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A colisão de normas na Suprema Corte dos Estados Unidos

Agenda 14/08/2019 às 17:06

Examina-se como a Suprema Corte dos Estados Unidos resolve os conflitos de diversos direitos fundamentais aplicáveis ao mesmo caso concreto.

AS ORIGENS DO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE

 

 A partir dos escritos de um dos principais legisladores da Revolução Francesa, surgiu a ideia de um órgão de controle para remediar o sentimento de desconfiança jacobina em desfavor dos tribunais do Ancien Regime e para impedir a ditadura do Poder Legislativo.

Preocupado com a postura abusiva ilimitada tomada em nome da soberania popular pela Assembleia Legislativa, Sieyes defendeu, na Convenção Nacional de 18 de Thermidor, do Ano III da República, a criação de um Conselho Constitucional responsável para aferir a constitucionalidade das leis que estavam supostas a obedecer à Constituição.

O jurista francês enfatizou a ideia de que este tribunal especializado localizar-se-ia de forma mais adequada em local diferente do Judiciário, Executivo e Legislativo, dada as consequências políticas advindas de sua posição de preeminência no Estado.

De acordo com Sieyes, uma vez que as leis dos Poderes Constituídos dependem sempre das Leis Fundamentais, então, para se avaliar o acordo ou o desacordo de uma lei comum em face da Lei Maior, um Júri Constitucionário deveria ser eleito, conforme previsto na Constituição.

Desta maneira, ao se dar à Constituição um superpoder de fato, o Júri Constitucionário tornaria o seu funcionamento mais democrático, porque se permitiria rever e corrigir as interpretações falsas ou duvidosas da Lei Fundamental.

O Jurie Constitutionaire de Sieyes, inspirado em Rousseau[1], era formado por representantes do povo com competência para se pronunciar sobre violações à Constituição denunciadas pelo Conselho dos Anciãos, pelo Conselho de Quinhentos ou pelos cidadãos individualmente contra violações à Constituição decorrentes de atos do Tribunal de Cassação, das Assembleias Primárias, das Assembleias Eleitorais, do Conselho dos Quinhentos e do Conselho dos Anciãos.

Nos dias atuais, o Jurie Constitutionaire equivale ao que se denomina de Tribunais ou Cortes Constitucionais, consistindo em um órgão político, independente, imparcial, através do qual se impõe que todas as normas respeitem os dispositivos da Constituição, garantindo, assim, a sua supremacia no ordenamento jurídico.

Apesar deste órgão de controle, ao ser pensado por Sieyes, situar-se fora do contexto dos Poderes Judiciário, Executivo e Legislativo, há ordenamentos constitucionais, na atualidade, que os mantém dentro da estrutura do Judiciário, por exemplo, o Brasil, cujo tribunal responsável pelo controle de constitucionalidade é o Supremo Tribunal Federal, a última instância judiciária brasileira.

O projeto desenvolvido para este tribunal especializado na fiscalização da constitucionalidade das leis estabelecia que o Júri Constitucionário – depositário da ata constitucional – seria composto por cento e oito membros renováveis em um terço, a cada ano, e, no mesmo período que o órgão legislativo.

A eleição destes trinta e seis membros (um terço do tribunal) pelo Júri Constitucionário deveria recair sobre os duzentos e cinquenta integrantes que deveriam deixar, anualmente, o corpo legislativo. Ou seja, a escolha dos membros para o Júri Constitucionário aconteceria sobre o montante que deixava a função legislativa ordinária.

Conforme visto anteriormente, os membros para comporem a assembleia extraordinária (para elaborar a Constituição) poderiam ser os mesmos integrantes do corpo legislativo, e, aqui, verifica-se que Sieyes, a partir do conjunto de membros da assembleia legislativa, retira aqueles que integrarão o órgão responsável pelo controle de constitucionalidade das leis.

Para a primeira formação do Júri Constitucionário, contudo, escolheram-se, por escrutínio secreto pela Convenção, membros entre a Assembleia Nacional Constituinte, a Assembleia Legislativa e a própria Convenção, na proporção de um terço para cada um destes grupos. Ademais, estabeleceu-se que as sessões do Júri Constitucionário não seriam públicas, fato oposto ao que ocorre hoje na prática processual dos Tribunais Constitucionais nas democracias contemporâneas.

Fato interessante que se observa na composição deste Júri Constitucional é a natureza representativa popular dos seus membros. Nos dias hodiernos, surgem questões a respeito da legitimidade democrática da Jurisdição Constitucional, onde magistrados não eleitos popularmente possuem força bastante para anular leis promulgadas por representantes populares.

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Apesar da polêmica em torno desse tema, a autora deste estudo posiciona-se no sentido de que não se pode olvidar que esta atividade jurisdicional advém da vontade do povo que delegou esta função aos juízes na Constituição, ao exercer o Poder Constituinte, de que é titular legítimo. Ou seja, presume-se que este seja o desejo do povo soberano.

Ademais, como parâmetro legitimador da Justiça Constitucional, na atualidade, a participação popular ocorre, indiretamente, através dos representantes eleitos no Legislativo e no Executivo, que escolhem os membros integrantes das Cortes Constitucionais. Assim, não procede o argumento de carência de legitimidade democrática a estes tribunais cujos integrantes não eleitos pelo povo, ao atuarem como legisladores negativos, terem poder suficiente para derrubar a força de uma lei democrática. Ora, a representatividade na eleição destes juízes constitucionais apresenta-se na participação do Legislativo, por meio de maioria qualificada. Ademais, eles atuam com base em previsão constitucional cujo mandamento foi posto pela vontade representativa do povo, e sua eleição, não poderia ser mais adequada de outra forma, visto que a sua função jurisdicional exige imparcialidade e independência, embora os julgados tratem de matéria política também.

Assim, o tratamento diferente dado à investidura dos magistrados destes tribunais explica-se em decorrência de sua natureza dúplice (política e jurídica), uma vez que seus julgamentos se relacionam à supremacia constitucional, aos atos das autoridades mais elevadas do País e, sobretudo, às leis consideradas expressão da vontade popular. Destarte, uma composição pluralista, através da renovação constante de seus membros, alarga a representatividade geral, protegendo grupos minoritários sem acesso à política. Por isso, a composição destes órgãos não poderia ser igual à das jurisdições ordinárias, sob pena de se contestar sua legitimidade. A complementaridade na eleição destes magistrados baseia-se na variedade de suas experiências profissionais, de forma que existem membros integrantes da magistratura de carreira, da advocacia, do Ministério Público, do magistério, do Parlamento, entre outros ramos. Isso se mostra fundamental, a fim de se evitar um tecnicismo exagerado ou política exacerbada.

O projeto elaborado por Sieyes sobre este tribunal especializado continua que se consideravam nulos e improcedentes os atos declarados inconstitucionais, e, se os atos denunciados como inconstitucionais fossem atos responsáveis ou misturados com estes, o Júri Constitucionário poderia, antes ou depois de julgar a questão da inconstitucionalidade, dirigir a denúncia aos tribunais competentes.

Definiu-se que o Júri Constitucionário, além de se pronunciar sobre as violações à Constituição (controle de constitucionalidade), apresentaria, também, a cada dez anos, um relatório a respeito da necessidade de se reformar a Constituição e a Declaração dos Direitos do Homem. Assim, após redigir as propostas para melhorar o ato constitucional, transmiti-las-ia ao Conselho de Anciãos e ao Conselho dos Quinhentos. Esta comunicação fazia-se três meses antes das Assembleias Primárias. Estas, depois de lerem as propostas, declaravam o acordo ou o desacordo a cerca de passar ao Conselho dos Anciãos o poder de estatuir a reforma constitucional. Se a maioria das Assembleias Primárias decidisse em não reformar a Constituição, o relatório seria considerado nulo, e as propostas de reforma não poderiam ser reproduzidas antes do segundo ano seguinte. Mas, se a maioria decidisse em reformar o Texto Constitucional, o Poder Constituinte seria delegado ao Conselho dos Anciãos, para estatuir sobre as propostas feitas no relatório sem que as pudesse emendar, tampouco substituí-las.

Anualmente, a décima parte dos membros do Júri Constitucionário, tirada à sorte, formaria o júri de equidade, cuja sessão seria, além das duas atribuições precedentes, encarregue de se pronunciar sobre as petições oficiais que lhe eram enviadas pelos tribunais, a fim de obter um acórdão de equidade sobre os casos em que não puderam julgar, seja pela ausência de lei positiva aplicável ao caso, seja por questão de julgamento contra a consciência, segundo o texto da lei. Estes acórdãos de equidade seriam executados pelo tribunal que formulou o requerimento oficial ou por qualquer outro à escolha do Júri Constitucionário, e seriam, oficialmente, comunicados, no mesmo mês, ao Conselho dos Quinhentos.

Contudo, apesar do empenho deste jurista francês em elaborar o projeto do órgão competente para o controle de constitucionalidade na França, sua ideia foi rejeitada, inicialmente, por unanimidade, por julgar a criação de algo que subjugaria os poderes públicos, a pretexto de custodiá-los.

Após a primeira tentativa frustrada de implantação do Júri Constitucional na Constituição de 1795, Sieyes investiu na ideia novamente na Constituição do Ano VIII onde foi aceito com adaptações, conferindo-se ao Senát Conservateur, e, não, ao Conselho Constitucional. Mas, na realidade, ao Senado cumpria, somente, ratificar os atos declarados inconstitucionais por Napoleão Bonaparte, o que resultou em uma experiência mal sucedida. Depois, implantou-se como guardião do pacto fundamental e das liberdades públicas, através do Senado de Luís Napoleão, previsto no Segundo Império, na Constituição de 1852, que tornou os poderes do Senado mais fortes, ao confiar-lhe a guarda das liberdades fundamentais e da Constituição. Posteriormente, implantou-se como o Comitê Constitucional da Constituição de 1946.

Ainda que não se inclinasse para criar um órgão integrante do Poder Judiciário, a Constituição de 1958 adaptou o Conselho Constitucional, ante a necessidade de garantir a supremacia da Lei Fundamental, atribuindo-lhe o cumprimento da Constituição pelo Poder Legislativo. Assim, o Conselho Constitucional, limitado ao controle de constitucionalidade preventivo, com vistas a defender o Poder Executivo, transformou-se, após 1971, depois da retirada de Charles De Gaule do cenário político, em rígido defensor dos direitos fundamentais. Destacou-se pela criação da teoria do bloco de constitucionalidade (Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, o Preâmbulo da Constituição de 1946 e a Carta do Meio Ambiente de 2004), por retratarem os direitos fundamentais, e teve forte atuação na tutela destes direitos e liberdades fundamentais, passando a ser visto como um autêntico tribunal constitucional, inclusive quanto à composição e forma de recrutamento dos seus membros.

Embora o controle preventivo proporcione vantagens em termos de segurança jurídica, por não se cogitar, a princípio, a existência de relações jurídicas baseadas em lei inconstitucional, sentiu-se que, sendo a única forma de controle, revelava inconvenientes.

É que a obrigatoriedade deste controle prévio só acontecia em relação aos regulamentos parlamentares e às leis orgânicas, não se aplicando às leis ordinárias e aos tratados internacionais, que deveriam ser impugnados pelos legitimados. Assim, na falta de questionamento, normas inconstitucionais seriam promulgadas e não mais poderiam ser contestadas, inviabilizando a fruição de direitos e liberdades dos cidadãos, cuja proteção é das mais importantes missões do controle de constitucionalidade.

Todavia, a Constituição foi alterada para admitir o conhecimento de questões pelo Conselho Constitucional, durante um processo em curso, onde se sustente que uma disposição de lei viola direitos e liberdades garantidas pela Constituição e no bloco de constitucionalidade também.

Essa reforma constitucional ampliou o controle de constitucionalidade na França o qual não mais se manifesta, apenas, previamente, podendo ser manejado após a entrada da lei em vigor. Além disso, a legitimidade passou a pertencer, também, aos particulares, não se restringindo, somente, aos legitimados previstos na Constituição, apesar impossibilidade de articulação de ofício pelo órgão jurisdicional. Ademais, ampliou-se o parâmetro para se aferir a compatibilidade vertical, com vistas a abranger possíveis violações a compromissos internacionais.

Afinal, houve um avanço no ordenamento francês de fiscalização de constitucionalidade, com o fim de se preservarem os direitos fundamentais, o que se revela como um mecanismo de estabilidade política, que não se alcançava pelo fato das Constituições anteriores não terem previsto uma Corte Constitucional suficientemente capaz de impor sua interpretação.

Por fim, a estabilidade da Jurisdição Constitucional Francesa pelo controle de constitucionalidade, deve-se ao êxito da ideia de Sieyes que protagonizou a supremacia da Constituição na Europa e a criação do Jurie Constitutionaire há dois séculos.

 


[1] O projeto de Sieyes influenciou-se em Rousseau, que havia defendido a criação de um tribunal para proteger as leis, o Poder legislativo e a soberania popular contra o governo, com inspiração nos tribunos romanos, por exemplo, o Conselho dos Dez de Veneza e nos Éforos de Esparta. Contudo, Rousseau preocupou-se em evitar a usurpação do poder, não havendo criado este tribunal jamais com a finalidade de resolver a estabilidade de uma Constituição. Apesar disso, a ideia de Rousseau foi introduzida em alguns estados americanos (Nova Jersey 1676, Pensilvânia, 1682 e 1776 Vermont 1777 e Nova Iorque em 1777.) (Pablo Pérez Tremps, Tribunal Constitucional y Poder Judicial, Centro de Estúdios Constitucionales, Madrid, 1985, p. 42).

 

 

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Sobre a autora
Juliana Vasconcelos de Castro

Possui mestrado e especialização em Direito Constitucional pela Universidade de Lisboa onde atualmente estuda doutoramento em Direito Privado Romano. Membro da Associação Nacional de Advogados de Direito Digital, onde atua em grupos de trabalho em startups, healthtechs e relações de trabalho digital. Sócia-fundadora do Juliana Vasconcelos Advogados, nas áreas de Direito Digital e de Startups. Compliance officer. Palestrante, docente e autora de e-books e de livros jurídicos.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CASTRO, Juliana Vasconcelos. A colisão de normas na Suprema Corte dos Estados Unidos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5887, 14 ago. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/75878. Acesso em: 21 nov. 2024.

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