Quem já não ouviu:
“Cada qual cuide de sua vida”!
“Cada qual com seus problemas”!
Pois bem, por que de tais afirmativas? O que se esconde atrás delas? Como eu, muitos concidadãos já escutaram as frases de efeito nacional invocando o individualismo. E assim, se fez em nossa cultura a apatia. Não é difícil encontrarmos a indiferença nos comportamentos brasileiros: nos transportes públicos, nas calçadas e passeios, nas pistas de rolamento.
Os problemas de ordem social sempre foram delegados aos governantes, pois eles que teriam que tomar as devidas providências. Mendigos, uma problemática situação aos moradores de bairros nobres, aos comerciantes, as repartições públicas. E se criou a Arquitetura da Discriminação no Brasil. Veja imagem abaixo:
Na imagem acima, destaquei um banco situado próximo a Defensoria Pública, na Rua São José, nº 35, Centro - RJ. Notem que destaquei três ressaltos. Sim, uma tentativa de não permitir que moradores de rua durmam ali. E isso não acontece somente na Cidade Maravilhosa, mas em muitos outros estados. E não é exclusividade Made in Brazil, mas há em vários países. Uma procura rápida pela palavra “antimendigo”, nos principais sites de pesquisa, é possível encontrar – colocar em modo “imagem” – a Arquitetura da Discriminação.
A construção da Arquitetura da Discriminação data desde o descobrimento do Brasil, a começar pela catequese dos povos nativos, os índios. De lá para cá, não mudou muito. Aliás, é solar a Arquitetura da Discriminação ainda neste século, quando moradores de rua – a nomenclatura mudou porque “mendigo” não soava bem [preguiçosos e vagabundos] e, a propósito, a mudança desta por aquela visa inclusão social; não me adentrei na origem [concepção] da palavra, a qual é bem diferente – incomodam, e os moradores das construções de tijolo, prementemente, exige que a Prefeitura retire os “sujos”, “pervertidos”, “desocupados”, “vagabundos” e, na nova etimologia, “craqueiros” – uso de crack – dos logradouros públicos. Afinal, os filhos dos outros é problema dos outros, cada qual cuida do que é seu.
A Arquitetura da Discriminação vai além das edificações, pois começou na concepção teórica íntima do ser humano, as edificações são apenas expurgos do âmago humano. “Vagabundo”, por exemplo, é a pessoa pilantra, como punguistas, estelionatários. Há também a concepção de “preguiçoso”, “irresponsável”. Os sete pecados capitais, formalizados pelo Papa Gregório Magno, no século VI, mas oficializada pela Suma Teológica, por exemplo, influenciou muito a humanidade; a preguiça é uma mal, e como um mal deveria extirpado. Séculos depois, a preguiça mudou de significado. Com a laicidade do Estado, e uma nova “religião”, o cientismo, a preguiça passou a ser considerada como um mal genético, eis a eugenia. A diferença, entre os tipos de preguiça [religião e cientismo], se deve que na religiosa o ser humano poderia ser salvo pela ação [antídoto] da disciplina, enquanto na eugenia, por ser um mal genético, a solução seria acabar com a perpetuação genética dos preguiçosos – soluções: não ajudar os mendigos, mas deixá-los a própria sorte; esterilizar as mulheres, sem proles, os péssimos genes deixa de existir, entre outras soluções.
Na Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil (de 16 de julho de 1934), a eugenia foi institucionalizada:
Art. 138. - Incumbe à União, aos Estados e aos Municípios, nos termos das leis respectivas:
(...)
b) estimular a educação eugênica;
Uma das principais medidas socioeducativas era desestimular o casamento de pessoas brancas [elitizadas] com os negros. Não se pode esquecer a década de 1930, o nazifascismo, que tomava conta da Europa e do Brasil, na Era Vargas. Na história brasileira, as elites [oligarquia e aristocracia] sempre influenciaram na dinâmica socioeconômica. Não é à toa que os párias [negros, nordestinos] sempre se mantiveram em seus devidos locais: fora da possibilidade de ascensão socioeconômica e marginalizados. No Relatório da Comissão da Verdade do estado de São Paulo 1 é possível comprovar que os párias sempre foram marginalizados e perseguidos. As reinvindicações de uma vida digna, a possibilidade de ascensão socioeconômica, como os brancos, sempre encontrou obstáculos:
“Negro tem que ir pro pau”! (Delegado de Polícia da 44ª DP, Dr. Luiz Alberto Abdala, em abril de 1978)
“O estrangeiro ou turista que passar pela nossa metrópole vai ter a idéia, se der uma curta caminhada por aquelas ruas com suas belas vitrines, de que São Paulo é uma Adis-Abeba ou uma Havana, devido ao grande número de pessoas de cor que infestam essa rua e afastam dali pessoas que podem passar por lá após o cinema para admirar as novidades expostas nas vitrines”. (Monteiro Lobato)
“No entanto, o governo teve o cuidado de não fazer a declaração facultativa do artigo 14 da Convenção, que reconhece a competência do Comitê Internacional para a Eliminação da Discriminação Racial para receber e analisar denúncias de violação dos direitos humanos cobertos na Convenção. Dessa forma, buscava-se eliminar a possibilidade de postular internacionalmente contra o racismo no Brasil”.
“Os movimentos negros ao questionarem, como tantos outros movimentos sociais da época, a opressão e o autoritarismo, também entravam para o rol das entidades "subversivas" segundo as instituições repressoras do regime. A participação e o diálogo dos movimentos negros com a oposição e a resistência, por exemplo, a proposta de aliança do MNU [Movimento Negro Unificado] aos "setores progressistas" do país, conforme expressão utilizada no III Congresso Nacional do referido movimento [em 1982], posicionando-se de forma contrária à política social, econômica e repressiva do regime militar. Estas posições levaram a comunidade de informações e segurança a ter maior desconfiança para com a mobilização afrodescendente, classificando-a de "subversiva". Houve um processo de criminalização dos movimentos sociais, envolto em uma mentalidade de que estes se tornavam "ameaças" à estabilidade política”.
Conclusão
A elite brasileira é racista, não há duvidas. O Brasil ainda é um país de belezas naturais, mas de abissais flagelos humanos. A liberdade de expressão tem incomodado muitíssimo a elite brasileira, principalmente os jornalistas não diplomados, os quais defendem a liberdade de expressão e de imprensa, o que é ironia.
As ações afirmativas, como as cotas aos afrodescendentes, têm gerado revoltas na elite brasileira – classe alta e a antiga classe média, pois agora há a Nova Classe Média -, que se sentem ameaçados pela possibilidade de se misturaram com os párias. E é visível a agonia e revolta da elite, principalmente, nas redes sociais sob o manto do anonimato. Alguns, mais exaltados, bradam “macaco” dentro de estádio futebolístico.
A cultura brasileira é a cultura do ódio, da elite e dos párias. O apanágio discriminador da elite subtrai os direitos humanos dos párias. Esses, por revolta, se “rebelam” contra a imposição da elite. No final, o que se tem, é o clamor do patriotismo, do nacionalismo, da defesa nacional aos subversivos. Os párias servem para o trabalho braçal, para fornecimento de drogas, ilícitas, para os narizes, as veias, os lábios insaciáveis da elite brasileira, para garantir reeleições de políticos enganadores. Enquanto a violência estiver concentrada nas favelas, e não descer para o asfalto, a elite não se incomoda com as atrocidades cometidas por policiais, por donos de boca de fumo. Já os políticos, os que enriquecem com a agonia dos párias, só se manifestam a favor destes nas eleições, ou quando o Brasil é denunciado, internacionalmente, por violações de direitos humanos.
Para a elite, o Estado social é uma invenção comunista para dominar o mundo e, consequentemente, retirar as liberdades naturais dos seres humanos. Ninguém mais poderá pensar por si, as escolhas profissionais serão regradas por ditadores, a saúde social retirará a autonomia dos profissionais da área de saúde, as instituições de ensino perverterão as crianças, de forma que aprendem a coabitação grupal. São tantos os apelos antissociais [Estado social] que acabam dando certo, porque a maioria do povo brasileiro é analfabeta [funcional e/ou política]. A pequena parcela dos intelectualizados [elite] dominam os meios de produção, as edições de leis, as jurisprudências. No final, se tem duas Justiças, dois Congresso Nacionais, dois Estado no território nacional. Um é forte, e favorece a elite; o outro [Estado social] é fraco, e corre seríssimo risco de ser suplantado pelos clamores de “Democracia!”, “Família de Deus!”, “Nacionalismo!”.
Dentro de um Estado democrático de direito, não se pode ter discriminações, pois vigora os Direitos Humanos, principalmente em relação aos espaços geográficos nas metrópoles. Em síntese, o Estatuto da Cidade objetiva o desenvolvimento das metrópoles de forma sustentável, coordenada e não discriminatória [o bem-estar de seus habitantes]. Sendo a moradia um direito Constitucional [art. 6º] e sendo a dignidade humana um dos fundamentos da República Federativa do Brasil [art. 1º], as políticas de desenvolvimento urbano devem evitar a segregação socioespacial, o que é secular em nosso país. Infelizmente, o interesse coletivo, invocado nas ações judiciais movidas pelos gestores públicos municipais, para desapropriações de área ocupadas pelos párias, tem servido de instrumento legal, mas imoral [caput do art. 37. da CF/88]. A similaridade dos cidadãos brasileiros, que são expulsos de seus lares por força do “interesse público”, em relação aos refugiados sírios, que são expulsos por motivos de guerras civis, se deve ao fato de que ambos ficam em locais desprovidos de segurança, de saneamento adequado, sem privacidade. A superlotação é outro problema enfrentado pelos cidadãos expulsos, tanto brasileiros quanto os sírios.
Enquanto os sírios [refugiados] são expulsos por guerra civil, os brasileiros [párias] são expulsos por políticas municipais [Plano Diretor] coadunadas com interesses da especulação imobiliária, dos grandes investidores particulares. A Parceria Pública Privada (PPP) tem servido modernizar as metrópoles, concomitantemente, com a expulsão dos párias para fora das localidades elitizadas. Promessas de campanhas de prefeitos têm sido desmascaradas pelos párias, quando são obrigados a saírem de seus lares, isto é, durante campanha eleitoral, muitos prefeitos juram que não retirarão os párias de suas residências nativas, mesmo que tenham obras públicas. Amarga ilusão.
As favelas eram consideradas assunto de polícia – chegar e controlar os distúrbios através da coação do Estado –, com a CF/88 as favelas passaram a ter função social. As políticas de governo, de alguns gestores públicos, por força Constitucional, começaram a mudar alguns aspectos das favelas, como iluminação pública, saneamento básico. Contudo, essas transformações eram evidenciadas para o público dos moradores do asfalto, de que o governante está fazendo algo para minorar a desigualdade social – e isto quando contrariando a elite, que não via com bons olhos os gastos públicos sendo direcionados para os párias. Mas os gestores tinham que obedecer a Carta Cidadã, principalmente ONGs de defesa dos direitos humanos, que se frutificaram a partir da década de 1990.
O Brasil, como já fora comprovado pelo Lava Jato, pelas mensagens racistas nas redes sociais, tem um inimigo, a secular irracionalidade de grupos que se intitulam “Reis Sóis”. E o Golpe Militar (1964 a 1985) fora vendedor em sua ideologia. As gerações que foram doutrinadas pelas matérias OSPB e Moral e Cívica atuam como se estivessem vivendo uma guerra, uma invasão comunista. E que se deve matar, perseguir, cercear a liberdade de expressão, deambulatório dos párias.
No inconsciente coletivo, doutrinado pelos militares, as mudanças sociopolíticas, principalmente quando se fala em direitos humanos, como igualdades entre homem e mulher, de gênero, de etnia, representam ameaças iminentes ao Estado e a Nação.
Notas
1 – Comissão da Verdade. Relatório - Tomo I - Parte II - Perseguição à População e ao Movimento Negros. Disponível em: https://verdadeaberta.org/relatorio/tomo-i/downloads/I_Tomo_Parte_2_Perseguicao-a-populacao-e-ao-movimento-negros.pdf
Referências
Holocausto Brasileiro Manicômio de Barbacena. Disponível em: https://youtu.be/1xBQr5zFAHs
WEGNER, Robert; SOUZA, Vanderlei Sebastião de. Eugenia 'negativa', psiquiatria e catolicismo: embates em torno da esterilização eugênica no Brasil. História, Ciências, Saúde- Mangiiinhos, Rio de Janeiro, v.20, n.º, jan.-mar. 2013, p.263-288.