RESUMO: A pesquisa examina os contornos gerais aplicáveis ao “direito ao esquecimento”, isto é, o direito atribuído a todos de impedir que dados e fatos pessoais, criminosos ou não, que, outrora, tenham sido de conhecimento público, de alguma maneira por atuação de qualquer das mídias de comunicação, sejam rememorados indevidamente. Outrossim, analisa a problemática, levantada por certo setor da doutrina, existente em torno do seu reconhecimento como verdadeiro direito autônomo a ser tutelado pelo Direito – por razões ligadas ao temor de que o seu emprego indiscriminado e abusivo possa servir como indesejável artifício de adulteração da história individual, ou até mesmo coletiva, em escalas de maior dimensão. Nessa esteira, aponta-se a importância deste novel instrumento jurídico de proteção, bem como expõe-se que, dada a delicadeza do tema, tal direito somente pode ser reconhecido (ou não) a partir da verificação de cada caso em concreto, a partir de critérios de ponderação propostos pela doutrina a serem adotados pelo julgador.
Palavras-chave: Direito ao esquecimento. Instrumento autônomo de proteção. Artifício de adulteração da história individual ou coletiva. Problemática. Ponderação.
INTRODUÇÃO
Vivenciamos hoje a chamada “Era da Sociedade da Informação”, decorrente da evolução tecnológica havida nos últimos quarenta anos.
A partir dela, a humanidade foi presenteada com o largo desenvolvimento dos meios de comunicação, bem como com a criação da Internet, ferramenta poderosa que propiciou um estreitamento invisível entre as fronteiras mundiais, potencializando sobremaneira o fenômeno da globalização, iniciado décadas atrás.
Ocorre que, se, por um lado, benefícios foram conquistados, por outro, criou campo fértil para a violação de uma nova faceta da dignidade humana: a memória individual. Pois com a Grande Rede Mundial, tornou-se possível armazenar um sem-número de informações relativas a cada um na sociedade, que podem, hoje, ser facilmente resgatadas por qualquer meio de comunicação.
Nesse contexto, a doutrina vem se propondo, ultimamente, a debater os contornos deste novo direito a ser reconhecido, uma vez que sua compreensão teórica envolve uma sensível colisão entre direitos fundamentais: de um lado, dignidade humana e suas já conhecidas defluências (como intimidade e vida privada); de outro, os igualmente constitucionais direitos às liberdades comunicativas (de expressão e informação, por exemplo).
Em apertada síntese, seus defensores argumentam que tal direito funcionaria de molde a conferir ao ser humano, em determinados casos – e desde que observados alguns critérios mínimos de ponderação –, o condão de gerenciar os fragmentos de sua vida que já não mais se revestissem de interesse público algum em sua divulgação. Por outro lado, alega-se que o tema deve ser tratado com cautela, em vista do temor de que sua construção teórica venha a conduzir a um processo indesejável de adulteração da história individual ou até mesmo coletiva.
Postas tais premissas, a pesquisa analisará, mais detidamente, o direito ao esquecimento, destacando a importância de seu devir para o ordenamento jurídico. Em seguida, abordará a problemática sustentada por alguns a respeito da essência que ele pode ostentar – mecanismo de proteção à dignidade humana ou, ao revés, instrumento de violação às liberdades comunicativas. Por fim, mencionará critérios básicos de ponderação a serem aplicados em cada caso concreto que verse sobre tais situações e enfatizará que somente por meio dessa técnica de decisão judicial torna-se possível dirimir conflitos sobre o tema.
1 O DIREITO AO ESQUECIMENTO COMO FORMA DE PROTEÇÃO À MEMÓRIA INDIVIDUAL
A evolução tecnológica ocorrida nos últimos tempos propiciou ao ser humano deparar-se com experiências ambivalentes. Por um lado, permitiu uma incrível massificação nas formas de comunicação, armazenamento e disponilibidade de dados, bem como o amplo acesso da população mundial a dispositivos eletrônicos de última geração, o que acarretou uma drástica modificação na vida da sociedade global.
Contudo, por uma outra perspectiva, malefícios também foram trazidos à tona, como a permissividade a agressivas devassas à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem das pessoas em proporções incalculáveis – criando campo fértil para as discussões a serem enfrentadas quanto a um direito ao esquecimento como forma de resguardar a memória individual, desde que atendidos certos parâmetros.[1]
Eis então como se põe a questão[2]: liberdade de expressão e suas naturais defluências (liberdades de informação e imprensa), colocadas em rota de colisão num aparente conflito com os direitos (fundamentais) da personalidade, que, como analisado, não puderam ser taxativamente listados nem pelo Código Civil nem pela Constituição Federal ou mesmo por qualquer outra espécie normativo. Considerando que o ser humano evolui, o Direito também deve fazê-lo, de molde a tutelar toda e qualquer maneira de violação à dignidade humana.
Schreiber apresenta o tema da seguinte maneira: “De um lado, é certo que o público tem direito a relembrar fatos antigos. De outro, embora ninguém tenha direito de apagar os fatos, deve-se evitar que uma pessoa seja perseguida, ao longo de toda a vida, por um acontecimento pretérito.”[3]
1.1 Definição do direito ao esquecimento
Presente no direito alienígena sob as rubricas the right to be let alone ou the right to be forgotten (nos EUA), nos países de língua espanhola como o derecho al olvido[4], droit à l’oubli (na França) e como recht auf vergessenwerden (na Alemanha)[5], o direito ao esquecimento – no Brasil, também chamado de “direito de estar só” – caracteriza-se como um reconhecimento jurídico a que a pessoa não venha a ser molestada, com a exposição ao público em geral de atos ou fatos do passado, ainda que verídicos, que não gozem de legítimo interesse público, causando-lhe sofrimentos ou transtornos.[6]
É, como entende Maurmo, um “direito a se retirar do espaço virtual, ou mesmo de outras mídias, informações que não deseja mais compartilhar, ou que lhe causem grave dano existencial”.[7]
Vale dizer, é uma garantia que se deve conferir ao que se vem denominando de superinformacionismo[8], decorrente da intensa massificação dos meios de comunicação proporcionada pelos avanços tecnológicos conquistados pelo ser humano nos últimos 40 anos, que visa a tutelar esta nova forma de violação à dignidade humana, qual seja, o resgate indicriminado de informações, mesmo que verdadeiras, referentes a fatos ocorridos com alguma pessoa há tempos remotos e que não sejam mais minimamente idôneos a conter interesse público na sua exposição ao público.
Em suma, como assinala Farias[9], “é o direito de impedir que dados e fatos pessoais de outrora sejam revividos, repristinados, no presente ou no futuro de maneira descontextualizada”.
1.2 A autonomia do direito ao esquecimento e a dignidade da pessoa humana como fundamento para o seu reconhecimento jurídico
Cabe registrar que o direito ao esquecimento não é, como pode parecer a uma primeira vista – e mesmo sustentado por alguns[10]-[11] –, uma construção jurídica obtida unicamente a partir da mera derivação de outros direitos (fundamentais) da personalidade já existentes e expressamente previstos pelo ordenamento jurídico nacional, como os direitos à intimidade, à vida privada, ao nome, à imagem, entre outros.
O direito ao esquecimento deve ser encarado como um direito autônomo[12]-[13], com âmbito de abrangência próprio e, portanto, dotado de características diferenciadas – muito embora se reconheça que, de fato, somente se afigura possível tratar de direito ao esquecimento, nos termos como os ora delineados, em razão da previsão dos já aludidos direitos.
Afirma-se a autonomia do direito ao esquecimento, desvinculado daqueles outros direitos, comparando-se com o que ocorrera com o direito (fundamental) da personalidade à imagem, que conquistou sua autonomia jurídica, a despeito de, tradicionalmente, ter sido considerado embutido no bojo do direito à honra, que seria, portanto, mais amplo.[14]
Diante então do que se coloca, faz-se necessário deixar assentada a sutil diferença relativa à dimensão da proteção conferida tanto pelo direito ao esquecimento quanto pelos direitos de proteção da privacidade em geral.
Nesse sentido, consigna Pablo Dominguez Martinez:
Em realidade, apesar da aparente confusão inicial, o direito ao esquecimento e à privacidade têm objetos jurídicos de proteção distintos. Enquanto a privacidade visa à proteção de dados pessoais e íntimos contemporâneos, o direito ao esquecimento objetiva a proteção dos dados pretéritos, ou seja, a rememoração indevida de fatos passados e consolidados, que já não tenham qualquer utilidade ou atualidade.[15]
Isto é, diferencia-se o tratamento de um e de outro direito, tomando-se por referência um critério efetivamente temporal em relação aos dados a cuja proteção se reivindica.
Estabelecida a existência da autonomia do direito ao esquecimento a reclamar proteção no ordenamento jurídico – sem perder de vista o entendimento diverso, de quem não assim o considere –, passa-se agora a investigar o fundamento, vale dizer, por que razão tornou-se necessário raciocinar para se concluir que o Direito deve salvaguardar a vontade de um indivíduo em impedir a rememoração de fatos pretéritos que já tenham sido consolidados com o transcurso do tempo.
Fundamenta-se o devir jurídico do direito ao esquecimento a partir da compreensão acerca da dignidade da pessoa humana, assentada no art. 1º, III da CF, condecorada pelo Texto Maior com o status de fundamento de todo o Estado Democrático de Direito.[16]
Bem por isso, assim convencionou o Conselho de Justiça Federal, quando da realização da VI Jornada de Direito Civil: “A tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade da informação inclui o direito ao esquecimento”.[17]
Sabe-se, é bom registrar, que estes enunciados aprovados pelas Jornadas de Direito Civil promovidas pelo Conselho de Justiça Federal não possuem força cogente. No entanto, constituem um seguro roteiro de interpretação do Código Civil de 2002, uma vez que nele congregam diversas gerações de civilistas, também incluindo Ministros do Superior Tribunal de Justiça; Desembargadores; Juízes; Procuradores e Promotores; Advogados e Professores de Direito de todo o Brasil.[18]
Certo é que tentar definir a essência da dignidade da pessoa humana é por demais complexo, dada a fluidez conceitual que caracteriza este valor.[19] No entanto, diz-se que, se por um lado é difícil traduzir o que este valor expressa, fácil se torna afirmar, por outro, que ela, a dignidade humana, é o centro de gravidade ao redor do qual colocam-se todas as normas jurídicas, “enfeixando todos os valores e direitos que podem ser reconhecidos à pessoa humana”.[20]
Barroso assim contribui para a tarefa de traçar o conteúdo mínimo da ideia de dignidade humana:
Grosso modo, esta é a minha concepção minimalista: a dignidade humana identifica 1. O valor intrínseco de todos os seres humanos; assim como 2. A autonomia de cada indivíduo; e 3. Limitada por algumas restrições legítimas impostas a ela em nome de valores sociais ou interesses estatais.[21]
Contextualizando a noção de que a dignidade humana dá suporte à construção intelectual moderna do direito ao esquecimento, tem-se que é indispensável que se reconheça a sua aplicação, como um direito autônomo, já que não expressamente previsto pelo ordenamento, de molde a proteger a condição humana, em seus mais genuínos aspectos e manifestações.[22]
E não poderia mesmo ser diferente, tendo em vista que um dos papéis que são atribuídos ao princípio da dignidade humana é justamente de funcionar como fonte de direitos e deveres – além do papel de atuar como diretriz de julgamento nos casos envolvendo colisão de direitos fundamentais.[23]
1.3 As implícitas manifestações do direito ao esquecimento no ordenamento jurídico brasileiro
Pode-se dizer que o direito ao esquecimento, embora não expressamente previsto em qualquer diploma legal, de há muito é reconhecido pelo ordenamento jurídico brasileiro. Esta é a conclusão a que se pode chegar, tomando como base todos os mecanismos legais de defesa do indivíduo que se baseiam no transcurso do tempo e na impossibilidade de utilização da informação – nas mais diversas áreas e ramos do Direito[24]. Igual afirmação foi formulada pelo Ministro Luís Felipe Salomão, em um emblemático julgado a respeito do direito ao esquecimento que será analisado mais adiante:
O Direito estabiliza o passado e confere previsibilidade ao futuro por institutos bem conhecidos de todos: prescrição, decadência, perdão, anistia, irretroatividade da lei, respeito ao direito adquirido, ato jurídico perfeito, coisa julgada, prazo máximo para que o nome de inadimplentes figure em cadastros restritivos de crédito, reabilitação penal e o direito ao sigilo quanto à folha de antecedentes daqueles que já cumpriram pena (...). Doutrina e precedentes.[25]
No Direito Penal, seus exemplos mais significativos são os da previsão da reabilitação e da anistia – respectivamente, nos arts. 93[26] e 107, II[27] do Código Penal.
Fernando Capez, ao conceituar anistia, inclusive chega a empregar a expressão “esquecimento”. Para o autor, a anistia é a “lei penal de efeito retroativo que retira as consequências de alguns crimes já praticados, promovendo o seu esquecimento jurídico, retirando todos os efeitos penais, principais e secundários, mas não os extrapenais”.[28]
Por outro lado, no tocante à reabilitação, Nucci preleciona: “é a declaração judicial de reinserção do sentenciado ao gozo de determinados direitos que foram atingidos pela condenação (...) e tem por fim estimular a regeneração (do apenado)”[29]. Sobre o instituto, pondera Greco[30] que já não possui mais utilidade prática, devendo ser utilizado, para o mesmo fim, o disposto no art. 202 da Lei de Execuções Penais[31], que, afirma, é mais benéfico ao apenado, por ser menos burocrático, em razão de ser desnecessário qualquer requerimento daquele que visa a se beneficiar do instituto para se reintegrar à sociedade sem o estigma de sua vida pregressa assentado em uma folha de registros criminais.
O direito ao esquecimento é também visualizado no âmbito do Estatuto da Criança e do Adolescente, nos arts. 143[32] e 144[33], em relação a atos criminosos praticados pelo indivíduo quando ainda considerado inimputável. Assim já se manifestou o STJ, ao apreciar o REsp nº 48.278-DF, de relatoria do Ministro Pedro Acioli, em que se decidiu que menor infrator que tenha cumprido medida socioeducativa não pode por este fato ser reprovado em concurso público na fase de investigação social prevista no edital. Asseverou-se que “a presunção de irrecuperabilidade de quem já cometeu delito penal, a par de solapar um dos primados da civilização ocidenteal, jogaria por terra a política criminal da reabilitação e reintegração do delinquente a seu meio social”.[34]
Também no Direito Consumerista permite-se enxergar a aplicação do direito ao esquecimento.[35] Trata-se da previsão de prazo máximo de 05 anos para a manutenção de informações a respeito de consumidores em cadastros restritivos de crédito – art. 43, §§1º e 5º.[36]
Por fim, necessário se faz registrar o disposto no art. 7º, X, da Lei 12.965/2014[37] – que ficou conhecida como “Marco Civil da Internet”. Invocando-o, possibilita-se requerer a exclusão definitiva dos dados pessoais que se tiver fornecido a determinada aplicação de Internet, ressalvados os casos previstos legalmente de guarda obrigatória de tais registros.[38]
Como se demonstrou, o direito ao esquecimento encontra-se espraiado ao longo do Direito, em disposições diversas que protegem o indivíduo baseando-se no transcurso do tempo e na impossibilidade de se divulgar um determinado tipo de conteúdo informativo sobre uma pessoa. Desta maneira, pode-se dizer que tal direito não é exatamente novo e inusitado, mas sim, que se originou de forma autônoma, tendo como fundamentos não apenas a dignidade humana, mas também todo o conjunto normativo, de maneira implícita e reflexa.