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Uma declaração lamentável

Agenda 22/06/2020 às 11:20

O presidente Bolsonaro pediu a apoiadores que "arranjem" um jeito de entrar em hospitais públicos, ou de campanha, que atendam pacientes com covid-19, para filmarem o interior das instalações.

I – O FATO

O presidente Jair Bolsonaro pediu a apoiadores que "arranjem" um jeito de entrar em hospitais públicos ou de campanha que atendam pacientes com a Covid-19 para filmarem o interior das instalações. A ideia, segundo ele, seria mostrar a real dimensão da epidemia causada pelo novo coronavírus. Mais uma vez, sem provas, Bolsonaro levantou suspeitas de que os dados referentes à doença no país estariam sendo manipulados para atingir o seu governo.

— Seria bom você fazer... na ponta da linha, se tem um hospital de campanha perto de você, se tem um hospital público… arranja uma maneira de entrar e filmar. Muita gente tem feito isso, mas mais gente tem que fazer pra mostrar se os leitos estão ocupados ou não. Se os gastos são compatíveis ou não. Isso ajuda. Tudo o que chega para mim nas redes sociais a gente faz um filtro e eu encaminho para a Polícia Federal ou Abin (Agência Brasileira de Inteligência) — afirmou Bolsonaro.

É uma declaração lamentável, desprezível e grosseira.

Bastou o presidente Jair Bolsonaro sugerir a invasão em hospitais para comprovar que a tragédia do coronavírus não é tão grave como afirma a ciência em todo o mundo, para despertar um grupo de deputados estaduais a fiscalizar o Hospital Dório Silva, na Serra, no último dia 12 de junho de 2020.  

Em 13 de junho de 2020, o Brasil tinha 832.866 casos de Covid-19, e o número total de mortes é de 42.055. Os números são do boletim do consórcio de veículos de imprensa formado por O GLOBO, Extra, G1, Folha de S. Paulo, UOL e O Estado de S. Paulo, a partir das atualizações das secretarias estaduais de Saúde.

É, de longe, a pior pandemia que assolou o país.


II – OS CRIMES PREVISTOS

A declaração representa um verdadeiro desrespeito aos profissionais de saúde que estão em uma luta insana no combate a covid-19 e ainda aos pacientes e seus familiares que sofrem com tamanha tragédia e que, hoje, representa uma imensa dor.

Invadir hospitais é crime e estimular também.

O código penal estabelece o crime de pôr em perigo a saúde de outrem (artigo 132 do CP) e ainda a   incitação ao crime (artigo 286).

Ora, a covid-19 é uma doença grave.

Na matéria, observe-se o site do OPAS Brasil:

Observo o tipo penal exposto no artigo 132 do Código Penal.

Há um tipo genérico para o caso, previsto no artigo 132 do CP:

Art. 132 - Expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente:

Pena - detenção, de três meses a um ano, se o fato não constitui crime mais grave.

Parágrafo único. A pena é aumentada de um sexto a um terço se a exposição da vida ou da saúde de outrem a perigo decorre do transporte de pessoas para a prestação de serviços em estabelecimentos de qualquer natureza, em desacordo com as normas legais. (Incluído pela Lei nº 9.777, de 1998)

Esse tipo é válido para todas as formas de exposição da vida ou de terceiros a risco de dano, necessitando da prova da existência do perigo, para configurar-se.

O sujeito ativo pode ser qualquer pessoa e o sujeito passivo deve ser pessoa certa.

O crime exige dolo de perigo.

O risco há de ser palpável de dano voltado a pessoa determinada. A conduta, como explicou Guilherme de Souza Nucci (Código pena comentado, 8ª edição, pág. 632), exige, para configurar este delito, a inserção de uma vítima certa numa situação de risco real – e não presumido – experimentando uma circunstância muito próxima ao dano. Há um perigo concreto. O dano é iminente, mas o perigo é atual.

Como tal, trata-se de crime de perigo concreto (delito que exige prova de existência do perigo gerado para a vítima) e exige a forma comissiva.

Quanto a questão do transporte público, que envolve a edição da Lei 9.777, de 29 de dezembro de 1998, a questão envolve os proprietários de veículos que promovem o transporte de trabalhadores sem lhes garantir a necessária segurança.

Trata-se de crime de menor potencial ofensiva caso não constitua crime mais grave. Ora, trata-se de crime subsidiário, pois somente será utilizado quando outra mais grave deixa de se concretizar. Assim se houver tentativa de homicídio, aplicam-se as regras atinentes a esse crime contra a vida.

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Tem-se o artigo 265 do Código Penal:

Art. 265 - Atentar contra a segurança ou o funcionamento de serviço de água, luz, força ou calor, ou qualquer outro de utilidade pública:

Pena - reclusão, de um a cinco anos, e multa.

Parágrafo único - Aumentar-se-á a pena de 1/3 (um terço) até a metade, se o dano ocorrer em virtude de subtração de material essencial ao funcionamento dos serviços. (Incluído pela Lei nº 5.346, de 3.11.1967)

Trata-se de crime para o qual cabe a suspensão condicional do processo, segundo o artigo 89 da Lei nº 9.099/95, por dois a quatro anos, desde que o acusado não esteja sendo processado ou não tenha sido condenado por outro crime, presentes os demais requisitos que autorizariam a suspensão condicional da pena (art. 77 do Código Penal ).

§ 1º Aceita a proposta pelo acusado e seu defensor, na presença do Juiz, este, recebendo a denúncia, poderá suspender o processo, submetendo o acusado a período de prova, sob as seguintes condições:

I - reparação do dano, salvo impossibilidade de fazê-lo;

II - proibição de frequentar determinados lugares;

III - proibição de ausentar-se da comarca onde reside, sem autorização do Juiz;

IV - comparecimento pessoal e obrigatório a juízo, mensalmente, para informar e justificar suas atividades.

Atentar significa perpetrar atentado ou colocar em risco, através de atos executórios, alguma coisa ou alguém. O objeto é a segurança ou o funcionamento de serviço de utilidade pública, tal qual é o que ocorre com os hospitais.

O elemento do tipo é o dolo de perigo, ou seja, a vontade de gerar um risco não tolerado a terceiros.

Segurança é condição daquilo que se pode confiar, funcionamento é a movimentação de algo com regularidade.

Trata-se de crime formal(que não exige para a sua consumação um resultado naturalístico), ocorrendo dano haverá um exaurimento.

A tentativa é de difícil concretização.

Por sua vez, tem-se o artigo 286 do Código Penal.

Art. 286 - Incitar, publicamente, a prática de crime:

Pena - detenção, de 3 (três) a 6 (seis) meses, ou multa.

Os Códigos Penais de 1830 e 1890 eram omissos a respeito.

O crime, do que se lê pela pena, é de menor potencial ofensivo, razão pela qual há uma consciência de impunidade social nesse tipo de conduta.

Merecem ser estudadas as ocorrências na conduta, em redes sociais, de incitar (instigar, provocar, excitar), publicamente, a prática de crime. A publicidade da ação é um pressuposto de fato indispensável. Dela resulta a gravidade dessa conduta que, de outra forma, seria apenas um ato preparatório impunível. Pública é a incitação quando é feita em condições de ser percebida por um número indeterminado de pessoas, sendo indiferente que se dirija a uma pessoa determinada. A publicidade implica na presença de várias pessoas ou no emprego de meio que seja efetivamente capaz de levar o fato a um número indeterminado de pessoas (rádio, televisão, cartazes, alto-falantes, a internet). A publicidade é a nota nesse ilícito que surge pela indeterminação nos destinatários.

Exige-se a seriedade na incitação, que deve resultar das palavras e dos gestos empregados.

Como bem assevera Heleno Cláudio Fragoso (Lições de direito penal, Rio de Janeiro, Forense, volume II, 5ª edição, pág. 274), a tutela penal exerce-se com relação a paz pública, pois a instigação à prática de qualquer crime traz consigo uma ofensa ao sentimento de segurança na ordem jurídica e na tutela do direito, independentemente do fato a que se refere a instigação e as consequências que possam advir. No direito comparado, aliás, há o exemplo do Código Penal alemão (§ 111) que classifica este delito entre as infrações que constituem resistência ao poder público, de tal sorte a considerar como bem jurídico tutelado o poder público.

O crime de incitação, crime contra a paz pública, pode ser praticado por qualquer meio idôneo de transmissão de pensamento (palavra, escrito ou gesto). Não basta uma palavra isolada ou uma frase destacada de um discurso ou de um escrito. A incitação deve referir-se a prática de um crime (fato previsto pela lei penal vigente como crime) e não mera contravenção. Deve a incitação se referir a um fato delituoso determinado, exigindo o dolo genérico, sendo crime formal que se consuma com a incitação pública, desde que seja percebida ou se torne perceptível a um número indeterminado de pessoas, independentemente de qualquer outro resultado ou consequência da incitação.

Repita-se que é indispensável que se trate de fato determinado (e não de instigação genérica a delinquir).

Cita o Ministro Nelson Hungria (Comentários ao código penal, volume IX, pág. 167), o exemplo daquele que lança a primeira pedra contra a mulher adúltera, incitando os demais da multidão colérica à criminosa lapidação. Mas, ainda ensina o Ministro Nelson Hungria que não há crime quando o agente faz apenas a defesa de uma tese sobre a ilegitimidade ou sem razão da incriminação de tal ou qual fato, por exemplo, o homicídio eutanásico, o aborto. Isso porque não haveria ali o animus instiganti delicti, mas uma opinião no sentido da exclusão do crime.

O crime é formal e se consuma como incitação pública que seja percebida ou se torne perceptível a um número indeterminado de pessoas independente de qualquer outro resultado ou consequência da incitação. É possível a tentativa quando se trata de incitação oral. Assim, consuma-se o crime com a simples incitação, com a incitação pública (RT 718/378). Mas, repita-se: é indispensável, porém, que um número indeterminado de pessoas tome conhecimento da incitação, ainda que seja dirigida a pessoas determinadas.

O crime é de perigo presumido.

Se a pessoa instigada a praticar um crime vem, efetivamente, a praticá-lo, o instigador poderá responder por ele, como coautor, desde que a incitação tenha resultado em um contingente causal na formação do propósito criminoso, como ensinou Heleno Cláudio Fragoso (obra citada, pág. 276). Nessa hipótese, haverá a incidência de concurso material entre tal crime e o de incitação (artigos 29 e 69 do CP).

O dolo é genérico que consiste na vontade conscientemente dirigida à incitação à prática de um crime determinado, já que não exige um especial fim de agir. Tal consciência corresponde a sua seriedade, que é elemento indispensável e fundamental para que a pessoa possa reconhecer o fato, bastando que o agente saiba poder causá-lo e assuma o risco de produzi-lo.

Se isso não bastasse, na lei de abuso de autoridade, o artigo 22 estabelece que é crime “invadir ou entrar astuciosamente ou à revelia da vontade do ocupante, imóvel alheio”, no artigo 25, obter provas, em procedimento de investigação ou fiscalização, de forma ilícita.


III – A PROVA ILÍCITA

Há prova ilegal e prova ilícita. Pietro Nuvolone (Le prove vietate nei processo penal nei paesi di diritto latino) aduzia que a prova será ilegal sempre que houver violação do ordenamento como um todo, quer sejam de natureza material ou meramente processual. Ao contrário, será ilícita a prova quando sua proibição for de natureza material, quando for obtida ilicitamente. A ilicitude material ocorre quando a prova deriva de um ato contrário ao direito e pelo qual se consegue um dado probatório. Por sua vez, há ilicitude formal quando a prova decorre de forma ilegítima pela qual se produz muito embora seja ilícita a sua origem. A ilicitude material diz respeito ao momento formativo da prova. A ilicitude formal ao momento introdutório da mesma.

Dir-se-á, outrossim, que há uma dicotomia entre a prova ilegal e a prova ilegítima. A última pode ser objeto de ratificação pelo juízo competente.

Vedam-se provas obtidas por meios ilícitos (princípio da inadmissibilidade de provas obtidas por meios ilícitos), algo inerente ao Estado Democrático de Direito que não admite a condenação obtida pelo Estado a qualquer preço.

A proibição da prova ilícita surgiu na Suprema Corte americana. Ao interpretar essa proibição, a Corte delimitou o sentido e o alcance da norma, para estabelecer exceções às regras de exclusão, como a da admissibilidade da prova ilicitamente obtida por particular, a da boa-fé do agente público e a da causalidade atenuada.

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. Uma declaração lamentável. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6200, 22 jun. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/83194. Acesso em: 25 dez. 2024.

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