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Violação lícita ao domicílio.

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Agenda 23/05/2018 às 13:40

Análise da jurisprudência

Na análise jurisprudencial do instituto, faz-se mister trazer à baila a mais recente decisão-paradigma do Supremo Tribunal Federal, o Recurso Extraordinário 603616/RO[37] com repercussão geral, de relatoria do ministro Gilmar Mendes, julgado em 5.11.2015, que trata especificamente dos casos de invasão domiciliar lícita por crime permanente. Estabelecendo um pano de fundo à discussão, o ministro relator faz uma análise comparada com diversas constituições (alemã, francesa, espanhola, chinesa, etc.), assim como pelas constituições brasileiras pretéritas, a fim de demonstrar a inviolabilidade do domicílio como regra, mas que também comporta exceções, como nos casos de flagrante delito[38]. Destaca que a jurisprudência dominante até o momento defende a invasão de domicílio lícita nos casos de flagrante delito em crime permanente, sem ressalvas[39]. Pretende, todavia, superar esse entendimento para estabelecer critérios mais rigorosos.

Na concepção do ministro, a interpretação dominante do instituto à época enseja diligências arriscadas por parte dos policiais, uma vez que não há certeza quanto ao sucesso da empreitada, especialmente no crime de tráfico de drogas. Assevera o relator, in verbis:

Considerando o entendimento atual, o policial ingressará na casa sem a certeza de que a situação de flagrante delito, de fato, ocorre. Se concretizar a prisão, poderá dar seu dever por cumprido. Em caso contrário, terá, ao menos em tese, incorrido no crime de violação de domicílio, majorado pela sua qualidade de funcionário público, agindo fora dos casos legais – art. 150, §2º, do CP[40].

Essa situação delicada, segundo o relator, poderia ter dois finais: a absolvição do policial por estrito cumprimento do dever legal putativo, violando o núcleo essencial da garantia fundamental ao domicílio, ou condenação pelo art. supracitado, punindo uma autoridade que cria fazer seu dever[41].  Com base em tratados de direitos humanos e decisões de tribunais de outros países e internacionais, o ministro propõe o necessário controle a posteriori da atuação policial com base nas exceções previstas constitucionalmente – uma vez que o controle a priori se dá mediante mandado judicial-, dentre elas o flagrante delito[42]. Dessa forma, mitigar-se-ia a atuação policial arbitrária, porquanto o controle se daria nas (fundadas) razões da atuação e não nos seus resultados. Ressalva, contudo, o relator, que a premissa de “fundadas razões” é subjetiva ao ponto de demandar ampla lapidação jurisprudencial para sua objetivação: “a mudança cria espaço para a formação de jurisprudência acerca dos limites da atuação policial, possibilitando o desenvolvimento e a concretização da garantia, a partir da avaliação jurisprudencial dos casos concretos”[43]. Ante todo o exposto, o ministro relator Gilmar Mendes firma o seguinte entendimento:

[...] a entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas a posteriori, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade, civil e penal do agente ou da autoridade, e da nulidade dos atos praticados[44].

Em suma, é possível extrair da referida decisão a pretensão de estabelecer um mínimo de rigor nas diligências policiais, em detrimento de arbitrariedades. Não há fixação de critérios objetivos, nem houve tal pretensão, porquanto preconiza o escrutínio jurisprudencial casuístico. Alguns julgados recentes do STF perfilham o entendimento do RE 603616/RO, ao ponto de anular o processo, como é o caso do Recurso Extraordinário Com Agravo 1.045.368/RS[45], julgado em 22.5.2017, de relatoria do ministro Gilmar Mendes, no qual prevê, desde a segunda instância estadual (TJRS), no qual o réu fora absolvido, visto que:

[...]No caso, o réu estava no pátio da sua casa, quando os agentes estatais decidiram abordá-lo. Os policiais mencionaram apenas ter informações sobre eventual tráfico perpetrado pelos réus. Não há referência à prévia investigação, monitoramento ou campanas no local. Acerca da tentativa de abordagem, não há menção a qualquer atitude suspeita, externalizada em atos concretos, movimentação típica de comercialização de drogas, ato suspeito de entrega sub-repticia de substância a terceiro. Apenas avisaram o réu, dentro do pátio, e resolveram abordá-lo [...][46]

Haja vista que não houve fundadas razões para ingresso no domicílio do réu, permaneceu o entendimento do TJRS.

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Contudo, o entendimento anterior à referida decisão ainda tem prevalecido em julgados dos Tribunais de Justiça, do Superior Tribunal de Justiça e até mesmo em decisões do próprio STF. Merece destaque o HC 139.677/AM[47], de relatoria do ministro Dias Toffoli, julgado em 12.2.2017, que perpetua:

Também não vinga a tese de ilegalidade da prova obtida por violação de domicílio do paciente, pois, ‘[é] dispensável o mandado de busca e apreensão quando se trata de flagrante de crime permanente, podendo-se realizar as medidas sem que se fale em ilicitude das provas obtidas.’(RHC nº 121.419/SP, Segunda Turma, Relator o Ministro Ricardo Lewandowski, DJe de 17/10/14)[48].

Ou seja, houve completa ignorância do RE 603616/RO, porquanto não se questionou as fundadas razões através das quais os policiais os policiais efetuaram a devida diligência.

Ademais, há ainda que se verificar a atuação jurisprudencial baseada no mesmo RE 603616/RO, a fim de verificar que a subjetividade preconizada neste pode ensejar a relativização do que se entende por “fundadas razões”. É o caso do RE1.027.030/DF[49] com agravo, de relatoria da ministra Rosa Weber, julgado em 27.4.2017, em que permaneceu o entendimento do TJDFT, in verbis:

Por seu turno, a Corte de origem registrou: ‘[...] Ao ver a viatura policial, o apelante, que estava na rua, correu para dentro de casa, o que motivou a ação dos milicianos [...]’. O entendimento adotado no acórdão recorrido não diverge da jurisprudência firmada no âmbito deste Supremo Tribunal Federal, no sentido de que, havendo fundadas razões que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, é lícita a entrada forçada em domicílio sem mandado judicial [...]. [50]

Ou seja, nesse caso configurou fundadas razões o célere adentramento do réu em seu domicílio. Não houve qualquer prova anterior nem diligência para verificação de que ali constituía o crime de tráfico de drogas, o que mostra ser desarrazoado o entendimento firmado na referida decisão, pois encontra óbice no próprio RE 603616/RO, que preconizou o peso do termo “fundadas razões”, como alhures exposto.

Em se tratando de julgados do Superior Tribunal de Justiça, não se verifica entendimento similar ao firmado no RE 603616/RO, como se vislumbra no HC nº 378.323 – SC (2016/0296314-1)[51], de relatoria do ministro Felix Fischer, julgado em 18.11.2016, no qual firmou-se o entendimento de que:

No presente caso, o entendimento adotado no v. acórdão ora impugnado está em consonância com julgados desta Corte Superior, no sentido de que o crime de tráfico de drogas é permanente - na modalidade guardar ou ter em depósito -, configurando-se o flagrante enquanto o entorpecente estiver em poder do infrator. Incide, portanto, a excepcionalidade do art. 5º, inciso XI, da Constituição Federal.[52]

O mesmo se verifica no REsp nº 1.557.612-SP (2015/0243270-4)[53], de relatoria do ministro Joel Ilan Paciornik, julgado em 1.2.2017, no qual firmou-se o entendimento de que:

No tocante à alegada ilicitude da prova pela invasão de domicílio, no presente caso não se vislumbra a alegada violação do art. 241 do CPP, porquanto ‘é assente nesta Corte Superior o entendimento de que por ser permanente o crime de tráfico de entorpecentes, desnecessário tanto o mandado de busca e apreensão quanto autorização para que a autoridade policial possa adentrar no domicílio’. Precedentes (HC 356.810/SC, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, DJe 26.9.2016)[54]

Por fim, ainda consubstanciando aos dois entendimentos supracitados, tem-se o HC nº382.306-RS (2016/0326291-6)[55], de relatoria do ministro Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 13.12.2016, que firmou o seguinte:

Em um juízo de cognição sumária, não visualizo manifesta ilegalidade no ato ora impugnado a justificar o deferimento da medida de urgência, pois, ao menos, em princípio, as provas obtidas a partir do adentramento do domicílio do paciente sem o correspondente mandado judicial não se mostram ilegais, pois, nos termos do que vem decidindo esta Corte ‘tratando-se de flagrante por crime permanente, no caso, por tráfico de drogas, desnecessário tanto o mandado d busca e apreensão quanto a autorização para que a autoridade policial possa adentrar no domicílio do paciente, conforme previsto no 5º, XI, da CF’ (HC n. 352.811/SP, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 28/06/2016, DJe 01/08/2016)[56].

Ou seja, pelo exposto se verifica que no STJ há predominância do entendimento firmado antes do advento do RE 603616/RO. Não há sequer a análise minuciosa das fundadas razões que levaram a diligência policial a invadir o domicílio dos réus.

A partir de todo o exposto, depreende-se que o advento do RE 603616/RO representa um importante passo para a mitigação da atuação policial arbitrária. Contudo, sua aplicação ainda não é firme nos tribunais superiores, incluindo o próprio STF. Ademais, e levando em conta a importância desse entendimento, é imprescindível deixar claro que o termo “fundadas razões” peca pela vagueza e subjetividade, o que dá ensejo a interpretações diversas, não evitando em todos os casos a correta diligência policial, que seria embasada no controle a priori como regra – ou seja, com o mandado judicial. Conclui-se ser mister a adoção de um novo critério, um novo entendimento mais objetivo, que vise representar o caráter excepcionalíssimo das ressalvas constitucionais à inviolabilidade do domicílio, como alhures exposto.

Dessa forma, tratando-se de crime de tráfico de drogas, há que se verificar a intensidade de sua prática, consubstanciado à fundada razão, aqui empregada no sentido de elevada materialidade probatória, para que se valha das exceções dispostas. Nesse sentido, deve haver o resguardo do pequeno traficante, aplicando-se o controle a priori, porquanto a adoção daquele critério caberia mais às grandes articulações da indústria do tráfico. Ou seja, em casos de fortes indícios de movimentação de grandes quantidades de drogas. Isso porque o próprio crime de tráfico de drogas possui uma problemática intrínseca, que se situa nos casos de superlotação carcerária e discriminação das populações negra e periférica, que tem como origem o já tão estigmatizado pequeno traficante.

Sobre o autor
Felipe Antônio Araújo

Graduando em Direito pela Universidade de Brasília.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARAÚJO, Felipe Antônio. Violação lícita ao domicílio.: Análise dos casos de flagrante delito em crime permanente com enfoque no tráfico de drogas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5439, 23 mai. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/64876. Acesso em: 22 dez. 2024.

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