eventuais abusos policiais e proporcionar o imediato contraditório, valorizando, destarte, o conjunto probatório amealhado nessa fase, promovendo, ainda, uma significativa celeridade no julgamento das infrações penais. 

Sobre o autor
Francisco Sannini Neto

Mestre em Direitos Difusos e Coletivos e pós-graduado com especialização em Direito Público. Professor Concursado da Academia de Polícia do Estado de São Paulo. Professor da Pós-Graduação em Segurança Pública do Curso Supremo. Professor do Damásio Educacional. Professor do QConcursos. Delegado de Polícia do Estado de São Paulo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANNINI NETO, Francisco Sannini Neto. A audiência de custódia e o "jeitinho brasileiro". Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4351, 31 mai. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/39583. Acesso em: 19 dez. 2024.

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