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A “audiência de custódia” na República Federativa do Brasil

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Agenda 17/02/2017 às 15:00

Realizar audiências de custódia não se trata de um benefício ao criminoso ou culpado, mas de um instrumento que pode corrigir mazelas, erros, desproporcionalidades tão comuns e corriqueiras em nosso país.

RESUMO:O presente trabalho tem por escopo fazer uma análise acerca das “Audiências de Custódia” na República Federativa do Brasil. Para tanto, serão consideradas correntes doutrinárias e jurisprudenciais sobre o tema. Audiência de Custódia será vislumbrada enquanto, audiência dirigida à prevenção de tortura, humanização e as garantias constitucionais do Sistema Penal. Afinal, por que ainda relutamos em aplicá-la no sistema penal brasileiro? Não bastaria a adesão ao Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e a Convenção de San José da Costa Rica? Até que ponto seria salutar continuarmos a discutir aspectos relativos à natureza supralegal ou ordinária desses Tratados, quando de fato sua problemática se insere num campo muito mais complexo e importante: a vida, direitos e a dignidade da pessoa humana?

PALAVRAS-CHAVES: Audiência de Custódia; Garantias Constitucionais; Pacto San José da Costa Rica; Humanização; Código de Processo Penal.


INTRODUÇÃO

O crescente aumento da população carcerária e do desrespeito as garantias constitucionais dos indivíduos têm alertado nas últimas décadas inúmeros entes políticos sobre a real natureza e importância dos Estados Democráticos de Direito no combate a repressão e a violência.

E conquanto tenhamos perpassado uma difícil fase durante as Guerras Mundiais, sobretudo, quanto aos nefastos efeitos deixados pela Segunda Guerra, ainda hoje buscamos inserir nos ordenamentos jurídicos instrumentos de proteção e garantia de direitos.

E considerando tal pretensão na busca por novos elementos de proteção e garantia, é que se inseriu nos últimos meses, embora, fosse um instrumento cujas nuances já estivessem previstas em Tratados aos quais já aderimos há alguns anos, a discussão sobre os benefícios das Audiências de Custódias na República Federativa do Brasil.

Neste aspecto, o presente trabalho, objetivando discutir o assunto discorrerá sobre o tema em três capítulos. No primeiro deles, abordando a natureza jurídica e as finalidades das Audiências de Custódia e as Garantias Constitucionais. No Segundo, a previsão similar na Convenção de San José da Costa Rica (Convenção Americana de Direitos Humanos), e no Pacto Internacional Sobre Direitos Civis e Políticos, dos quais a República Federativa do Brasil é signatária. E no terceiro e último, salientando a problemática levantada por aplicadores do Direito no que tange a falta de previsão no Código de Processo Penal brasileiro e a natureza jurídica dos Tratados em apreço.

Afinal, o que fazer quando o Código de Processo Penal não prevê esse instituto? Qual a real natureza desses Tratados? Até que ponto é salutar continuarmos a discutir isso, quando o que nos parece mais importante são os aspectos envoltos a vida, os direitos, a dignidade humana e a justiça?


1.AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA E AS GARANTIAS CONSTITUCIONAIS DO PROCESSO PENAL

1.1.DEFINIÇÃO E CONCEITO DE AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA

Considerando que nossa pretensão se volta à análise das Audiências de Custódia na República Federativa do Brasil, convém que façamos nesse primeiro momento uma breve colocação acerca das particularidades desse instituto, iniciando por sua definição e conceito.

O termo “custódia” tem suas origens deitadas no berço latino e segundo Paiva (2015, s/p), expressariam o ato de guardar, de proteger, cujos matizes são velhos conhecidos da história penal, sobretudo, nos períodos da monarquia.

E partindo de tais pressupostos de guarda e proteção, é que as Audiências de Custódia ganhariam forma e conteúdo nos manuais e jurisprudências pelo mundo afora, especialmente, no que tange as garantias constitucionais elencadas nas Constituições e a realidade dos sistemas penitenciários. 

Na República Federativa do Brasil, embora conteúdo semelhante fosse previsto nos Tratados Internacionais aos quais aderiu pacificamente, sua visualização só se faria notar com o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5.240/SP, sendo mais tímida. Frise-se ainda, que na data do julgamento da referida ação fora ventilada a hipótese de uma nomenclatura diversa semelhante aquela empregada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente; eis uma “Audiência de Apresentação”.

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Controvérsias terminológicas a parte, a doutrina passou a definir as “Audiências de Custódia” como aquelas consistentes na condução do preso sem demora á presença de autoridade judicial, a fim de exercer um controle imediato da legalidade e da necessidade da prisão, bem como para apreciar outras questões, sobretudo, as referentes á pessoa do cidadão, aos maus tratos e a tortura, após prévio contraditório estabelecido entre o Ministério Público e a defesa. (PAIVA, 2015, s/p).

Em outras palavras, tratar-se-ia de uma audiência que ao permitir o contato de forma mais rápida e efetiva do acusado preso com a autoridade judiciária oportunizaria a resolução de questões que a rigor levaria anos e, ou, meses para serem salientadas, principalmente, os erros, questões de legalidade da prisão, necessidade de mantença da prisão e a humanização.

Neste aspecto, salienta Maria Laura Canineu ao comentar o assunto que:

(...) quando é presa, uma pessoa tem o direito de comparecer imediatamente perante um juiz. Trata-se de um princípio fundamental e de longa data do direito internacional. Ele é crucial para garantir que a prisão, tratamento e permanência da pessoa em detenção ocorram dentro da lei. (CANINEU, 2013, p. 03).

Assim, a Audiência de Custódia imprime-se como o instrumento zelador das garantias constitucionais e internacionais assumidas pela República Federativa do Brasil, transpassando as fronteiras de mera análise da legalidade e necessidade de prisão. Seu cunho é assim, intimamente social e humano.

1.2.AS FINALIDADES DA AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA

Perpassada a análise acerca do conceito e definição das Audiências de Custódia, cujos aspectos como vimos são de cunho doutrinário e nos remetem a história penal, neste tópico, passaremos a exposição de suas finalidades na República Federativa do Brasil.

Contudo, anteriormente é importante frisarmos o caos vivenciado pelo sistema penal e penitenciário brasileiro, que segundo os professores Lopes Júnior e Paiva (2014, s/p), nos mostram dados oficiais preocupantes e de certa forma gritantes; eis uma população carcerária que atinge o impressionante número de 711.463.000 presos e é hoje a terceira maior do mundo.

No mais, alertam-nos ainda que as prisões são hoje no cenário jurídico brasileiro protagonistas que não permitem  participações, contando apenas com a figuração de algumas cautelares, apesar de ser a Lei 12.403/2011, voltada a colocação da prisão em última ratio.(LOPES JÚNIOR; PAIVA, 2014, s/p).

Uma população carcerária grande e a crise de identidade das prisões somadas à realidade financeira e institucional da sociedade e do Estado reflete que o caos vivenciado não é apenas contingencial, mas de todo um sistema falho. E é neste cenário que a Audiência de Custódia com o objetivo de garantir o contato da pessoa presa com a autoridade judicial no prazo mínimo, traz um ou mais resultados jurídicos e relativos à pessoa do acusado preso, senão vejamos.

Segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), juridicamente a Audiência de Custódia poderá promover o relaxamento da prisão, quando esta for ilegal; a concessão de liberdade provisória, com ou sem fiança; a conversão da prisão em flagrante em prisão preventiva, se necessário; a substituição da prisão em flagrante por medidas cautelares diversas; a análise da consideração de cabimento da mediação penal, evitando assim, a judicialização do conflito e corroborando para a prática restaurativa. (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2015).

Como se denota no plano jurídico sua finalidade se voltaria a antecipar as medidas que poderiam ser realizadas geralmente apenas após as primeiras audiências penais, cujos períodos a depender das regiões brasileiras variam muito em termos de meses e anos.

Frise-se, contudo, que sua finalidade não ficaria apenas adstrita a antecipação de tais medidas, pois uma vez realizada os benefícios para o sistema penitenciário e penal poderiam ser maiores, inclusive, concedendo a liberdade de indivíduo que estivesse preso. Neste sentido, a Defensoria Pública do Estado de São Paulo (2014, p. 02), elenca alguns deles, a saber: o combate a superlotação carcerária; a inibição ao tratamento cruel, desumano e principalmente, a tortura; o respeito as garantias constitucionais;  o reforço ao compromisso brasileiro com os Direitos Humanos; a inserção da demanda social em iniciativa legislativa; a renovação das credenciais da República Federativa do Brasil no cenário internacional; a adequação do ordenamento jurídico interno para o cumprimento de obrigações internacionais e o reforço a integração jurídica latino americana, onde é chamada de “Juizados de Garantia”.

Logo, as finalidades da Audiência de Custódia permeiam não apenas as garantias e direitos do acusado preso, mas contribuem também para “desafogar” o sistema penitenciário brasileiro hoje tão afetado pela crise institucional e social.

1.3 GARANTIAS CONSTITUCIONAIS DO PROCESSO PENAL

Transcritas algumas considerações acerca das finalidades da Audiência de Custódia na República Federativa do Brasil, a seguir, comentaremos brevemente as garantias constitucionais do Processo Penal previstas na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

Segundo o professor José Cirilo de Vargas (1992, p.49), garantias são normas jurídicas, quer sejam de leis positivas ou de preceitos constitucionais, que asseguram o gozo dos direitos e preservam o indivíduo contra o extravasamento do legislador, do juiz e dos órgãos executivos e que no campo processual penal se relacionam com a jurisdição, as partes, as provas e o processo.

No que tange a jurisdição, minimamente as garantias devem englobam o julgamento por um juiz natural, integrante do Poder Judiciário e investido conforme os ditames legais, não se admitindo juízos ou tribunais de exceção, nos termos da norma do artigo 5º, XXXVII.  Ainda, dotado de independência e imparcialidade, consoante as vedações transcritas na norma do artigo 95, e que cumpra o preceito relacionado a motivação de suas decisões, observada a exceção das proferidas pelo Tribunal do Júri.

 Igualmente, a propositura de ação penal deve atender ao princípio do promotor natural, que assim como o juiz é dotado de independência funcional e está adstrito a investidura através de concurso público de provas e títulos. No mais, as garantias afetas a jurisdição também inserem em seu bojo o duplo grau de jurisdição possibilitando que as partes recorrem da decisão nos prazos fixados em lei; a reformatio in pejus, que proíbe a reforma das decisões de modo a prejudicar o recorrente e a efetividade das decisões, consubstanciada pela coisa julgada.

Referentes às garantias ligadas as partes infimamente citam-se: a igualdade ou paridade de armas, transcrita na norma do artigo 5º, I, a ampla defesa prevista no inciso LV, da norma do artigo 5º; a garantia de ser informado pessoalmente da acusação; a autodefesa; a defesa técnica; a proibição de cerceamento de defesa; a não auto-incriminação e o contraditório.

Extremamente importantes na condução do processo de forma justa, tais garantias expressam da mesma forma a necessidade de que as partes sejam tratadas igualmente para que o fim almejado seja alcançado sem incorrer em erros, injustiças e desproporcionalidades. (VARGAS, 1992, p.49).

Tratando-se das provas, as garantias mínimas dirão respeito à inadmissibilidade de provas obtidas por meios ilícitos e que, frise-se, não era prevista em nossas outras Constituições; o ônus da prova incumbido à acusação, pois ninguém pode ser considerado culpado até o trânsito em julgado da decisão, questão que hoje é interpretada de outra forma pelo Supremo Tribunal Federal; e a identidade física do juiz, que ao examinar os fatos e as provas manifestará o seu livre convencimento motivado.

Por fim, atinente ao processo as garantias constitucionais do Processo Penal se voltarão à elucidação de um processo público, visto que o sigilo é exceção; conforme enumeram as normas dos artigos 5º, inciso LX e 93, IX, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, e a um processo sem dilações indevidas.

Assim, as garantias constitucionais do Processo Penal brasileiro minimamente devem ofertar ao indivíduo um tratamento digno e dentro das nuances que envolvem o devido processo legal, sem prejudicar ou auxiliar indevidamente um ou outro sujeito de direito.


2.A AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA E OS INSTRUMENTOS INTERNACIONAIS DE SAN JOSÉ DA COSTA RICA (CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS) E O PACTO INTERNACIONAL SOBRE DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS

Sopesadas as particularidades da Audiência de Custódia e as garantias constitucionais mínimas do Processo Penal brasileiro, a seguir, discorremos sobre previsão análoga na Convenção de San José da Costa Rica (Convenção Americana de Direitos Humanos), e no Pacto Internacional Sobre Direitos Civis e Políticos, dos quais a República Federativa do Brasil é signatária.

E considerando as similitudes e diferenças existentes entre os instrumentos, é oportuno que anteriormente a exposição do assunto principal se faça uma breve colocação acerca de suas identidades e contextos históricos.

A Convenção de San José da Costa Rica, comumente conhecida como Convenção Americana de Direitos Humanos, é um instrumento internacional datado de 22 de Novembro de 1969, e assinado na Conferência Especializada Interamericana de Direitos Humanos em San José, na Costa Rica, sendo aderido em nosso espaço jurídico retardadamente em 25 de Setembro de 1992, com algumas restrições interpretativas no que tange aos artigos 43 e 48, alínea “d”. (MOREIRA, 2015, s/p).

Basicamente, trata-se de um instrumento internacional voltado a promover a observância e defesa dos direitos humanos, considerando o seu propósito de consolidar um regime de liberdade pessoal e de justiça social.

O Pacto Internacional Sobre Direitos Civis e Políticos, por sua vez, é datado de 1966, remetendo-nos a questões econômicas e sociais dos Estados Unidos a época da divulgação da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Em outras palavras, é um instrumento internacional que expõe os direitos humanos relacionados à liberdade individual, á proteção da pessoa contra a ingerência do Estado, bem como da participação do povo na gestão da sociedade e assim como o anterior, assinado pela República Federativa do Brasil no ano de 1992.

Feitas as considerações devidas, referente à previsão análoga a Audiência de Custódia é imperioso anotar que ambos os instrumentos internacionais acima comentados trazem uma ideia de apresentação do preso a autoridade judiciária cumulada com a proteção de seus direitos individuais, mas sem uma nomenclatura específica. Neste sentido, observe a norma do artigo 7º, 5, da Convenção Americana de Direitos Humanos:

Toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada pela lei a exercer funções judiciais e tem direito a ser julgada dentro de um prazo razoável ou a ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo.  Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo. (grifos nossos).

Indo além da especificação de apresentação do preso a autoridade judiciária, na norma do artigo 9º, 3, do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, enumera ainda a figura da prisão preventiva como exceção á regra:

Qualquer pessoa presa ou encarcerada em virtude de infração penal deverá ser conduzida, sem demora, à presença do juiz ou de outra autoridade habilitada por lei a exercer funções judiciais e terá o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade. A prisão preventiva de pessoas que aguardam julgamento não deverá constituir a regra geral, mas a soltura poderá estar condicionada a garantias que assegurem o comparecimento da pessoa em questão à audiência, a todos os atos do processo e, se necessário for, para a execução da sentença. (Grifos nossos).

Como se denota, pela leitura das normas dos artigos elencados não há qualquer menção a realização de uma Audiência de Custódia, pois como vimos é essa uma definição de cunho jurisprudencial e doutrinário, mas ambos ressaltam a necessidade de apresentação do preso a uma autoridade judicial ou que lhe seja equivalente, para que sejam exercidas as funções judiciais e aqui, consubstanciadas as garantias e os direitos do indivíduo, enquanto sujeito de direito e dotado de dignidade humana.

Dessa forma, ainda que não haja terminologicamente a expressão “Audiência de Custódia” estampada no bojo de tais instrumentos internacionais em comento, a essência trazida em seu conteúdo a faz, sobretudo, quando diz que sejam exercidas as funções judiciais cabíveis. E o juiz como sabemos, é o responsável pela interpretação e o cumprimento da lei, incluindo a proteção aos direitos humanos do acusado preso.

Sobre a autora
Bruna Conceição Ximenes de Araújo

Advogada. Graduada em Ciências Jurídicas pelas Faculdades Integradas de Três Lagoas (AEMS). Pós- Graduada em Direito Constitucional pela Universidade Anhaguera-Uniderp.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARAÚJO, Bruna Conceição Ximenes. A “audiência de custódia” na República Federativa do Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 4979, 17 fev. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/55520. Acesso em: 27 dez. 2024.

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