Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br
Artigo Selo Verificado Destaque dos editores

Desvio de finalidade no troca-troca da CCJ e na distribuição de emendas.

Agenda 15/07/2017 às 09:22

Inobstante a aparência regular, o ato de distribuir emendas parlamentares ou substituir membros da Comissão de Constituição e Justiça tem conotações de ilegalidade, por conta do desvio de finalidade, podendo caracterizar ato criminoso ou de improbidade.

A distribuição ou promessa de distribuição de emendas parlamentares ao orçamento federal nas últimas semanas pelo presidente da República, Michel Temer, é fato notório, amplamente noticiado na imprensa. Também é fato notório que há em curso na Câmara dos Deputados um processo de admissibilidade de denúncia criminal em face do presidente Temer, e que este tem realizado diversas ações políticas (reuniões, nomeações, concessão de benefícios etc.) em função do fortalecimento de sua base aliada no Parlamento. É inegável a evidência (dadas as inúmeras declarações e abordagens jornalísticas) de que há nexo entre a concessão de emendas parlamentares e a garantia de apoio, por meio de voto, no processo referido.

As circunstâncias são bem conhecidas, como demonstra matéria da Folha de São Paulo:

"A liberação de emendas é um dos mecanismos mais tradicionais que os governos lançam mão para garantir fidelidade da base aliada. Denunciado por corrupção passiva pelo procurador-geral da República, Rodrigo Janot, Temer precisa garantir que a maioria dos 342 deputados não apoie o prosseguimento da ação no STF (Supremo Tribunal Federal). O Palácio do Planalto quer ver rejeitada a autorização do STF para apreciar a denúncia oferecida por Janot em, no máximo duas semanas, para não correr o risco de que novos fatos possam vir a desfavorecê-lo. Na terça-feira (4), por exemplo, Temer agendou audiências pessoais no Planalto com duas dúzias de deputados, entre 8h e 21h30. Em entrevista a uma rádio na segunda-feira, o presidente disse estar 'animadíssimo' e ter certeza 'quase absoluta' de que a Câmara vai recusar a autorização para o STF julgá-lo. A base de dados usada pela Reuters é do Siga Brasil, ferramenta desenvolvida pelo Senado que dá acesso aos dados do Siafi." (http://www1.folha.uol.com.br/poder/2017/07/1898642-apos-delacao-da-jbs-governo-dispara-liberacao-de-emendas-parlamentares.shtml).

Exemplo claro da manobra realizada, como noticia outro veículo de imprensa:

“Temer faz nesta terça maratona de audiências com deputados e senadores. Agenda, divulgada pela assessoria, prevê encontros com 22 parlamentares entre 8h e 22h. Presidente foi denunciado na semana passada e cabe à Câmara autorizar o STF a analisar a denúncia da PGR. Dos 16 deputados que Temer receberá nesta terça-feira, seis são integrantes da CCJ: Ronaldo Fonseca (PROS-DF), Evandro Gussi (PV-SP), Lelo Coimbra (PMDB-ES), Rogério Peninha Mendonça (PMDB-SC), Darcísio Perondi (PMDB-RS) e Roberto de Lucena (PV-SP).” (http://policialbr.com/temer-faz-nesta-terca-maratona-de-audiencias-com-deputados-e-senadores).

Outro fato igualmente notório foi o chamado “troca-troca” de membros da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, no curso do processo de admissibilidade da denúncia criminal contra o presidente Temer. Inobstante o ato em si seja praticado pelas lideranças partidárias, segundo disposição regimental, tal se dá em conluio com o presidente da República, como é cediço, e como enfaticamente denunciado pela imprensa e pela população nas redes sociais.

De acordo com matéria do site UOL:

“Desde que a denúncia contra o presidente Michel Temer (PMDB) foi apresentada pela PGR (Procuradoria-Geral da República), 13 dos 66 integrantes titulares da CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) da Câmara dos Deputados já foram trocados por partidos da base aliada, com o objetivo de garantir mais votos a favor do peemedebista. Em pouco mais de duas semanas, portanto, um quinto do colegiado foi renovado. (...) O primeiro membro titular a ser substituído após a chegada da denúncia na Câmara, o deputado Major Olímpio (SD-SP) classificou o troca-troca como a ‘maior cafetinagem parlamentar da história dessa Casa [da Câmara]’. Filiado ao PR, o deputado Delegado Waldir (GO) chegou a acusar o partido de ter "vendido" sua vaga de titular na comissão ao governo. Nesta quarta-feira, o deputado do PP, Espiridião Amin (SC), que dava sinais de que votaria a favor da denúncia, foi retirado da comissão por seu partido.” (https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2017/07/13/entenda-o-troca-troca-entre-integrantes-da-ccj-da-camara-na-tentativa-de-salvar-temer.htm).

Assim, seja com relação à distribuição negociada de emendas parlamentares, seja com relação ao troca-troca na CCJ, é absolutamente evidente a negociata entre o presidente Temer e os deputados cujos votos quer cooptar. A questão é que estes atos e estes fatos caracterizam grave desvio de finalidade e, por consequência, violação à lei, o que pode vir a ser considerado, também, crime de prevaricação e ato de improbidade administrativa.

Se há prerrogativa de que tanto deputados quanto o presidente façam escolhas e elejam prioridades no tocante a dotações orçamentárias ou participação nas comissões, é preciso compreender que não se trata de um direito absoluto. Não é um direito absoluto. A prática destes atos deve estar sujeita aos requisitos comuns aos demais atos administrativos, dentre os quais a motivação e a finalidade, e ainda aos princípios constitucionais, dentre os quais a impessoalidade e a moralidade. E a observância dos princípios não tem caráter ilustrativo.

O desvio de finalidade, de acordo com Hely Lopes Meirelles, "se verifica quando a autoridade, embora atuando nos limites de sua competência, pratica o ato por motivos ou com fins diversos dos objetivados pela lei ou exigidos pelo interesse público” (MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, 14. ed. São Paulo: RT, 1989, p. 92). Celso Antonio Bandeira de Mello ensina que “a propósito do uso de um ato para alcançar finalidade diversa da que lhe é própria, costuma se falar em ‘desvio de poder’ ou ‘desvio de finalidade’” (BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio, Elementos de Direito Administrativo. São Paulo: RT, 1987, p. 47).

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Vale aqui colacionar trecho de decisão do Supremo Tribunal Federal no MS 34070 (18/3/2016, relatoria do ministro Gilmar Mendes), em que a nomeação do ex-presidente Lula como ministro foi considerada como ato em desvio de finalidade:

“Apesar de ser atribuição privativa do Presidente da República a nomeação de Ministro de Estado (art. 84, inciso I, da CF), o ato que visa o preenchimento de tal cargo deve passar pelo crivo dos princípios constitucionais, mais notadamente os da moralidade e da impessoalidade (interpretação sistemática do art. 87 c/c art. 37, II, da CF). A propósito, parece especialmente ilustrativa a lição de Manuel Atienza e Juan Ruiz Manero, na obra ‘Ilícitos Atípicos’. Dizem os autores, a propósito dessa categoria: ‘Os ilícitos atípicos são ações que, prima facie, estão permitidas por uma regra, mas que, uma vez consideradas todas as circunstâncias, devem considerar-se proibidas’. (ATIENZA, Manuel; MANERO, Juan Rui. Ilícitos Atípicos. 2ª ed. Madrid: Editoral Trotta, 2006, p. 12) E por que devem ser consideradas proibidas? Porque, a despeito de sua aparência de legalidade, porque, a despeito de estarem, à primeira vista, em conformidade com uma regra, destoam da razão que a justifica, escapam ao princípio e ao interesse que lhe é subjacente. Trata-se simplesmente de garantir coerência valorativa ou justificativa ao sistema jurídico e de apartar, com clareza, discricionariedade de arbitrariedade. O mesmo raciocínio abarca os três institutos bem conhecidos da nossa doutrina: abuso de direito, fraude à lei e desvio de finalidade/poder. Todos são ilícitos atípicos e têm em comum os seguintes elementos: 1) a existência de ação que, prima facie, estaria em conformidade com uma regra jurídica; 2) a produção de um resultado danoso como consequência, intencional ou não, da ação; 3) o caráter injustificado do resultado danoso, à luz dos princípios jurídicos aplicáveis ao caso e 4) o estabelecimento de uma segunda regra que limita o alcance da primeira para qualificar como proibidos os comportamentos que antes se apresentavam travestidos de legalidade. Especificamente nos casos de desvio de finalidade, o que se tem é a adoção de uma conduta que aparenta estar em conformidade com um certe regra que confere poder à autoridade (regra de competência), mas que, ao fim, conduz a resultados absolutamente incompatíveis com o escopo constitucional desse mandamento e, por isso, é tida como ilícita.”.

É relevante observar, na continuidade da decisão referida, que o elemento central está justamente no propósito oculto do agente:

"Aplicando essas noções ao caso em tela, tem-se que a Presidente da República praticou conduta que, a priori, estaria em conformidade com a atribuição que lhe confere o art. 84, inciso I, da Constituição – nomear Ministros de Estado. Mas, ao fazê-lo, produziu resultado concreto de todo incompatível com a ordem constitucional em vigor: conferir ao investigado foro no Supremo Tribunal Federal.".

Mutatis mutandi, aqui, as condutas estariam, em princípio, lastreadas na lei, seja pelo presidente, pelos deputados beneficiários indiretos de emendas e pelos deputados líderes que formalizaram substituições na CCJ. Parece adequado que se inclua também na órbita de responsabilidades os respectivos partidos políticos, já que é pacífico o entendimento segundo o qual o mandato pertence às agremiações, e seus membros falam por elas, especialmente no caso de lideranças que promovem nomeações e substituições nos órgãos parlamentares.

É preciso considerar outro ponto relevante aqui. O voto de um parlamentar na apreciação de um processo de natureza legislativa é ordinário, mas é extraordinário aquele proferido num processo de natureza jurídico-política, ou jurisdicional, quando faz juízo de admissibilidade. Neste momento o parlamentar exerce o papel de julgador, e esta condição torna a função especialmente adstrita às condições de legalidade do ato.

A substituição de um membro da Comissão de Constituição e Justiça é ato lícito e legítimo quando justificado, como deve ser todo ato administrativo. A substituição ocorre quando há vaga, por renúncia, falecimento, término do mandato ou perda do lugar, decorrente de infração. A prerrogativa de substituição a qualquer tempo, pelo líder, deve ser interpretada em harmonia com estas hipóteses.

Ainda assim, quando, por motivo claro, alguma circunstância impede ou dificulta o regular exercício, admite-se que a substituição se dê legitimamente. Mas esta circunstância há de ser lícita ou, de outro modo, não ser ilícita. A substituição por divergência de opinião já não é motivo admissível, porque, independentemente de qualquer questão, o parlamentar tem o direito à liberdade de opinião e de expressão, que não podem ser obstadas nem mesmo pelo partido.

No caso presente há ainda maior gravidade na ilicitude, porque não se trata de divergência de opinião, mas de conveniência quanto a um resultado de votação, independentemente de análise. Note-se que o substituto já vai integrar a comissão com posição contrária a do substituído, sem sequer ter tido qualquer participação prévia no processo.

É cristalina, portanto, a ocorrência de ato que não guarda relação com o propósito a que se destina, já que a substituição não tinha a finalidade de atender a uma necessidade inerente à própria participação do substituído, mas à sua posição relativa ao voto. Há inequívoco desvio de finalidade.

Quanto à distribuição de emendas parlamentares, do mesmo modo, o desvio de finalidade se faz presente. O próprio critério (de não existir critério) já é questionável, porque quando o Presidente pode dar a quem quiser, com livre arbítrio, as benesses decorrentes da lei, por certo não há aí um sistema coerente e harmônico com o ordenamento brasileiro. Mas, ainda assim, mesmo que haja total liberdade para escolher amigos em detrimento de adversários, o ato há de ser fundado minimamente em uma motivação lícita.

Por que optar pelo projeto A e não pelo B? Qual o critério para que se atenda às reivindicações de um deputado X e não Y? Não é difícil compreender que escolher um projeto em razão da contrapartida do deputado indiretamente agraciado, por meio de voto em determinado processo, não é um critério aceitável, seja do ponto de vista da juridicidade ou da moralidade. E a moralidade, diga-se, não é um adorno. É uma linha de conduta da nação, cuja essência não pode ser desconsiderada na aplicação e na interpretação do direito posto.

É evidente que se está diante de atos ilegais, com nuances de crime de prevaricação e de improbidade administrativa, cogitando-se eventual responsabilidade do presidente Michel Temer e dos deputados responsáveis pelas substituições, além dos deputados beneficiários de emendas em troca de apoio no processo referido, e ainda dos partidos que autorizaram formalmente tais atos.

Sobre o autor
Nelson Zunino Neto

Advogado, pós-graduado em Direito Eleitoral e em Direito Ambiental, atuante principalmente em Direito Eleitoral, Empresarial, Administrativo e Civil. Autor do livro Tempo mínimo de propaganda eleitoral em rádio e tv, 2020.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ZUNINO NETO, Nelson. Desvio de finalidade no troca-troca da CCJ e na distribuição de emendas.: As consequências jurídicas das manobras do presidente para salvar o seu cargo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5127, 15 jul. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/59146. Acesso em: 27 abr. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!