10) Lex Sportiva e Lex Olympica e o ordenamento jurídico brasileiro
O COI e as federações internacionais, administrando suas modalidades, em razão de sua independência e autonomia, passaram a estabelecer e aplicar as regras próprias, criando uma verdadeira legislação transnacional, aplicável além das fronteiras de onde foram estabelecidas e englobando diversas nações.
O número de casos levados ao conhecimento e decisões proferidas pelo TAS-CAS e ao tribunais de Justiça desportiva, também acabou por criar regras próprias na aplicação das normas pelos julgadores.
Desse conjunto de normas emanadas pelas entidades internacionais e decisões dos tribunais desportivos, surgiu a denominada Lex Sportiva, uma espécie de norma global atinente ao direito desportivo e com princípios legais únicos.
Álvaro Melo Filho, explicita
(...)a noção de lex sportiva vincula-se a uma ordem jurídica desportiva autônoma, constituída não somente dos regulamentos autônomos das federações desportivas nacionais, em geral harmonizadas com a legislação desportiva estatal onde têm sua sede, às regras oriundas das Federações Internacionais e, ainda às sentenças e decisões promanadas dos tribunais de justiça desportiva e cortes arbitrais desportivas.[20]
Além da Lex Sportiva destaca-se ainda a Lex Olympica, que nada mais é que a Lei do Movimento Olímpico, encontrada na Carta Olímpica e dirigida a todos que por vontade própria fazem parte desse movimento. Ambas tratam o desporto como algo global ou transnacional, necessário ao desenvolvimento de regras peculiares que se aplicassem a todos os países, independentemente de seus sistemas políticos, jurídicos e outros aspectos organizacionais, sem que isso implicasse em afronta à soberania.
Ordenamento jurídico nacional, há previsão de recepção das normas esportivas de caráter internacional sem que isso implique em qualquer interferência à sua soberania, não sendo o Direito emanado pelo Estado mitigado ou renunciado face às normativas transnacionais de Direito Desportivo, em face do artigo 217 da Constituição (incs. I e §§ 1º e 2º) e da expressa previsão constante da Lei Pelé (Lei n. 9.615/98, art. 1º, § 1º), estabelecer que:
“Art. 1º O desporto brasileiro abrange práticas formais e não formais e obedece às normas gerais desta Lei, inspirado nos fundamentos constitucionais do Estado Democrático de Direito.
§1º A prática desportiva formal é regulada por normas nacionais e internacionais e pelas regras de prática desportiva de cada modalidade, aceitas pelas respectivas entidades nacionais de administração do desporto.”
Assim a prática desportiva de cada modalidade é regulada por normas internacionais e pelas regras impostas por cada Federação Internacional e aplicadas no Brasil, mediante o aceite das entidades nacionais de administração do desporto (CBF, CBV, CBB e outras) e também pelas entidades regionais (Federação Paulista de Futebol FPF, Federação Paulista de Volleyball “ FPV, Federação Paulista de Basketball “ FPB e outras).
O ordenamento jurídico brasileiro, portanto, determina a recepção de normas internacionais desportivas por meio da Lei Geral sobre Desportos. A recepção de legislação internacional por força de lei ordinária, ainda que não tenha havido deliberação do Congresso Nacional, já ocorreu reconheceu o Senado, no caso, a Lei n. 11.638, de 2007, alterou a legislação societária e determinou que “As normas expedidas pela Comissão de Valores Mobiliários (...) deverão ser elaboradas em consonância com os padrões internacionais de contabilidade adotados nos principais mercados de valores mobiliários.”
Também no caso da contabilidade governamental, a Portaria n. 184, de 2008, do Ministro da Fazenda, “Dispõe sobre as diretrizes a serem observadas no setor público (pelos entes públicos) quanto aos procedimentos, às práticas, à elaboração e à divulgação das demonstrações contábeis, de forma a torná-los convergentes com as Normas Internacionais de Contabilidade Aplicadas ao Setor Público.”
Esclarece ainda Álvaro Melo Filho:
A lex sportiva internationalis promanada da FIFA, FIBA, FIVA, FIA etc., torna-se inarredável e prevalecente, em algumas hipóteses, sem comprometer ou infirmar a soberania do país, pois em uma sociedade globalizada, o desporto como direitos humanos, ecologia, comunicação, espaço aéreo, por exemplo, são matérias que refogem a uma normatização exclusivamente nacional. Vale dizer, a autonomia desportiva dos órgãos diretivos internacionais ignora fronteiras, pois suas regras e estrutura são universais, o que determinou a mondialization du sport.[21]
O Superior Tribunal de Justiça (STJ), em julgamento de Recurso Especial que envolveu a possibilidade de responsabilização civil da entidade responsável pela organização da competição esportiva mediante o erro manifesto de arbitragem, sem o dolo do árbitro, reconheceu a aplicação da normativa internacional emanada pela FIFA quanto à arbitragem no território nacional, como é possível verificar na ementa desse julgamento:
ESTATUTO DO TORCEDOR E RESPONSABILIDADE CIVIL. RECURSO ESPECIAL. PÊNALTI NÃO MARCADO. COMPENSA- ÇÃO POR ALEGADOS DANOS MORAIS DECORRENTES DE ERRO DE ARBITRAGEM GROSSEIRO, NÃO INTENCIONAL, AINDA QUE COM O CONDÃO DE INFLUIR NO RESULTADO DO JOGO. MANIFESTO DESCABIMENTO. ERROS “DE FATO” DE ARBITRAGEM, SEM DOLO, NÃO SÃO VEDADOS PELO ESTATUTO DO TORCEDOR, A PAR DE SER INVENCÍVEL A SUA OCORRÊNCIA. NÃO HÁ COGITAR EM DANOS MORAIS A TORCEDOR PELO RESULTADO INDESEJADO DA PARTIDA. DANO MORAL. PARA SUA CARACTERIZAÇÃO É IMPRESCINDÍVEL A CONSTATAÇÃO DE LESÃO A DIREITO DA PERSONALIDADE, NÃO SE CONFUNDINDO COM MERO DISSABOR PELO RESULTADO DE JOGO, SITUAÇÃO INERENTE À PAIXÃO FUTEBOLÍSTICA.
1. O art. 3º do Estatuto do Torcedor estabelece que se equiparam a fornecedor, nos termos do Código de Defesa do Consumidor “ para todos os efeitos legais“, a entidade responsável pela organização da competição, bem como aquele órgão de prática desportiva detentora do mando de jogo. Todavia, para se cogitar em responsabilidade civil, é necessária a constatação da materialização do dano e do nexo de causalidade.
2. “Observada a classificação utilizada pelo CDC, um produto ou serviço apresentará vício de adequação sempre que não corres- ponder à legítima expectativa do consumidor quanto à sua utilização ou fruição, ou seja, quando a desconformidade do produto ou do serviço comprometer a sua prestabilidade. Outrossim, um produto ou serviço apresentará defeito de segurança quando, além de não corresponder à expectativa do consumidor, sua utilização ou fruição for capaz de adicionar riscos à sua incolumidade ou de terceiros”. (REsp 967623/RJ, rela. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 16.4.2009, DJe 29.6.2009)
3. É sabido que a Fifa tem vedado a utilização de recursos tecnológicos, por isso que o árbitro de futebol, para a própria fluidez da partida e manutenção de sua autoridade em jogo, tem a delicada missão de decidir prontamente, valendo-se apenas de sua acuidade visual e da colaboração dos árbitros auxiliares.
4. O art. 30 da Lei n. 10.671/2003 (Estatuto do Torcedor), atento à realidade das coisas, não veda o erro de fato não intencional do árbitro, pois prescreve ser direito do torcedor que a arbitragem das competições desportivas seja independente, imparcial, previamente remunerada e isenta de pressões. Destarte, não há falar em ocorrência de ato ilícito.
5. A derrota de time de futebol, ainda que atribuída a erro “de fato” ou “de direito” da arbitragem, é dissabor que também não tem o condão de causar mágoa duradoura a ponto de interferir intensamente no bem-estar do torcedor, sendo recorrente em todas as modalidades de esporte que contam com equipes competitivas. Nessa esteira, consoante vem reconhecendo doutrina e jurisprudência, mero dissabor, aborrecimento, contratempo, mágoa “ inerentes à vida em sociedade “, ou excesso de sensibilidade por aquele que afirma dano moral, são insuficientes à caracterização do abalo, tendo em vista que este depende da constatação, por meio de exame objetivo e prudente arbítrio do magistrado, da real lesão a direito da personalidade daquele que se diz ofendido.
6. De fato, por não se verificar a ocorrência de dano a direito da personalidade ou cabal demonstração do nexo de causalidade, ainda que se trate de relação equiparada a de consumo, é descabido falar em compensação por danos morais. Ademais, não se pode cogitar de inadimplemento contratual, pois não há legítima expectativa “ amparada pelo direito “ de que o espetáculo esportivo possa transcorrer sem que ocorra erro de arbitragem, ainda que grosseiro e em marcação que hipoteticamente possa alterar o resultado do jogo.
7. Recurso especial não provido
(STJ. Recurso Especial N. 1.296.944 - RJ (2011/0291739-0). 4a Turma. Min. rel. Luis Felipe Salomão. Data do julgamento: 7.5.2013.)
Portanto, normas editadas por uma Federação Internacional, entidade continental ou pelo COI aplicam-se obrigatoriamente à comunidade desportiva e a todos os entes desportivos brasileiros que lhe sejam filiados/associados, sem que isso implique em afronta à soberania nacional, já que a legislação pátria prevê expressamente sua recepção.
Conclusões
A configuração da sociedade mundial que aludimos no início deste artigo, pródiga de ordens jurídicas com regras próprias de conduta e mecanismos específicos de sanção para o caso de infringência, emanadas por redes de atores ou organizações privadas, legitima a existência de uma Lex Sportiva típica de um novo ramo jurídico que desponta dentre as espécies dos chamados “novos direitos”, que é o Direito Desportivo.
Como os demais ramos como o Direito Ambiental, o Direito do Consumidor e o Biodireito, o Direito Desportivo se firma na delimitação de seu regime jurídico, com vasta regulamentação das pessoas físicas e jurídicas que direta ou indiretamente se relacionam com o desporto.
A organização internacional do desporto, constituída por instituições esportivas de nível supraestatal, tidas como organizações não governamentais, reconhecidas como sujeito de jure no direito internacional, propiciou a formação de uma Ordem Jurídica Desportivo Internacional, cuja tipicidade se verifica nos princípios internacionais que dão supedâneo de sua organização legal.
De todos o Princípio da Autonomia desportiva internacional é notadamente o maior alicerce do Ordenamento Jurídico Desportivo Internacional, pois garante auto-organização, autoadministração e a edição de regras próprias às entidades internacionais de administração do desporto.
Essa autonomia desportiva foi recepcionada como princípio contido no art. 217, I, de nossa Carta Magna, internalizando o dever de respeitar e observar “a autonomia das entidades desportivas dirigentes e associações quanto à sua organização e funcionamento” pelo Estado e pela sociedade, seja na criação legislativa, sej na aplicação do direito desportivo pelos tribunais brasileiros.