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Direito e questões de gênero: teorias feministas do Direito, Maria da Penha e feminicídio

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Agenda 24/03/2018 às 15:10

4. LEI DO FEMINICIDIO

Chegamos à lei nº 13.104/2015, Lei do Feminicídio, foi comemorada por muitos setores sociais como um avanço na luta pela violência contra a mulher. A partir de 9 de março de 2015, crime passa a ser tipificado como homicídio qualificado. A pena, que variava de 6 a 20 anos, passa a ser de 12 a 30 anos. Além disso, passa a ser considerado crime hediondo, o que impede os acusados de serem libertados mediante pagamento de fiança. O feminicídio: quando crime for praticado contra a mulher por razões da condição de sexo feminino.

O § 2º-A foi acrescentado como norma explicativa do termo "razões da condição de sexo feminino", esclarecendo que ocorrerá em duas hipóteses: a) violência doméstica e familiar; b) menosprezo ou discriminação à condição de mulher; A lei acrescentou ainda o § 7º ao art. 121 do Código Penal estabelecendo causas de aumento de pena para o crime de feminicídio. A pena será aumentada de 1/3 até a metade se for praticado: a) durante a gravidez ou nos 3 meses posteriores ao parto; b) contra pessoa menor de 14 anos, maior de 60 anos ou com deficiência; c) na presença de ascendente ou descendente da vítima.

Por fim, a lei alterou o art. 1o. Da Lei de crimes hediondos para incluir a alteração, deixando claro que o feminicídio é nova modalidade de homicídio qualificado, entrando, portanto, no rol dos crimes hediondos.

Vamos à justificativa da lei: uma mulher morre a cada hora no Brasil. Quase metade desses homicídios são dolosos praticados em violência doméstica ou familiar através do uso de armas de fogo. 34% são por instrumentos perfuro-cortantes, 7% por asfixia decorrente de estrangulamento. De acordo com dados do IPEA, nos últimos anos pelo menos 50 mil mulheres foram mortas no Brasil, sendo os assassinatos enquadrados como feminicídio. O estudo ainda aponta que 20 mulheres são assassinadas por dia no país, devido a violência por gênero.

Portanto, a justificativa para a necessidade de uma lei especifica para os crimes relacionados ao gênero feminino, está no fato de 41% dos assassinatos de mulheres nos últimos anos serem cometidos dentro da própria casa das vítimas, muitas vezes por companheiros ou ex-companheiros.

Este crime é 'justificado' socioculturalmente por uma história de dominação da mulher pelo homem e estimulado pela impunidade e indiferença do Estado. Incluir essa tipificação significa colocar luz sobre cifras assustadoras: houve um aumento de 2,3 para 4,6 assassinatos por 100 mil mulheres no país entre 1980 e 2010, o que colocou o Brasil como 7o no ranking mundial de assassinatos de mulheres. Entre 2000 e 2010, 7 mil mulheres foram mortas, 41% delas em suas próprias casas, por companheiros ou ex-companheiros, grande parte na frente dos filhos.

Nomear essa violência como feminicídio é, simbolicamente, fundamental para demonstrar a origem e as estruturas que estão por trás de todos esses números. A desigualdade de gênero existe em nossa sociedade e coloca as mulheres em uma condição hierarquicamente inferior aos homens, materializando-se por meio de estupros e assassinatos, bofetadas e espancamentos, humilhações e palavras cruéis.

Agora, se do ponto de vista jurídico, a lei do feminicídio não traz nenhuma novidade, é o que dizem por aí, pois os homicídios praticados em razão do gênero cabem nas circunstâncias qualificadoras que já existem no Código Penal, e todo homicídio qualificado é crime hediondo. Penso que o problema é histórico-político, ou ainda, a depender do referencial de análise, o problema se encontra no campo simbólico. Se, de um lado, a lei do feminicídio não traz novidade jurídica, de outro, ela serve para reafirmar a resposta penal aos nossos problemas éticos, históricos, culturais, como o machismo.


5. MENOS A CONCLUIR, MAIS A PENSAR E AGIR.

Chegamos às conclusões, que nada concluem, e sim apontam que temos muito a refletir e agir.

É importante ainda destacar que a lei penal, tão canônica, sempre exige sacrifícios em troca da prometida segurança. Sacrifícios das próprias mulheres. Não podemos deixar de pensar nas mulheres que passam rotineiramente pelos procedimentos de revista vexatória quando vão visitar seus parentes presos, na frente dos filhos, inclusive, expostas a violências simbólicas na revista, e pela sociedade por ser a mulher do preso, a mãe do preso, a irmão do preso. A aposta no encarceramento, que está em curva ascendente há décadas, reverbera sobre essas mulheres, e quanto mais presos, mais mulheres passando por revista vexatória.

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Não só por isso temos que refletir sobre a aposta em uma lei penal, mesmo sob o argumento de que é preciso dar visibilidade à violência contra a mulher. Desde o plano mais imediato até os limites do sistema, milhares de mulheres sofrem com o recrudescimento das punições.

Por todos esses motivos, direitos e políticas que atendam às mulheres e aos agressores se fazem necessárias, mas serão inócuas se limitarem-se à punição dos agressores, pois mais rigor da justiça deve ser acompanhado de uma mudança de mentalidades. Não é tarefa fácil, mas está sendo feita pela luta feminista ao longo dos anos, caso contrário, nem aqui estaria eu hoje falando a vocês, nem tantas mulheres estariam aí na plateia me ouvindo. Caso contrário, sequer teríamos este espaço de reflexão dentro da universidade.

Gostaria de encerrar aqui com uma posição pessoal, compartilhada por militantes do movimento feminista, mas que não se trata de algo uníssono. Essa ideia de que a existência de uma lei penal, um crime e uma pena como resposta, possa prevenir a prática de novos crimes, por si só, é ilusória. É ilusão acreditar que uma previsão normativa possa, por si só, frear comportamentos que se fundam em conformações sociais e culturais muito mais complexas do que um tipo penal é capaz de dar conta.

Se o Direito Penal não dá conta de fenômenos criminais menos complexos, como esperar que resolvam a violência de gênero? Ainda com todo este aparato, Lei Maria da Penha, lei do Feminicídio, casos ainda ao chegar nos tribunais esbarram na dificuldade dos atores do sistema em: lidar e reconhecer o próprio machismo; lidar com uma demanda que não se encaixa no código: denúncia > punição/não punição; lidar com uma demanda em que a solução tratada dentro de uma estrutura jurídico-processual baseada no monopólio estatal da pretensão acusatória pode inviabilizar outras formas de solução; lidar com um caso criminal que, muitas vezes, não se consubstancia em um único tipo penal ou que se apresenta como um contínuo de ocorrências no tempo que, sozinhas, não possuem tipicidade, mas que em conjunto são a crônica da morte anunciada da violência de gênero; some aí todas as críticas que se possa fazer ao Direito, seus atores e seu discurso hermético, distanciado da realidade ou dos discursos produzidos em outros campos.

Portanto, precisamos de mais que leis. Precisamos sim de leis, não estou aqui desqualificando-as. Estou dizendo que precisamos mais do que isso. Porque o fenômeno é mais complexo, está enraizado nas estruturas da sociedade. Porque a definição de políticas públicas e leis para mulheres não é mero programa de governo, é política de estado e imposição internacional. E não é concessão, assim como não é a maioria de outras conquistas tidas como benefícios. É resultado de luta, são direitos.

Dentro do Direito, com letra maiúscula, a Lei é certamente um avanço. Porém, a solução penal para um conflito, muitas vezes, não é o melhor caminho. O fenômeno da violência é complexo e por isso necessita ser tratado não apenas na perspectiva repressiva e punitiva, onde muitas vezes a abordagem maniqueísta que traz é muito simplista para compreender e abordar de maneira eficiente o fenômeno. É na prevenção da violência; no trabalho de conscientização via educação doméstica, escolar e social; na efetiva afirmação dos direitos e deveres, é pelo empoderamento das mulheres.

A violência contra a mulher é um problema específico e estrutural, decorrente dessa sociedade pautada em valores machistas. Por isso, a aposta no Direito Penal sozinho é cega. Porque a punição sozinha não resolve o problema. E como resolver, se alguém quer perguntar. Lembro que aqui são mais perguntas e pauta de ações do que conclusões, mas a resposta para uma pergunta como essa vai muito além da questão da violência de gênero ou mesmo da impunidade. Muito mais a estrutura social e a ausência de significativas alterações nessa estrutura ou sistema que fazem seguir essa realidade.

Por razões como estas que insistimos tanto na importância de movimentos como o feminista. Sua luta pela mudança das mentalidades e da realidade social é justamente a luta pela mudança do sistema social. E é essa espécie de modificação que pode levar a redução ou alteração dos registros de crimes e violência, essa modificação passa por nós, passa pelos direitos, passa por aqueles que o operam.

Há muito que caminhar. Os passos serão lentos ou largos a depender de quem os dá, e esses passos precisam ser dados por todos nós. Sobretudo por vocês aqui, considerando que tenho uma plateia de futuros profissionais do Direito. Não se esqueçam que o machismo existe, que mulheres sofrem e morrem por isso, que uma Lei não mudará um comportamento entranhado na sociedade, mas as atitudes de vocês sim, por menor que seja ela. O trabalho é de formiguinha para mudar a realidade, seja no exercício da profissão, seja no dia a dia, seja em qualquer circunstância. É preciso agir para mudar esse quadro.

Sobre a autora
Rebeca Campos Ferreira

Doutoranda em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo (USP), Graduanda em Direito, Bacharel em Ciências Sociais (USP), Pesquisadora do Núcleo de Antropologia do Direito (USP), Professora voluntária da UNEAFRO Brasil e Perita em Antropologia do Ministério Público Federal (MPF).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERREIRA, Rebeca Campos. Direito e questões de gênero: teorias feministas do Direito, Maria da Penha e feminicídio. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5379, 24 mar. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/48543. Acesso em: 22 dez. 2024.

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