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Audiência de custódia como instrumento de superação da cultura do encarceramento no Brasil

Agenda 24/08/2016 às 15:08

Discute-se a adequação da Audiência de Custódia como fator de superação da cultura de encarceramento no Brasil, abordando-se o Raio-X do Sistema Carcerário Brasileiro e a problemática atinente à implementação de uma Audiência de Custódia no Brasil.

 

 

 

 

RESUMO - A Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH) assegura, no art. 8°, item 1, o direito que toda pessoa detida tem de ser ouvida, dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, disposição esta que se harmoniza com os direitos fundamentais previstos no art. 5º, inc. LXVI, da CFB/1988. Dados do INFOPEN/2015 (MJ, 2015) revelam que 41% (quarenta e um por cento) dos prisioneiros do País são temporários, inseridos num modelo de encarceramento que perpetua um ciclo de violências que se projeta para toda a sociedade, reforçado por uma atmosfera degradante em estabelecimentos que inibem qualquer proposta de transformação. Neste contexto, ganha fundamental importância a implementação do Projeto Audiência Custódia, o qual assegura que o preso seja apresentado, no prazo de 24 horas, ante o juiz competente para decidir sobre a legalidade da prisão e sua eventual conversão por medida cautelar diversa da prisão. Discute-se, aqui, a adequação da Audiência de Custódia como fator de superação da cultura de encarceramento no Brasil, abordando-se o Raio-X do Sistema Carcerário Brasileiro e a problemática atinente à implementação de uma Audiência de Custódia no âmbito do Poder Judiciário Nacional. Este trabalho é resultado de pesquisa descritiva realizada no Mestrado em Direitos Humanos da Universidade Católica de Petrópolis (UCP/RJ), com emprego dos métodos dialético e sistêmico, utilizando-se as técnicas de análise documental e pesquisa bibliográfica.

Palavras-chave – Audiência de custodia – prisão provisória – cultura do encarceramento.

ABSTRACT - The American Convention on Human Rights (ACHR) in art. 8, paragraph 1, ensures the right of every detainee to be heard within a reasonable time, by a competent court, this provision that harmonizes with the fundamental rights provided for in art.5, item LXVI, the Brazilian Constitution (CFB/1988). However, 41% (forty one percent) of detainees in the country are provisional, as result of the "culture of incarceration." The Custody Conference Project ensures that the prisoner is present, within 24 hours before the competent court to decide on the legality of the prison and his eventual conversion to different prison injunction.

Key words - Conference of custody - provisional detention - culture of incarceration

Introdução

No Brasil, o arcabouço institucional do sistema de proteção dos direitos humanos se congrega, primordialmente, no aparato judicial. Não se desconhece, é bem verdade, que no âmbito dos demais poderes de Estado uma gama de ações são implementadas visando à proteção e promoção dos direitos fundamentais do homem. Mas, é na arena judicial que a afirmação histórica dos direitos humanos ganha corpo, revelando-se ao mundo do ser com todo o vigor, não sendo outra a razão porque se coloca o acesso à justiça como o mais básico de todos os direitos fundamentais:

O direito de acesso à justiça é fundamental para o exercício da democracia e dos direitos humanos, uma vez que se apresenta como o direito mais básico, o qual é capaz de garantir a concretização de todos os demais direitos. Nesses termos, a compreensão do direito de acesso à justiça é fundamental para a sua análise enquanto instrumento democrático, bem como na qualidade de garantidor de direitos. (Spengler & Bedin, 2013, p. 129)

De fato, se o acesso à justiça é fundamental ao exercício da democracia e à proteção dos direitos do homem, razão primeira e última de todo o arcabouço jurídico, claro está que essa garantia encarna o mais importante dos direitos fundamentais, exatamente porque é através da ampla possibilidade de arguição perante o Poder Judiciário que se asseguram e efetivam, na prática, todos os demais direitos apregoados no ordenamento jurídico, sejam eles de natureza fundamental ou não. (SILVA, 2008, p. 252)

Compartilhando deste pensamento, Alexy afirma que a completa possibilidade de arguição perante o Judiciário, que atinge a totalidade das normas constitucionais, é um dos tesouros da Lei Fundamental Alemã, razão pela qual:

A todas as tentativas de suavizar o problema da colisão [de direitos fundamentais] pela eliminação da justicialidade deve opor-se com ênfase. [...] A primeira decisão fundamental para os direitos fundamentais é, por conseguinte, aquela para a sua força vinculativa jurídica ampla em forma de justicialidade (ALEXY, 2015, p. 126, grifo nosso).

Este artigo tematiza a conformação do Projeto Audiência de Custódia como instrumento de superação da cultura de encarceramento no Brasil, compreendendo as seguintes abordagens: a) Raio-X do Sistema Carcerário Brasileiro; b) Bases do Programa Audiência de Custódia na forma concebida pelo Conselho Nacional de Justiça; c) Objeções à adoção de uma Audiência de Custódia no Judiciário Brasileiro; d) Conclusões.

Ele resulta de pesquisa descritiva realizada no Programa de Pós Graduação stricto sensu – Mestrado em Direitos Humanos - da Universidade Católica de Petrópolis (UCP/RJ), com emprego dos métodos dialético e sistêmico, utilizando-se as técnicas de análise documental e pesquisa bibliográfica.

Raio-X do Sistema Carcerário Brasileiro

No transcorrer dos Mutirões Carcerários, liderados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) desde agosto de 2008, foi traçado um raio-X da ambiência carcerária verificada na quase totalidade dos estabelecimentos prisionais do País, reunindo-se em livro dados e informações que retratam as dantescas condições de encarceramento a que estão submetidas as pessoas privadas de sua liberdade no Brasil (CNJ, 2012).

Os dados levantados nas inspeções realizadas in loco sugerem que o modelo de encarceramento que se pratica no Brasil alimenta um ciclo de violências que se projeta para toda a sociedade, reforçado por uma atmosfera degradante em estabelecimentos que pouco ou minimamente estimulam qualquer proposta de transformação daqueles que ali estão.

De modo semelhante, a violação aos direitos humanos dos presos ainda é uma constante em todo o Continente Americano[1], conforme denuncia o Informe 2014/15 da Anistia Internacional Brasil (2015):

[...] Superlotação extrema, condições degradantes, tortura e violência continuaram sendo problemas endêmicos nas prisões brasileiras. Nos últimos anos, vários casos relativos às condições prisionais foram encaminhados à Comissão Interamericana de Direitos Humanos e à Corte Interamericana de Direitos Humanos, enquanto a situação nos presídios continuava preocupante. Em 2013, 60 detentos foram assassinados na penitenciária de Pedrinhas, no Maranhão. Entre janeiro e outubro de 2014, mais de 18 internos foram mortos nessa prisão. Vídeos das decapitações foram exibidos pelos meios de comunicação. Uma investigação sobre o incidente estava em curso no final do ano. De abril de 2013 a abril de 2014, os tribunais sentenciaram 75 policiais pelas mortes de 111 presos durante uma rebelião na penitenciária do Carandiru em 1992 [...].

Uma ideia da magnitude dos problemas que afetam o setor pode ser extraída a partir dos dados levantados pelo Ministério da Justiça (MJ) em 2014, segundo os quais o número de pessoas presas no país aumentou mais de 400% em 20 anos (MJ, 2015). Por outro lado, estudos mostram que a média mundial de encarceramento é de 144 presos para cada 100 mil habitantes, enquanto no Brasil esse o número eleva-se para 300 presos por cada 100 mil habitantes (MJ, 2015)[2], dados esses que sugerem uma espiral crescente da política do encarceramento, onde se constata um aumento gradativo quando se comparam os dados atuais (MJ, 2015) com os anteriores (OEA, 2013).

A população carcerária do Brasil, segundo o último levantamento de 2014, é de 607.731, com uma taxa de ocupação igual a 161%[3], da qual 41% refere-se a presos provisórios[4]. Ao mesmo tempo, registra-se um déficit de 231.062 vagas no sistema carcerário. Para piorar esse quadro, levantamento feito pelo CNJ (2014) aponta que, se executados fossem os mandados de prisão em aberto (no total de 373.991), a população carcerária brasileira saltaria para algo próximo de 1 milhão de pessoas, quando o sistema carcerário dispõe de apenas 376.669 vagas, ou seja, menos de 1/3 (um terço) do quantitativo mínimo necessário, déficit que estaria na origem de todos os problemas do sistema, como sugerido no voto do Ministro Marco Aurélio Melo, relator da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 347/DF (STF, 2015, p. 18).

Dentre as situações encontradas em praticamente todos os estabelecimentos prisionais de Norte ao Sul e de Leste ao Oeste do País, destacam-se a superlotação carcerária, produto do crônico déficit de vagas no sistema, insalubridade ambiental, insegurança, precariedade das instalações, improvisação e ameaça à vida dos presos, regalias à margem da lei, prisões comandadas por grupos e facções de presidiários com a cumplicidade de agentes do Estado, condições sub-humanas em instalações comparáveis a verdadeiras masmorras medievais (CNJ, 2012), resultado do total e absoluto descaso das autoridades constituídas em relação aos direitos humanos dos presidiários, o que se denota, principalmente, pelo contingenciamento de vultosos recursos do Fundo Penitenciário Nacional (FUNPEN), que deveriam ser utilizados na melhoria das condições carcerárias como um todo, levando o STF a reconhecer, de forma inédita em nosso País, o Estado de Coisas Inconstitucional (ECI). Portanto, o problema não é a falta de recursos, mas a desídia do Estado em geri-los adequada e eficientemente, conforme restou assentado no julgamento da Medida Cautelar na ADPF nº 347/DF, no qual se concluiu:

[..] haver saldo de R$ 2,2 bilhões ante o contingenciamento orçamentário pela União. Menciona pesquisa na qual identificado o uso, em 2013, de menos de 20% dos recursos do referido Fundo. Afirma o excesso de rigidez e de burocracia da União para liberação de recursos aos demais entes federativos. Alega que, evidenciado o “estado de coisas inconstitucional”, o contingenciamento de recursos do FUNPEN revela-se afrontoso à dignidade humana de centenas de milhares de pessoas. (STF, 2015).

Trata-se, portanto, de um quadro surreal no qual a subsistência do Sistema Penitenciário, tal como se apresenta, tem por pressuposto fundamental o descumprimento da lei, isto é,  a inércia do Estado em cumprir e fazer cumprir as sentenças judiciais, posto que, de outro modo, ter-se-ia, inexoravelmente, o colapso total do sistema, onde as 376.669 vagas existentes não comportariam, em absoluto, o universo de quase 1 milhão de pessoas, conjuntura essa que retrata muito bem o equilíbrio de antagonismos como marca indelével da cultura brasileira, na intrigante análise de Freyre (2003, p. 116-117).  

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A situação aterradora dos estabelecimentos prisionais do País, como visto, foi debatida no âmbito da ADPF nº 347 DF, perante o Supremo Tribunal Federal (STF), de cujo voto do relator, Ministro Marco Aurélio Mello, destaca-se o seguinte trecho:

Com o déficit prisional ultrapassando a casa das 206 mil[5] vagas, salta aos olhos o problema da superlotação, que pode ser a origem de todos os males. No Relatório Final da Comissão Parlamentar de Inquérito da Câmara dos Deputados, formalizado em 2009, concluiu-se que “a superlotação é talvez a mãe de todos os demais problemas do sistema carcerário. Celas superlotadas ocasionam insalubridade, doenças, motins, rebeliões, mortes, degradação da pessoa humana. A CPI encontrou homens amontoados como lixo humano em celas cheias, se revezando para dormir, ou dormindo em cima do vaso sanitário. (STF, 2015, p. 18 - grifo nosso).

O próprio Ministério da Justiça, a quem compete, em última instância, promover a indução de medidas administrativas capazes de equacionar a situação caótica do sistema carcerário, admite que se trata de demanda cuja magnitude desafia a atenção de todos os Poderes da República, em todos os níveis, além de se relacionar com o que a sociedade espera do Estado como ator da pacificação social, o que implica a rejeição de soluções singelas, ditadas pelo senso comum, como se deduz do seguinte trecho do INFOPEN – 2014:

[...] O equacionamento de seus problemas exige, necessariamente, o envolvimento dos três Poderes da República, em todos os níveis da Federação, além de se relacionar diretamente com o que a sociedade espera do Estado como ator de pacificação social. Diante dessa complexidade, parece acertado descartar qualquer solução que se apresente como uma panaceia, seja no âmbito legislativo, administrativo ou judicial. No entanto, isso não significa que nada possa ser feito. Do contrário, a magnitude do problema exige que os operadores jurídicos, os gestores públicos e os legisladores intensifiquem seus esforços na busca conjunta de soluções e estratégias inteligentes, e não reducionistas, aptas a nos conduzir à construção de horizontes mais alentadores (MJ, 2015, p. 6).

Neste contexto, o Projeto Audiência de Custódia visa, fundamentalmente, qualificar o ingresso do autuado no sistema prisional, isto é, restringir a entrada no sistema ao mínimo absolutamente necessário, utilizando-se, para tanto, além das situações de liberdade provisória (com ou sem fiança) e de relaxamento da prisão (quando ilegal), a substituição da prisão provisória por uma das medidas cautelares previstas no art. 319 do Código de Processo Penal (CPP) Brasileiro.

Bases do Programa Audiência de Custódia na forma concebida pelo Conselho Nacional de Justiça.

A violência institucional, como fenômeno inexorável da vida em sociedade (Ricoeur, 2008, p. 266), fomentada pelo consumismo, imediatismo e individualismo que caracterizam o modo de vida da modernidade líquida ou da pós-modernidade (Garland, 1999, p. 62), produz um efeito perverso no qual as pessoas alijadas desse processo são colocadas à margem da sociedade de consumo, culminando na criminalização de grande parcela de jovens pobres, pardos e analfabetos funcionais.

De fato, o último censo realizado pelo MJ (2015, p. 48-65) destaca no Item 4 – Perfil da população carcerária – que: a) Faixa etária: 31% dos presidiários estão entre 18-24 anos e 25% na faixa de 25-29 anos, totalizando 56%, enquanto a população brasileira nessa escala etária é de apenas 21,5%; b) Raça, cor ou etnia: 67% da população carcerária (+1/3) é negra, enquanto na formação da população brasileira esse segmento representa apenas 51%; c) Escolaridade: 53% dos presidiários possuem, apenas, o ensino fundamental incompleto, o que implica dizer que mais da metade do contingente prisional é composto de semianalfabetos ou  analfabetos funcionais.

O senso demonstra, ainda, que a predominância do contingente prisional é do sexo masculino, solteiro e sem filhos. O tipo penal que lidera o ranking é o de tráfico de drogas (27%), seguido pelo de roubo na forma simples (21%).

Tais dados comprovam, a mais não poder, que o modo de vida egoístico fomenta uma patologia social que compromete o ideal aristotélico de viver bem, com e para os outros, em instituições justas, emergindo a necessidade da intervenção de um terceiro, representado por um corpo de leis escritas, pela instauração de instituições judiciárias e pela separação de um corpo de juízes cuja tarefa primordial é proferir uma palavra de justiça numa situação concreta, transferindo os conflitos do nível da violência irracional para o plano da linguagem e do discurso (Ricoeur, 2008, p. 254-257). Cuida-se de um cenário desolador no qual a Justiça representa, em última instância, uma opção da linguagem racional do discurso em detrimento da violência pura e simples.

Neste contexto, destaque-se que a promoção da cidadania foi eleita como um dos objetivos estratégicos a serem perseguidos pelo Poder Judiciário, nos termos da Resolução nº 198-CNJ, de 01/07/14, escopo este compreendido no tema central dos direitos humanos que norteia a atuação do CNJ (2009, p. 25) e no seio do qual se situa a concepção e implementação do Projeto Audiência de Custódia.

A matriz normativa da Audiência de Custódia está no art. 9º, item 3, 1ª parte, do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (PIDCP), vazado nos seguintes termos:

Todo o indivíduo preso ou detido sob acusação de uma infracção penal será prontamente conduzido perante um juiz ou uma outra autoridade habilitada pela lei a exercer funções judiciárias e deverá ser julgado num prazo razoável ou libertado (grifo nosso).

A Audiência de Custódia também encontra previsão normativa no art. 7º, item 5º, da CADH, nos seguintes termos:

Toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada pela lei a exercer funções judiciais e tem direito a ser julgada dentro de um prazo razoável ou a ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo (grifo nosso).

Destaque-se, desde logo, que, por força do disposto no art. 5º, § 2º, da CFB/1988, tais normas acham-se incorporadas, em sentido material, ao Direito Constitucional Brasileiro, estando, portanto, dotadas de eficácia plena e imediata, nos termos do art. 5º, § 1º, da CFB/1988[6], condição essa expressamente reconhecida pelo STF (2015) no julgamento da Medida Cautelar na ADPF nº 347 / DF.

Não obstante tenha o Brasil ratificado ambos os instrumentos normativos internacionais desde o ano de 1992, transcorridos 23 (vinte e três) anos, as audiências de custódias ainda não haviam sido implementadas no sistema penal brasileiro, panorama esse que só começou a transformar-se a partir de fevereiro de 2015, quando o CNJ, em parceria com o Ministério da Justiça e o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJESP), lançou o Projeto Audiência de Custódia.

A campanha ganhou novo fôlego e veio a intensificar-se a partir de quando o STF reconheceu o Estado de Coisas Inconstitucional no Sistema Carcerário Nacional, deliberando, dentre outras providências, o prazo máximo de 90 (noventa) dias para que que juízes e tribunais implementassem as medidas visando à efetivação do Projeto Audiência de Custódia. (STF, 2015).

A audiência de custódia consiste na garantia da rápida apresentação do preso a um juiz nos casos de prisões em flagrante. A ideia é que o acusado seja apresentado e entrevistado pelo juiz, em uma audiência em que serão obtidas, também, as manifestações do Ministério Público, da Defensoria Pública ou do advogado do preso.

Durante a audiência, o juiz analisará a prisão sob o aspecto da legalidade, da necessidade e da adequação da continuidade da prisão ou da eventual concessão de liberdade, com ou sem a imposição de outras medidas cautelares. O juiz poderá avaliar também eventuais ocorrências de tortura ou de maus-tratos, entre outras irregularidades.

O projeto prevê, ainda, a estruturação de centrais de alternativas penais, centrais de monitoramento eletrônico, centrais de serviços e assistência social e câmaras de mediação penal, que serão responsáveis por representar ao juiz opções ao encarceramento provisório.

No dia 9 de abril de 2015, o CNJ, o Ministério da Justiça e o Instituto de Defesa do Direito de Defesa firmaram um termo de cooperação técnica que têm por objetivo incentivar a difusão do Projeto Audiência de Custódia em todo o País (CNJ, 2015b).

Com idêntico propósito, o CNJ (2015c) fomentou a realização de nada menos do que 31 (trinta e um) Termos de Adesão, sendo 26 (vinte e seis) com os Governos Estaduais e 05 (cinco) com os Tribunais Regionais Federais.

Embora tenha se iniciado em fevereiro de 2015, o Projeto Audiência de Custódia só foi regulamentado em dezembro daquele ano, o que se deu pela Resolução nº 213, de 15 de dezembro de 2015, do CNJ (2015d).

A implementação do Projeto Audiência de Custódia, a par de combater a cultura do encarceramento no País (MJ, 2015), revela a tendência do Brasil de, internamente, conformar-se às obrigações internacionais por ele contraídas, como sugerem Alves (2003, p. 108) e Piovesan (2011, p. 437) e cujos frutos já se fazem sentir no horizonte do sistema punitivo brasileiro, onde dados preliminares registrados na home page do G1 mostra que, até outubro de 2015, a audiência evitou a entrada de 49% (quarenta e nove) por cento das pessoas autuadas em flagrante delito, ou seja, em apenas 51% dos casos apresentados ao Juiz de Custódia mostrou-se indispensável a medida de encarceramento (Stochero, 2015), resultado de uma triagem submetida a um maior rigor técnico, como bem expressou a Juíza capixaba Gisele Souza de Oliveira:

As audiências de custódia estão sendo essenciais para que o juiz, presencialmente, faça uma boa e justa análise do flagrante. O objetivo não é soltar as pessoas de maneira irresponsável e sem critérios, mas qualificar a porta de entrada dos presídios, dosar e avaliar quem deve entrar e também verificar se o preso não sofreu tortura no momento da prisão (Stochero, 2015 - grifo nosso).

Não obstante sua importância estratégica para o resgate da cidadania, restringindo o ingresso no caótico sistema prisional aos casos absolutamente necessários, a implementação da audiência de custódia se depara com resistências corporativas dos mais variados matizes, expostas, resumidamente, a seguir.

Objeções à adoção da uma Audiência de Custódia no Judiciário Brasileiro

Em um artigo intitulado A Falácia da Audiência de Custódia, Garcia (2015) não se posiciona, exatamente, contra o referido ato processual. Sustenta, porém, que ele seja conduzido pelos delegados de polícia, em consonância com as disposições do Pacto de San José da Costa Rica (arts. 7.5 e 8.1), cujas autoridades gozariam, na visão do articulista, de estabilidade funcional a lhes conferir segurança jurídica para atuar com imparcialidade e autonomia.

Não se questiona aqui, evidentemente, a capacidade intelectual e o grau de confiabilidade dos integrantes da Polícia Judiciária. Não obstante, parece claro que as razões alinhadas pelo articulista não impedem, em absoluto, a realização do ato processual diretamente pelo juiz. Antes, pelo contrário, os documentos e precedentes internacionais por ele invocados só ratificam a regra da judicabilidade do direito fundamental de liberdade.

Se assim o é, nada obsta – e tudo recomenda - que o Poder Judiciário, no exercício do controle de convencionalidade das normas infraconstitucionais, resolva a respeito do procedimento de audiência de custódia, fixando-lhe os respectivos contornos, de modo como procedeu o CNJ (2015d), cuja matéria também se acha na pauta do Congresso Nacional, conforme Projeto-de-lei nº 554/2011, que visa alterar o art. 306, § 1º do CPP.

Ademais, destaque-se que a lei brasileira comete à Polícia Judiciária a função primeira de estabelecer a autoria e a materialidade do crime (art. 4º do CPP), de forma que aos delegados de polícia falta-lhes a justa equidistância para uma avaliação livre de preconceitos e isenta de parcialidade a respeito da legalidade das detenções efetuadas pelo aparato repressor do Estado, dos quais são legítimos representantes, pois como observa Gadamer (1997, p. 367-368): “Só quando as coisas se captam com perspectiva e distância é que podem adquirir o seu verdadeiro sentido, entanto o juízo imediato dos fatos muitas vezes é deformado pela proximidade”

Considere-se, ainda, que, pelo status que a liberdade individual assume num Estado de Direito Constitucional, é impensável se atribuir a autoridades policiais ou administrativas, integrantes do aparelho repressor do Estado, a tutela constitucional dessa garantia fundamental, sob pena de irreversível enfraquecimento do seu núcleo essencial.

Portanto, ao arrepio de quaisquer pretensões corporativistas, parece insofismável o fato de que o lugar natural da audiência de custódia é, efetivamente, no âmbito do Poder Judiciário que, na condição de terceiro garantidor dos direitos fundamentais (Ricoeur, 2008, p. 254-255), está em melhores condições de decidir sobre a legalidade de uma prisão e sua eventual substituição por qualquer outra medida cautelar prevista na legislação processual (art. 319 do CPP). Esse é o compromisso indissociável da magistratura dos juízes com os direitos fundamentais, em geral, e com a liberdade, em particular, sem perder de vista que “A democracia não tolera nenhuma outra magistratura senão a do juiz” (Garapon, 1996, p. 9-16).

Nessa mesma linha de raciocínio, o Desembargador Ricardo Dip apresentou voto no Conselho da Magistratura do e. TJESP (2016) alinhando-se à corrente dos que pretendem transferir para as autoridades policiais a realização da audiência de custódia. De um modo geral, o ponto comum em tais manifestações reside na tentativa de transmutar em regra geral a exceção expressa na locução “[...] ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais”, prevista no artigo 7º, item 5, da CADH, quando é evidente que não se pode tomar a exceção pela regra, isso sem falar que as funções jurisdicionais são privativas e exclusivas da magistratura dos juízes, salvo os casos expressamente previstos na própria Constituição.

Alega-se, também, a ausência de previsão normativa, já que os instrumentos internacionais não fixam prazo para a realização do ato, cuidando-se de norma de eficácia contida (Ricci, 2015). Nesta perspectiva, o Deputado Federal Eduardo Bolsonaro, do PSC/SP (Câmara dos Deputados, 2015), apresentou o Projeto de Decreto Legislativo (PDC nº 317/2106), tendo como objetivo anular a já citada Resolução do CNJ nº 213/2105, por suposta invasão da competência da União Federal para legislador sobre material processual (art. 22, inc. I, da CFB/1988).

Este argumento, todavia, não se sustenta. Os tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil já estão, no plano material, incorporados ao Direito Constitucional Brasileiro, conforme reconhecido pelo próprio STF na ADPF nº 347 / DF (STF, 2015), independentemente do rito de incorporação formal previsto no art. 5º, § 3º, da CFB/1988, incluído pela EC nº 45/2004, tratando-se, portanto, de norma de eficácia plena e imediata por força do que dispõe o § 1º do art. 5º da CFB/1988.

Costuma-se, ainda, invocar a falta de estrutura adequada para realização das audiências de custódia, os altos custos envolvidos no processo de deslocamento de presos e um suposto tratamento privilegiado ao autor do delito, em detrimento dos cuidados devidos em relação às pessoas vitimadas (Perez, Zuza, Boechat & Pires, 2016).

Deve-se objetar, porém, que eventual falta ou deficiência de estrutura adequada não justifica, em absoluto, o relaxamento de um direito fundamental, até mesmo por envolver uma situação contingente e, como tal, contornável a curto e médio prazo. Daí porque, a nova realidade trazida com a implementação do Projeto Audiência de Custódia reclama dos gestores públicos a alocação dos recursos necessários para adequação das estruturas materiais e humanas indispensáveis ao apropriado funcionamento do sistema de Justiça.

Já quanto aos custos envolvidos no processo de deslocamento de presos, projeta-se, ao revés, economia de vultosos recursos públicos. Segundo o Ministro Ricardo Lewandowiski, Presidente do STF, o projeto tem condições de evitar cerca de 120 mil prisões ao ano, o que renderia uma economia anual aos cofres públicos de R$ 4,2 bilhões, considerando-se, nesse cálculo, o custo mensal de um preso, que é de cerca de R$ 3 mil reais (G1, 2016), isso sem falar que o deslocamento poderá ser gradativamente substituído, total ou parcialmente, para o sistema de videoconferência.

Destaque-se, de outra senda, que a observância dos direitos dos presidiários não exclui, em absoluto, o dever legal de assistência social do Estado para com as vítimas de ações criminosas, sempre que necessário for. No entanto, não estando a vítima integrada ao sistema carcerário, essa assistência deverá ser prestada, a priori, pelos órgãos estatais encarregados dos serviços de saúde, segurança e assistência social, sem interferência direta ou indireta do Poder Judiciário, salvo o caso de eventual conflito de interesses.

Já quanto à valoração das alegações do autuado, parece intuitivo que o juiz de custódia só afastará a presunção de legitimidade que promana do auto de prisão em flagrante quando o réu apresentar defesa substancialmente fundamentada, capaz de contrastar os elementos de convicção produzidos pelas autoridades responsáveis pelo encarceramento, onde este contato pessoal e direto se mostra extremamente importante para dirimir quaisquer dúvidas porventura subsistentes na avaliação do julgador, como bem como destacado em editorial do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais:

A fiscalização da legalidade do ato de aprisionamento e tudo o que o circunda, de há muito já se sabe, não se basta com a fria afirmativa de que o “flagrante está formalmente em ordem”, sobretudo exarada após a leitura de um monte de papéis, no mais das vezes, meticulosamente formalizados exatamente para acobertar abusos cometidos na ação policial. Sabem todos que o papel e o contato pessoal com o cidadão não são fungíveis entre si. Um conjunto de peças processuais nunca foi e nunca será tão eficaz quanto uma audiência presencial entre juiz e jurisdicionado, particularmente em matéria de prisão. IBCRIM, 2015)

Conclusões

O tratamento digno e respeitoso aos direitos elementares dos presos é indício do grau de civilização de uma sociedade e o primeiro passo que se dá na tentativa de regenerar a vida daqueles que um dia haverão de retornar ao convívio social. Não se concebe mais a convivência com a “cultura encarceramento” tantas vezes denunciada em documentos internacionais (AIBR, 2015).

Conclui-se, de início, que no Brasil subsiste, efetivamente, o que se pode denominar de “cultura do encarceramento”, onde o percentual de 41% (quarenta e um por cento) de presos provisórios demonstra que a prisão preventiva é utilizada de forma dissociada de sua finalidade cautelar, isto é, já como regra, e não mais como medida de exceção, a ser utilizada em casos absolutamente necessários e, sobretudo, quando não for possível a substituição por uma ou mais das medidas cautelas previstas no art. 319 do CPP.

Em contraste, mais de 373.000 (trezentos e setenta e três mil) réus já condenados por sentença definitiva aguardam a respectiva captura (CNJ, 2014), o que representa mais da metade dos presidiários do País, gerando uma gritante distorção sistêmica em razão da qual pessoas sem culpa formada estão atrás das grades, enquanto condenados por sentença definitiva transitam livremente pelas ruas do País.

Para piorar esse quadro, se houvesse o cumprimento imediato de todos os mandados de prisão já expedidos, a população carcerária do País saltaria para quase um milhão de pessoas, levando o sistema a um total e absoluto colapso.

Deve-se, portanto, incentivar o incremento da audiência de custódia em todos os rincões do País, como forma de qualificar a entrada de acusados no sistema prisional, substituindo-se a prisão provisória, sempre que possível, por uma ou mais das medidas cautelares previstas no art. 319 do CPP, o que implicará na gradativa substituição dos presos provisórios por sentenciados definitivos, afastando o risco de um colapso no sistema prisional que adviria, fatalmente, caso se decidisse cumprir, na atual conjuntura, todos os mandados de prisão em aberto.

Neste sentido, convém consignar que o próprio MJ, através da Política Nacional de Penas Alternativas (2016), editou a Portaria nº 495/2016, com o propósito de reduzir o número de presos em 10% (dez por cento), o que implica em mais de 60.000,00 (sessenta mil), mediante a intensificação da aplicação de medidas despenalizadoras, o que representa uma notícia alvissareira no cinzento horizonte carcerário do País.

Por outro lado, deve-se objetar, com ênfase, à tentativa de subtrair do sistema de justiça penal a responsabilidade pela implementação do Projeto Audiência de Custódia, ante as razões já elencadas acima.

Neste contexto, conclui-se que a audiência de custódia constitui instrumento importantíssimo no combate à política do encarceramento, o que se comprova pelos dados iniciais obtidos segundo os quais, em termos absolutos, apenas em relação a 51% (cinquenta e um por cento) das pessoas autuadas em flagrante delito se faz mister a aplicação da medida segregativa cautelar. Em relação aos 49% (quarenta e nove por cento) restantes, ou se relaxa a prisão, caso se mostre ilegal, ou se aplica uma das medidas cautelares previstas no art. 319 do CPP.

Desta forma, entende-se que a audiência de custódia contribui para debelar o grave quadro pelo qual passa o sistema prisional brasileiro, no qual 41% (quarenta e um por cento) dos presos são provisórios, enquanto um contingente superior a 373.000 (trezentos e setenta e três mil) condenados em definitivos pelo Sistema de Justiça transita livremente pelas ruas do País, numa verdadeira e inconcebível inversão de papéis.

Claro está, reconheça-se, que a audiência de custódia não resolverá, como num passe de mágica, todos os problemas que afetam o sistema penitenciário, dentre os quais o mais contundente: a superlotação carcerária. Esta conclusão inarredável, entretanto, não autoriza, em absoluto, que o Sistema de Justiça abdique de seu poder-dever de lançar mão de todos os instrumentos legais aptos a tornar o sistema mais racional e humano. Dentre esses mecanismos, a o simbolismo, a importância e a eficácia da audiência e custódia falam por si sós.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Referências Bibliográficas

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[1] [...] Com a disparada das taxas de encarceramento na região nas duas últimas décadas, os grupos de direitos humanos documentaram como as prisões latino-americanas se transformaram em locais tenebrosos onde o cumprimento de pena se tornou uma luta por sobrevivência. [...]. Embora vários dos atuais governantes da região tenham vivido a experiência do cárcere, as condições prisionais nesses países não tiveram prioridade em sua agenda política (AIBR, 2015 - grifo nosso).

[2] O Brasil tem a 4ª maior taxa de aprisionamento por 100.000/h (300), ficando atrás apenas dos Estados Unidos (698); da Tailândia (457) e da Rússia (468) (MJ, 2015).

[3] A taxa de ocupação indica a razão entre o número de pessoas presas e a quantidade de vagas existentes, servindo como um indicador do déficit de vagas no sistema prisional.

[4] A taxa de presos sem condenação indica qual porcentagem da população prisional é composta por presos provisórios.

[5] Na realidade, 231.062 vagas a menos, conforme último levantamento divulgado: INFOPEN – 2014 (MJ, 2015).

[6] Art. 5º [...]

§ 1º As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.

Sobre o autor
Manuel Maria Antunes de Melo

Possui graduação em Direito pela Universidade Federal da Paraíba (1994). É Juiz de Direito Titular da 12ª Vara Cível da Capital, João Pessoa, PB. Ex-Professor das Disciplinas Direito Processual Civil e Direito Civil da UNESC Faculdades, da Escola Superior do Ministério Público (FESMIP); da Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas (FACISA) e da Escola Superior da Magistratura do (ESMA - TJ/PB). É Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Potiguar. Autor dos livros Sinopses de Direito Processual Civil,Tomos I e II (2ª edição) e Manual de Direito Processual Civil (2ª edição, conforme o CPC/2015). Atualmente é aluno do Curso de Mestrado em Direitos Humanos da Universidade Católica de Petrópolis (UCP/RJ).

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Mais informações

Este trabalho é resultado de pesquisa descritiva realizada no Mestrado em Direitos Humanos da Universidade Católica de Petrópolis (UCP/RJ), com emprego dos métodos dialético e sistêmico, utilizando-se as técnicas de análise documental e pesquisa bibliográfica.

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