3. REVISÃO CONTRATUAL DO FINANCIAMENTO DE VEÍCULOS AUTOMOTIVOS
A massificação das relações de consumo, principalmente a partir da utilização de contratos de adesão, fez surgir uma série de arbitrariedades por parte dos fornecedores. Este problema resultou numa onda de processos judiciais, com base na vulnerabilidade reconhecida pelo Código de Defesa do Consumidor, com o objetivo da revisão contratual, buscando sanar as irregularidades que prejudicam os consumidores.
Dentre os objetos de revisão contratual se destacam os negócios jurídicos que envolvem os financiamentos de veículos automotivos. Pode-se afirmar que este fato se deve por dois motivos principais que o ensejam: o grande número de parcelas acordadas e no valor em que são embutidas diversas taxas e outras cobranças que são consideradas abusivas.
No entanto, a revisão contratual vem a prejudicar o ato jurídico perfeito, que por meio do contrato firmado entre as partes pode vir a excluir o princípio da obrigatoriedade, de forma parcial ou total, que é inerente à matéria contratual. Logo, este tema será objeto de análise deste Capítulo.
3.1. Revisão Contratual
A base dos contratos é a vontade das partes em realizar um negócio jurídico. No entanto, não basta isso para que um negócio jurídico possa produzir efeitos. É necessária a vinculação a uma série de regras e princípios, sem os quais o negócio pode ser considerado nulo, total ou parcialmente.
Nesse contexto, Cordeiro explica:
É tema comum falar em crise do contrato e da teoria contratual para responder às exigências da sociedade atual. A insuficiência do modelo jurídico tradicional do contrato, abstrato, patrimonialista e calcado exclusivamente na vontade das partes, pode levar a duas respostas possíveis: uma seria a sua desconsideração, como objeto de estudo, como se a humanidade tivesse alcançado um estágio na vida negocial que prescindisse por completo da definição jurídica de contrato; a segunda seria a sua reconstrução, isto é, buscar um novo significado ao contrato (e ao corpo de princípios que o informam), de modo a revitalizá-lo e capacitá-lo a enfrentar os desafios da contemporaneidade. A primeira resposta não é adequada: o contrato é fenômeno econômico, social e jurídico, cada vez mais importante na sociedade massificada atual. a segunda alternativa é a viável. Nesse sentido, a crise do contrato não é a do instituto em si, mas de um modelo contratual que não mais corresponde à realidade atual. É preciso, então, redimensionando seus fundamentos principiológicos e renovando as bases teóricas. (CORDEIRO, 2009, p. 01).
De acordo com esse autor, o contrato cuida de um fenômeno social, jurídico e econômico, ou seja, é o meio pelo qual são realizados negócios entre as partes, firmando as vontades por um instrumento jurídico, que determina os direitos e as obrigações àqueles que dele participam. Logo, para que as relações entre as pessoas, jurídicas ou físicas, se revistam de segurança, utiliza-se o contrato.
Contudo, é fato que existe uma crise na teoria contratual, já que as necessidades para a realização dos negócios jurídicos mudaram ao longo dos tempos. Isso se deve pela realidade que consiste na sociedade não ser estática, ou seja, não possui seus contornos estabelecidos por definitivo e, por conseguinte, tem as suas necessidades em constante evolução.
A realidade da sociedade atual não possui na teoria contratual todas as situações problemáticas, e as possíveis soluções, que podem nascer a partir da realização de um negócio jurídico. Isso significa que, das muitas relações negociais existentes, a axiologia dos contratos não converge com os princípios e objetivos do Estado, firmados constitucionalmente, a serem norteadores para a valorização da pessoa e na solidariedade social. Assim, é gerada a necessidade da revisão contratual, para que o objeto desta se adeque às novas realidades.
Um ponto relevante abordado pela Constituição Federal de 1988 é a determinação de que a ordem econômica nacional deve observar a defesa do consumidor, reconhecidamente considerado como a parte vulnerável das relações de consumo. Reza o art. 170 da Constituição Federal:
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
I - soberania nacional;
II - propriedade privada;
III - função social da propriedade;
IV - livre concorrência;
V - defesa do consumidor;
VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação;
VII - redução das desigualdades regionais e sociais;
VIII - busca do pleno emprego;
IX - tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País.
Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei (grifo nosso) (BRASIL, 2013).
O dispositivo constitucional aludido demonstra que a ordem econômica deve se pautar em princípios que venham a considerar a dignidade humana e a justiça social. Para tanto, dentre os limites impostos ao crescimento econômico, e consequentemente às relações de consumo, se encontra a defesa do consumidor.
O art. 5º, inciso XXXII, da Carta Política vigente, estabelece como direito individual e coletivo a promoção pelo Estado da defesa dos direitos dos consumidores, o que se materializa pelo Código de Defesa do Consumidor, instituído pela Lei nº 8.078 de 11 de setembro de 1990.
Nesse sentido, cabe destacar as seguintes considerações:
As normas de ordem pública que estabelecem valores básicos e fundamentais de nossa ordem jurídica são normas de direito privado, mas de forte interesse público, daí serem indisponíveis e inafastáveis através dos contratos. O Código de Defesa do Consumidor é claro, em seu art. 1º, ao dispor que suas normas se dirigem à proteção prioritária de um grupo social, os consumidores, e que se constituem em normas de ordem pública, inafastáveis, portanto, pela vontade individual. São normas de interesse social, pois as leis de ordem pública são aquelas que interessam mais diretamente à sociedade que aos particulares (MARQUES, 2008, p. 53 apud OLIVEIRA, 2009, p. 02-03).
De acordo com o entendimento exposto, o Código de Defesa do Consumidor emana da necessidade estatal de garantir a ordem pública nas relações de consumo. Voltadas para o interesse social, as normas deste instrumento legal estabelecem valores básicos e fundamentais, determinados constitucionalmente.
Assim, o Código de Defesa do Consumidor se constitui de normas inafastáveis para a realização e cumprimento dos contratos, inclusive no que tange àqueles cujo objeto é o financiamento de veículos automotivos. É diante dessa concepção que o Estado passa a intervir nas relações de consumo de maneira legítima, visando, inclusive, o equilíbrio contratual.
Almeida afirma:
Se existe consenso no que se refere ao desequilíbrio nas relações de consumo, estando o consumidor “em uma posição de debilidade e subordinação estrutural em relação ao produtor do bem ou serviço de consumo”, nada mais justo e correto do que buscar restabelecer o equilíbrio desejado quer protegendo o consumidor, quer educando-o, quer fornecendo-lhe instrumentos e mecanismos de superação desses desequilíbrios. Com isso, as relações de consumo poderão cumprir seus objetivos, com maior harmonia e redução dos conflitos. (ALMEIDA, 2009, p. 35).
A intervenção do Estado nas relações de consumo deve ocorrer quando, pela debilidade e subordinação do consumidor, isto é, a sua vulnerabilidade, face aos fornecedores, é capaz de gerar um desequilíbrio na relação entre ambos. O Estado não apenas protege o consumidor, mas também garante a ordem pública. Ou seja, este modo de atuação estatal busca proteger ao indivíduo consumidor, ao mesmo tempo em que à sociedade como um todo, resguardando o equilíbrio contratual.
Por conseguinte, a não obediência que insere em contratos que não garantam o equilíbrio contratual enseja a revisão dos contratos já firmados. Marques esclarece:
Sendo assim, a mais importante contribuição destes estudos à nova teoria contratual brasileira é a criação de um modelo teórico contínuo que engloba as constantes renegociações e as novas promessas, bem destacando que as situações externa e interna de catividade e interdependência dos contratos fazem com que as revisões, novações ou renegociações contratuais naturalmente continuem ou perenizem a relação de consumo, não podendo estas, porém, autorizar abusos da posição contratual dominante ou validar prejuízos sem causa ao contratante mais fraco ou superar deveres de cooperação, solidariedade e lealdade que integram a relação em toda a sua duração. (MARQUES, 2011, p. 100).
A inexistência de equilíbrio contratual face às novas características das relações de consumo dá ensejo a situações que busquem redesenhar o contrato já firmado. Entre essas possibilidades, estão a revisão, a renegociação e a novação, sendo que a primeira hipótese é a razão e objeto desta Pesquisa.
Pode-se afirmar, após analise da autora ora citada, que a revisão contratual é uma forma de sanar os abusos da relação contratual dominante, ou seja, por parte dos fornecedores. Os deveres de cooperação, solidariedade e lealdade, incorporados no reconhecimento das novas necessidades das relações de consumo firmadas em contratos são o fundamento para que seja considerada a revisão contratual.
A ideia da busca pelo equilíbrio contratual, por meio da revisão dos contratos, se baseia na equidade entre as partes envolvidas. Mesmo diante do princípio do pacta sunt servanda, ou seja, o contrato se torna lei entre as partes, o contrato pode passar por uma revisão que busque aplicar preceitos que venham a concretizar princípios e valores instituídos constitucionalmente:
A gama variada de situações as quais a revisão contratual foi chamada a atuar exige dos estudiosos uma reflexão em torno da flexibilização do pacta sunt servanda. Nesse sentido, gradativamente foi sendo admitida a revisão contratual fora dos limites do fenômeno da alteração das circunstâncias, aceitando-se a revisão por circunstâncias contemporâneas à contratação, tais como a lesão e as cláusulas abusivas. No entanto, é possível alcançar mais: pode-se revisar o contrato a partir de princípios e valores fundamentais expostos na Constituição da República. A revisão contratual, assim, deve ser encarada como grande instrumento dogmático para aplicação dos valores constitucionais no âmbito contratual. (CORDEIRO, 2009, p. 05).
A revisão contratual é então possível quando se busca corrigir lesões e cláusulas abusivas que violam princípios e valores fundamentais estabelecidos na Constituição Federal. A flexibilização do pacta sunt servanda se origina gradativamente na nova concepção da matéria contratual de modo a alterar circunstâncias inerentes à contratação, inclusive às relativas no momento da própria formação do contrato.
No que se refere aos contratos de financiamento de veículo automotivo, uma particularidade deve ser observada, seja ela a longa duração. Marques (2009, p. 106) assenta o entendimento de que os contratos de característica de longa duração exigem, atualmente, que os instrumentos disponíveis nos modelos tradicionais de contrato ensejam a intervenção do Estado por meio de regulamentação especifica do legislador ou pela ação reequilibradora do Judiciário.
Portanto, a revisão contratual tem sido concebida pelo poder Judiciário a partir da necessidade de restauração do equilíbrio contratual. Determinados abusos provenientes de cláusulas abusivas são o principal motivo que resultam na necessidade da revisão contratual como resposta do Estado no seu dever de intervenção na ordem econômica para proteção dos consumidores.
A revisão contratual de financiamento de automóveis se encontra diante da massificação e da continuidade do contrato dos clientes. É nesse sentido que esse instrumento se apresenta, buscando a equidade entre as partes envolvidas diante da importância econômica e social que esse tipo de contrato constitui.
3.2. Análise Jurisprudencial
Diante do fato de que é por meio do Poder Judiciário que são intentadas as ações de revisão de contratos de financiamento automotivo, cabe analisar algumas jurisprudências que apresentam decisões relevantes sobre o tema.
Assim decidiu o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo sobre recurso de apelação interposto em Ação de Revisão Contratual cumulado com Reparação de Danos:
EMENTA: Arrendamento mercantil de bens móveis. Ação de revisão contratual, julgada parcialmente procedente em Primeiro Grau. 1. O só fato de se estar diante de contrato de adesão, não autoriza o reconhecimento de nulidade de cláusulas consideradas abusivas pelo consumidor, que no momento da contratação teve plena condição de questionar o valor finalmente ajustado, bem como de avaliar se as prestações mensais ajustadas se encaixavam em seu orçamento, não havendo se falar em aplicação dos artigos 46 e 52, do CDC. 2. Tarifas que foram livremente pactuadas no contrato, em conformidade com a Resolução nº 3.693/2009 do BACEN, inexistindo abuso ou onerosidade excessiva, entendimento já consolidado na jurisprudência do C. Superior Tribunal de Justiça. Cobrança que, portanto, apresenta-se legítima. 3. Além disso, é de se afirmar permitida a cobrança, nesse tipo de relação negocial, de juros acima de 12%, consoante pacífica jurisprudência de nossos Pretórios, notadamente no Egrégio Superior Tribunal de Justiça. 4. Alegação do autor de falsidade da assinatura que lhe foi atribuída na adesão ao “Seguro Proteção Financeira”. Reparação dos danos materiais pelo banco réu. Ato que gerou mero dissabor não passível de reparação. 5. Negaram provimento ao recurso. (ÁLVARES, on line).
O julgamento da presente ementa de Apelação Cível apresenta o inteligente entendimento de que existem limitações à possibilidade de revisão contratual no caso de financiamento de veículos automotivos. Ele se fundamenta no fato de que não é suficiente o negócio ter se dado por meio de contrato de adesão para que suas cláusulas sejam consideradas abusivas.
Neste caso o judiciário coloca que o contrato de adesão não é por si só causa de nulidade do negócio, já que apesar das cláusulas terem sido impostas pelo fornecedor, teve o consumidor oportunidade de conhecê-las e por fim aceitá-las, inclusive sobre o valor das prestações.
O abuso ou a onerosidade excessiva foram desconfigurados diante do atendimento de Resolução elaborada pelo Banco Central, tornando a cobrança legítima em todos os aspectos. Coloca-se ainda que o autor alega falsidade de sua assinatura na adesão ao “Seguro Proteção Financeira”, pedido que também foi negado não consistindo em razão de reparação por danos morais.
Após a análise dessa decisão, fica claro que a possibilidade de revisão contratual pelo Judiciário de negócios que envolvem o financiamento de veículos automotivos, que no caso foi na modalidade de arrendamento mercantil ou leasing, não se persevera senão em efetivas cláusulas abusivas, que venham configurar a onerosidade excessiva do contrato.
A revisão contratual é passível de análise judiciária, contudo, os direitos do consumidor que se alega lesado devem se fundar em fatos legítimos e no direito que a ele foi propiciado. Além disso, ressalta-se que as relações contratuais devem ser revestidas de segurança jurídica, sob pena de prejuízos a ordem jurídica e econômica.
Por outro lado, pode-se verificar que há possibilidade de deferimento no pedido de revisão contratual no financiamento de veículos, quando assim o magistrado entender. Segue decisão de Apelação Cível julgada pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal, que mantém decisão monocrática em favor do consumidor:
EMENTA: DIREITO DO CONSUMIDOR E PROCESSUAL CIVIL. REVISÃO CONTRATUAL. FINANCIAMENTO DE AUTOMÓVEL. JUROS REMUNERATÓRIOS CUMULADOS COM JUROS MORATÓRIOS E MULTA. CUMULAÇÃO INDEVIDA. 1. A COMISSÃO DE PERMANÊNCIA CONSTITUI ENCARGO INCIDENTE QUANDO CONSTITUÍDA A MORA, APRESENTANDO O CARÁTER MÚLTIPLO DE ATUALIZAR E REMUNERAR A MOEDA, NÃO PODENDO HAVER SUA CUMULAÇÃO COM JUROS DE MORA, MULTA E CORREÇÃO MONETÁRIA. 2. CONSTATADA A COBRANÇA DE JUROS REMUNERATÓRIOS, FAZENDO AS VEZES DE COMISSÃO DE PERMANÊNCIA, CUMULADA COM ENCARGOS MORATÓRIOS OUTROS, DEVE-SE AFASTAR DO CONTRATO PREVISÃO DESSA NATUREZA. 3. RECURSO NÃO PROVIDO. SENTENÇA MANTIDA. (ROSTIROLA, on line).
A decisão exposta considera as alegações do consumidor que afirmam ter no contrato cláusulas abusivas. O tribunal, por sua vez, assim entende, face à existência da previsão de cumulação indevida por meio de juros remuneratórios. Essa é uma prática proibida às fornecedoras deste serviço, configurando uma forma de desequilíbrio contratual.
Isto exposto resta afirmar que os contratos de financiamento automotivo podem ser objetos de revisão pelo Judiciário quando então é configurado abuso pela parte mais forte do contrato, em prejuízo do consumidor.
O pacta sunt servanda é o instrumento que garante o ato jurídico perfeito constituído da vontade das partes no estabelecimento de direitos e obrigações quando do contrato. Isso significa, que a segurança jurídica se faz plena quando os contratos se revestem de regras legitimas e não proibidas pela regularização.
Esse entendimento vale tanto para o contrato de adesão como para outras formas; contudo, é pelo contrato de adesão que geralmente se realiza o financiamento de veículos automotivos nas três modalidades anteriormente analisadas, sendo elas o consórcio, o leasing ou o crédito direto ao consumidor.
No entanto, apenas quando há presente cláusulas no contrato que proporcionem o desequilíbrio da relação contratual é que se torna possível a revisão contratual pelo Judiciário, que agirá em nome do Estado e pelos poderes investidos, em prol da ordem pública, da dignidade humana e da justiça social.
3.3. Segurança Jurídica e Princípio da Obrigatoriedade Face à Revisão Contratual dos Financiamentos de Veículos Automotivos
A Constituição da República Federativa do Brasil estabelece uma série de direitos fundamentais, individuais e coletivos. Conhecida como ‘Constituição Cidadã’, a Carta Política vigente foi elaborada em meio a um período de redemocratização da afirmação de direitos sob uma perspectiva que venha a considerar a dignidade da pessoa humana e a busca pela justiça social.
Dessa forma, a interpretação das normas deve ser realizada considerando tais preceitos. Logo, ao determinar que a lei não prejudique o ato jurídico perfeito, a Constituição, em seu art. 5º, inciso XXXVI, almeja não apenas garantir a segurança jurídica para a realização de negócios, mas a manutenção da ordem pública.
Pode-se afirmar, inclusive, que a segurança jurídica, no que tange ao tema abordado, visa assegurar a liberdade das partes em contratar e, por conseguinte, garantir que os envolvidos no contrato cumpram com as obrigações assumidas, nos termos que sejam conexos com a lei.
Contudo, Khouri assevera:
Se a ideia de contrato sempre se encontrou vinculada ao valor segurança jurídica, admitir que, posteriormente à sua celebração, ele possa ser modificado ou mesmo não ser cumprido é questão sobre a qual já se debruçam o direito canônico, através da velha cláusula medieval ‘rebus sic stantibus’, e os liberais, e que ainda permeia os ordenamentos jurídicos contemporâneos. No direito alemão e no português, fala-se no problema gerado pela alteração das circunstâncias. No francês, fala-se em alteração pela imprevisão. Já o ordenamento jurídico brasileiro, seguindo a orientação do Código Civil italiano, fala em onerosidade excessiva decorrente de fato superveniente. (KHOURI, 2006, p. 01).
Nota-se que a segurança jurídica acerca de um contrato deve existir nos limites da ideia que compõe a cláusula de rebus sic stantibus, ou seja, “desde que as coisas permaneçam assim” (CUNHA, 2011, p. 250), com origem no direito canônico e que atualmente persevera. Isso significa que a possibilidade de resolução ou modificação dos contratos, por meio da revisão, se deve a um fato superveniente que venha a gerar o desequilíbrio contratual.
O ordenamento jurídico brasileiro adota este posicionamento no Código Civil de 2002 nos seguintes dispositivos:
Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação.
Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.
Art. 479. A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar equitativamente as condições do contrato.
Art. 480. Se no contrato as obrigações couberem a apenas uma das partes, poderá ela pleitear que a sua prestação seja reduzida, ou alterado o modo de executá-la, a fim de evitar a onerosidade excessiva (BRASIL, 2013).
No que tange ao contrato de financiamento de veículos automotivos a revisão contratual deve ser fundamentada nos dispositivos demonstrados, além das determinações do Código de Defesa do Consumidor. Enquanto o artigo 317 do Código Civil se refere à rebus sic stantibus, isto é, a superveniência de fato que venha a tornar impossível a execução do contrato, os arts. 478, 479 e 480 da mesma norma são relacionados à onerosidade excessiva. Na mesma linha, o art. 6º, inciso V, do Código de Defesa do Consumidor prescreve: “a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas” (BRASIL, 2013).
Dessa forma, pode-se afirmar que os contratos de financiamento de veículos automotivos poderão ser objetos de revisão, pautados na superveniência ou na onerosidade excessiva, ou, como a doutrina chama de “onerosidade excessiva superveniente”, conforme alude Khouri (2006, p. 01).
Contudo, como já foi analisado, da matéria contratual se emana o princípio da obrigatoriedade, que vem a ser elucidado por Marques, diante da perspectiva atual dos contratos:
Na visão tradicional, a força obrigatória do contrato teria seu fundamento na vontade das partes. Uma vez manifestada essa vontade, as partes ficariam ligadas por um vínculo, donde nasceriam obrigações e direitos para cada um dos participantes, força obrigatória esta reconhecida pelo direito e tutela judicialmente. A nova concepção de contrato destaca, ao contrário, o papel da lei. É a lei que reserva um espaço para a autonomia da vontade, para autorregulamentação dos interesses privados. Logo, é ela que vai legitimar o vínculo contratual e protegê-lo. A vontade continua essencial à formação dos negócios jurídicos, mas sua importância e força diminuíram, levando à relativização da noção de força obrigatória e intangibilidade do conteúdo do contrato. (MARQUES, 2011, p. 275-276).
De acordo com a autora supra, as necessidades da sociedade atual ensejaram uma nova concepção acerca da obrigatoriedade dos contratos, resultando numa relativização do ‘pacta sunt servanda’. Baseada na vontade das partes, aquele que firmava um contrato com ele se vincularia nos direitos e obrigações definidos. Porém, este princípio perdeu sua força, prejudicando a intangibilidade das cláusulas contratuais.
Assevera-se que o princípio da obrigatoriedade não deixou de existir, até porque a segurança jurídica é imprescindível para a manutenção da ordem econômica. Todavia, reconhecida a vulnerabilidade do consumidor nas relações de consumo atuais, se fez necessário um novo entendimento sobre a obrigatoriedade contratual. Ou seja, diante da onerosidade excessiva superveniente, oriunda das cláusulas abusivas, a obrigatoriedade se desfaz no que as refere, desde que reconhecida judicialmente.
Nessa linha, Oliveira tece as seguintes considerações:
O contrato deve obedecer às diretrizes normativas existentes ao tempo da sua celebração. No direito pátrio, a consagração desse postulado abriga-se no art. 5º, XXXVI, da Constituição da República, preceito legal taxativo quanto à invulnerabilidade do ato jurídico perfeito. Mesmo num cenário jurídico pautado pelo dirigismo contratual e pela relativização dos princípios tradicionais dos contratos, não se pode atropelar a garantia constitucional do ato jurídico perfeito e permitir que a lei nova possa de qualquer forma regular pactos firmados antes da sua edição. As normas constitucionais sobrepõem-se a quaisquer outras de escalão hierárquico inferior ou a razões de conveniência social, de modo que não podem ser desrespeitadas sob pretexto de interpretação engenhada com vistas à proteção de interesses legítimos da sociedade. Nessa ordem de ideias, estando validamente concebido o contrato, ato jurídico perfeito por excelência, a lei nova não serve à disciplina de causas ou efeitos. Vale ressaltar que o primado constitucional do ato jurídico perfeito não faz nenhuma distinção quanto à natureza da lei nova que de alguma forma inova no regramento legal dos contratos antes celebrados; por via de consequência, nem a chamada lei de ordem pública tem o condão de contornar a óbice que emana da Constituição. (OLIVEIRA, 2009, p. 01-02)
Portanto, há de se considerar a existência do ato jurídico perfeito. A partir de firmada a relação contratual, o instrumento do negócio jurídico está protegido pela segurança constitucional, que jamais se insere em contratos firmados antes do Código de Defesa do Consumidor, instituído em 1990. A norma que protege os consumidores contra abusos dos fornecedores que se aproveitam da vulnerabilidade dos primeiros se constitui numa forma de intervenção estatal que apresenta meios para isso.
A revisão contratual nos financiamentos de veículos automotivos é prevista pelo Código Civil e pelo Código de Defesa do Consumidor. Contudo, não deve ser utilizada ferindo o ato jurídico perfeito. As arbitrariedades contratuais desconstituem apenas a obrigatoriedade das cláusulas abusivas, se assim entender o Judiciário.