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Crimes passionais e soberania do júri

Agenda 10/10/2020 às 18:20

Até quando a legítima defesa da honra, tida como argumento superado, ainda seguirá absolvendo criminosos?

I – O CASO DORINHA DUVAL  

Costuma-se dizer que o crime passional é a expressão usada para se referir a um crime que é cometido motivado por uma grande emoção. O termo passional, utilizado para caracterizar o crime, faz referência a um sentimento ou emoção em que existe um alto grau de afeto ou de sentimento de posse em relação à vítima. 

Destaco aqui casos em que houve o chamado crime passional e a alegação da legítima defesa da honra, hoje não acolhida pelo Superior Tribunal de Justiça, como principal intérprete da lei federal.  

Primeiro, trago à luz o caso de Dorinha Duval.  

Dorinha Duval, grande atriz brasileira, estava no auge da fama em 1980 quando, na madrugada de 5 outubro de 1980, há 40 anos, disparou três tiros contra seu marido, o produtor publicitário Paulo Sérgio Garcia Alcântara, durante uma discussão de casal.  

A briga teria começado dentro do quarto do casal, numa casa no Jardim Botânico. Dorinha e Paulo Sérgio tinham acabado de voltar de uma festa no Leblon. Saíram cedo, por volta de meia-noite, porque a atriz tinha um compromisso no dia seguinte em Belo Horizonte. Quando arrumava a mala para a viagem, num quarto ao lado, Dorinha ouviu o marido chamá-la diversas vezes. Ao encontrá-lo só de cueca, deitado, imaginou que a insistência era porque ele queria fazer sexo. Em depoimento à polícia, ela contou que foi para a cama, mas que, ao tentar abraçar Paulo, foi repelida. Detalhou também como foi o diálogo que precipitou a tragédia: 

— Você é uma velha, não quero mais nada com você — teria dito Paulo, de 35 anos, a Dorinha, de 51. 

Mesmo humilhada, a atriz teria tentado contornar a situação e agradar ao marido. Disse que poderia se submeter a uma plástica. 

— Não adianta plástica, eu gosto de menininha nova, não quero uma bruxa remendada — teria continuado Paulo, passando a agredir Dorinha com chutes e tapas. 

A atriz contou que pediu ao marido que parasse de agredi-la, ameaçando se matar. 

— Ótima ideia, o revólver está ali — ele teria retrucado, apontando para a arma que comprara meses antes, por causa de um assalto do qual fora vítima na porta de casa. 

A partir deste ponto, Dorinha dizia que era tudo uma névoa: 

— Peguei o revólver e, a partir daí, não me lembro de nada, até quando o vi ensaguentado, caído no chão. 

Dorinha dizia ter sido ferida física e moralmente. Atirara em legítima defesa, garantia ela.  

Levada a julgamento três anos depois, a artista teve sua história explorada no tribunal. Seu advogado, Clóvis Sahione, evocou um passado repleto de traumas afetivos, listando um a um: estuprada aos 15 anos, aos 18 se encantou por um trapezista de circo que, mais tarde, a abandonou. Com uma gravidez tubária e sem dinheiro para interromper a gestação, Dorinha foi obrigada a fazer um acordo com o diabo: uma cafetina deu a quantia necessária para o aborto, com a condição de que a jovem, depois, se prostituísse por seis meses para pagar a dívida. 

O júri ouviu as testemunhas de defesa de Dorinha — o humorista Chico Anysio e o ator Paulo Goulart, por exemplo, atestaram o caráter pacífico da atriz. 

No fim, foi estipulada uma pena de um ano e meio de detenção, a ser cumprida em liberdade, já que a artista, que havia sido casada com Daniel Filho e tinha uma filha, a hoje atriz Carla Daniel, era ré primária e de bons antecedentes. 

Como o promotor recorreu, Dorinha foi levada a novo julgamento em 1989. Mais uma vez, os jurados foram condescendentes. A atriz foi condenada a seis anos de reclusão em regime semiaberto, o que era a pena mínima para homicídio simples. Tinha o dia livre e precisava apenas dormir na prisão, em Niterói.  

Passados quarenta anos, é mister lembrar que a tese de defesa de Dorinha Duval foi a legítima defesa da honra.  

II – A LEGÍTIMA DEFESA DA HONRA  

A figura da “legítima defesa da honra” consiste em tese jurídica que visa tornar impune a prática de maridos, irmãos, pais ou ex-companheiros e namorados que matam ou agridem suas esposas, irmãs, filhas, ex-mulheres e namoradas fundada ou “justificada” na defesa da honra da família ou da honra conjugal. Entretanto, frise-se que, no entender de grande parte da doutrina e jurisprudência, não há legislação e jurisprudência da América Latina, honra conjugal ou da família a ser protegida, na medida em que a honra é atributo próprio e personalíssimo, referente a um indivíduo e não a dois ou mais indivíduos. 

Roberto Lyra, conhecido, não por acaso, como o “príncipe dos promotores”, afirma de forma poética, que: 

O verdadeiro passional não mata. O amor é, por natureza e por finalidade, criador, fecundo, solidário, generoso. Ele é cliente das pretorias, das maternidades, dos lares e não dos necrotérios, dos cemitérios, dos manicômios. O amor, o amor mesmo, jamais desceu ao banco dos réus. Para os fins da responsabilidade, a lei considera apenas o momento do crime. E nele o que atua é o ódio. O amor não figura nas cifras da mortalidade e sim nas da natalidade; não tira, põe gente no mundo. Está nos berços e não nos túmulos. 

Fala-se na chamada legitima defesa da honra. 

Ela aconteceria quando o cônjuge ou namorado (a) traído matasse o (a) parceiro (a) que trai e/ou a pessoa com quem trai. Segundo esse mito, a legítima defesa da honra seria um tipo de legítima defesa e, portanto, faria com que a justiça absolvesse o acusado. A lógica seria que a honra faz parte da pessoa, da mesma forma que a vida ou o corpo, e por isso a pessoa pode matar para protegê-la. 

Nosso antigo Código Penal (que vigorou entre 1890 e 1940), previa, em seu artigo 27, que se excluía a ilicitude dos atos cometidos por aquelas pessoas que “se acharem em estado de completa privação de sentidos e de inteligencia no acto de commetter o crime”. Basicamente, ele estava dizendo que não era considerada criminosa a pessoa que cometesse um crime quando estava em um estado emocional alterado. Era esse artigo que alguns juristas usavam para justificar a legítima defesa da honra. Mas reparem que, em nenhum momento, ele está dizendo que a pessoa pode matar o (a) parceiro (a) que está traindo. Isso era interpretação desses juristas. 

Todavia, o artigo 28 de nosso atual Código Penal: dita “Não excluem a imputabilidade penal: I - a emoção ou a paixão”. Ele diz justamente o contrário do que dizia a antiga lei. Foi para que não houvesse nenhuma dúvida que o legislador não desejava que os magistrados absolvessem alguém que agiu movido por ciúme ou outras paixões e emoções é que o ele inseriu esse inciso na lei. 

Dir-se-ia que a emoção, o ciúme, a paixão, são os ingredientes para esses crimes passionais. 

Sobre o ciúme, Brito Alves (Ciúme e crime. Recife: Ed. Fasa/Unicamp, 1984) lembrou: 

‘O ciumento não se sente somente incapaz de manter o amor e o domínio sobre a pessoa amada, de vencer ou afastar qualquer possível rival como, sobretudo, sente-se ferido ou humilhado em seu próprio amor. [...] o ciumento considera a pessoa amada mais como “objeto” que verdadeiramente como “pessoa” no exato significado da palavra. Esta interpretação é característica de delinqüente por ciúme.” 

Emoção, segundo Nelson Hungria, é um estado de ânimo ou de consciência caracterizado por uma viva excitação do sentimento. Convém ponderar, ao demais que a emoção difere da paixão, haja vista que a primeira se resume a uma transitória perturbação afetiva, e a segunda é a emoção em estado crônico, ou seja, um estado contínuo de perturbação afetiva em torno de uma ideia fixa que intrinsecamente abrange o ódio recalcado, o ciúme deformado em possessão doentia. 

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A paixão é um sentimento, que segundo François Fourier, se compõe por uma força matricial tríplice: aprimoramento, competição e mudança. Razão pela qual o reconhecimento do sujeito“apaixonado” é o que possibilita vislumbrar a forma pela qual se expõem seus afetos, o modo pelo qual se exteriorizam e ganham a dinâmica dos acontecimentos no mundo dos fatos. Embora, de acordo com o sentido filosófico encontrado nas enciclopédias, a paixão possa ser descrita como um sentimento despertado por desejos veementes, nos parece mais cabível descrevê-la como uma energia sinestésica que tende ao esgotamento, esvaindo-se sucumbente. 

Fala-se na expressão honra. 

A esse respeito, Maggiore (Derecho Penal, 1972, volume IV, pág. 158) lecionou que a honra é um  estado de dignidade e de estima  que se goza na sociedade por uma conduta irreprovável. Mas dizia que essa honra não poderia ser levada em conta com relação a mulher adúltera e meretriz. 

No passado, ainda, Bento de Faria (Anotações teóricas e práticas ao Código penal do Brasil, 1929, volume I, pág. 104) dizia que “o adultério não coloca o marido ofendido em estado de legítima defesa, pois que a morte dada por esse motivo não é repulsa de uma agressão nem meio adequado a reparar o mal”. 

No Brasil, Magalhães Noronha (Direito Penal, 1985, volume I, pág. 192) negou esse tipo de legítima defesa por considerar que a honra é atributo pessoal, individual e próprio.  Basileu Garcia (Instituições de direito penal, volume I, tomo I, pág. 342) admitiu somente reação quanto a honra, “no sentido de pudícia ou pudor”.  Igual lição tem-se em Frederico Marques (Tratado de Direito Penal, volume II, 1965, pág. 115). 

No estrangeiro, Himenez de Assúa (El criminalística, tomo IV, 1980, pág.34) dizia que não existe essa honra conjugal. Essa honra é pessoal. 

Voltando ao Brasil, destaco a jurisprudência, no passado, com relação a legítima defesa da honra conjugal: Não era pacífica a jurisprudência, havendo acórdãos, em menor número admitiam a legítima defesa (TJSP, mv – RT 716/413 – duplo homicídio; TACrSP, RJDTACr 16/202 – lesões leves) e outros, em número maior que a negam (TJSP, RJTJSP 71/328, RT 654/275, TJSP, RJ 44/264 (RT 655/315, TJMG, RF 273/269) reconhecendo apenas a atenuante do relevante valor moral ou social (TJES, RT 621/345). 

Fernando Capez (Execução Penal – Simplificado: 15ª edição, São Paulo, Saraiva,2013. p. 309-310) assim ensinou: 

“Em princípio, todos os direitos são suscetíveis de legítima defesa, tais como a vida, a liberdade, a integridade física, o patrimônio, a honra etc., bastando que esteja tutelado pela ordem jurídica. Dessa forma, o que se discute não é a possibilidade da legítima defesa da honra e sim a proporcionalidade entre a ofensa e a intensidade da repulsa. Nessa medida, não poderá, por exemplo, o ofendido, em defesa da honra, matar o agressor, ante a manifesta ausência de moderação. No caso de adultério, nada justifica a supressão da vida do cônjuge adúltero, não apenas pela falta de moderação, mas também devido ao fato de que a honra é um atributo de ordem personalíssima, não podendo ser considerada ultrajada por um ato imputável a terceiro, mesmo que este seja a esposa ou o marido do adúltero.”

Silvia Pimentel, Juliana Belloque e Valéria Pandjiarjian (Legítima Defesa da Honra: Legislação e Jurisprudência da América Latina. Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 50, p. 311, set/2004) realizaram um estudo qualitativo de julgados sobre a legítima defesa da honra e encontraram quatro categorias de decisões: “acolhimento da tese de legítima defesa da honra ultrajada por conduta sexual de parceiro com terceiro, não acolhimento por falta de requisitos formais do art. 25 do CP, rejeição absoluta da tese com voto vencido em sentido contrário e rejeição unânime” 

Na matéria já se entendeu: 

"HOMICÍDIO SIMPLES – RÉU ABSOLVIDO SOB O ACOLHIMENTO DA LEGÍTIMA DEFESA DA HONRA.- Não age em legítima defesa da honra o agente que mata sua esposa movido pela suspeita de que a mesma lhe era infiel.- Ausência de fato concreto, atual ou iminente, a justificar os ciúmes do agente da ocisão.- A ofensa simples não tem os contornos de agressão capaz de justificar a reação impiedosa e desmedida do acusado de matar a tiros e facadas a esposa indefesa.- Apelo a que se dá provimento a fim de que, anulado o julgamento, a outro seja submetido o apelado" (RT 655/315-316)." 

"HOMICÍDIO – LEGÍTIMA DEFESA DA HONRA – ACUSADO QUE MATA A ESPOSA ADÚLTERA – RECONHECIMENTO DA EXCLUDENTE ADMISSÍVEL EM TESE – HIPÓTESE, PORÉM, EM QUE AUSENTE O REQUISITO DA ATUALIDADE DA REPULSA – DECISÃO DOS JURADOS RECONHECENDO A CAUSA DE EXCLUSÃO DE ILICITUDE CONTRÁRIA À PROVA DOS AUTOS – NULIDADE DECRETADA – NOVO JULGAMENTO ORDENADO – DECLARAÇÃO DE VOTO.- É entendimento fortemente arraigado no povo que o adultério da mulher fere a honra do marido. Não há negar que julgados dos tribunais têm admitido a legítima defesa da honra quando o cônjuge ultrajado mata o outro cônjuge ou seu parceiro. De modo que se mostra mais prudente aceitar, em tese, a legítima defesa da honra em tal hipótese e verificar se, no caso concreto, os requisitos legais encontram-se presentes.- Faltando, p. ex., o requisito da atualidade da repulsa, é contrária à prova dos autos a decisão dos jurados que reconhece a causa de exclusão de ilicitude" (RT 660/268)." 

O STJ tem, desde 1991, posição com relação a matéria. 

A tese de legítima defesa da honra é refutada, com veemência, por esta Corte Superior como fundamento válido à absolvição dos uxoricidas (RESp n. 1517/PR, Rel. Ministro José Candido de Carvalho Filho, 6ª T., DJ 15/4/1991). 

Em um processo de duplo homicídio, em que o marido surpreendeu a esposa em adultério e foi absolvido por defesa da honra, proclamou-se que “não há ofensa à honra do marido pelo adultério da esposa, desde que não existe essa honra conjugal. Ela é pessoal, própria de cada um dos cônjuges” e “a lei civil aponta os caminhos da separação e do divórcio. Nada justifica matar a mulher que, ao adulterar, não preservou a sua própria honra”. A decisão do júri foi cassada para determinar novo julgamento (REsp 1517/PR, 6 a. T., j. 11.03.1991, DJU 15.04.1991, p. 4309). 

Ali se disse, naquele julgamento histórico: 

"RECURSO ESPECIAL. TRIBUNAL DO JÚRI. DUPLO HOMICÍDIO PRATICADO PELO MARIDO QUE SURPREENDE SUA ESPOSA EM FLAGRANTE ADULTÉRIO. HIPÓTESE EM QUE NÃO SE CONFIGURA LEGÍTIMA DEFESA DA HONRA. DECISÃO QUE SE ANULA POR MANIFESTA CONTRARIEDADE À PROVA DOS AUTOS (ART. 593, PARÁGRAFO 3º, DO CPP).- Não há ofensa à honra do marido pelo adultério da esposa, desde que não existe essa honra conjugal. Ela é pessoal, própria de cada um dos cônjuges. O marido, que mata sua mulher para conservar um falso crédito, na verdade, age em momento de transtorno mental transitório, de acordo com a lição de Himenez de Asua (El Criminalista, Ed. Zavalia, B. Aires, 1960, T.IV, P.34), desde que não se comprove ato de deliberada vingança.- O adultério não coloca o marido ofendido em estado de legítima defesa, pela sua incompatibilidade com os requisitos do art. 25, do Código Penal.- A prova dos autos conduz à autoria e à materialidade do duplo homicídio (mulher e amante), não à pretendida legitimidade da ação delituosa do marido. A lei civil aponta os caminhos da separação e do divórcio. Nada justifica matar a mulher que, ao adulterar, não preservou a sua própria honra.- Nesta fase do processo, não se há de falar em ofensa à soberania do Júri, desde que os seus veredictos só se tornam invioláveis, quando não há mais possibilidade de apelação. Não é o caso dos autos, submetidos, ainda, à regra do artigo 593, parágrafo 3º, do CPP.- Recurso provido para cassar a decisão do Júri e o acórdão recorrido, para sujeitar o réu a novo julgamento." 

Em 2001, o Superior Tribunal de Justiça afastou a legítima defesa da honra por ausência do requisito da atualidade (art. 25 do Código Penal). Neste processo, o réu foi acusado de homicídio qualificado por matar a esposa, de quem estava separado há 30 dias, porque ela se negou à reconciliação quando por ele procurada na residência de seus pais. Curioso é que, absolvido pelo júri, o Tribunal de Justiça do Estado confirmou a decisão salientando não ser “aquela causa excludente desnaturada pelo fato de o casal estar separado, há algum tempo, e porque a vítima não tinha comportamento recatado” (REsp 203632/MS, 6ª T, j. 19.04.2001, DJ 19.12.2002, p. 454). Somente no julgamento do recurso especial a decisão foi revertida.  

Acabou o tempo de ver a mulher como um objeto do homem de forma que a traição justificaria a morte, “a lavar com o sangue a própria honra”. 

Ao rejeitar o recurso especial de um homem denunciado por matar a esposa estrangulada após uma festa, o ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Rogerio Schietti Cruz, repudiou o argumento da defesa segundo o qual a vítima teria adotado "atitudes repulsivas" e provocativas contra o marido, o que justificaria o reconhecimento de legítima defesa da honra e a absolvição sumária do réu. 

"Embora seja livre a tribuna e desimpedido o uso de argumentos defensivos, surpreende saber que ainda se postula, em pleno ano de 2019, a absolvição sumária de quem retira a vida da companheira por, supostamente, ter sua honra ferida pelo comportamento da vítima. Em um país que registrou, em 2018, a quantidade de 1.206 mulheres vítimas de feminicídio, soa no mínimo anacrônico alguém ainda sustentar a possibilidade de que se mate uma mulher em nome da honra do seu consorte", afirmou o ministro. 

De acordo com o processo, durante uma festa, a vítima teria dançado e conversado com outro rapaz, o que gerou a ira e despertou os ciúmes do marido, que estaria alcoolizado. Ela também teria dito que queria romper o relacionamento. Em casa, o homem pegou uma corda e laçou o pescoço da mulher, matando-a por asfixia. 

III – O CASO DOCA STREET 

O caso Doca Street x Angela Diniz é por demais conhecido.  

Doca Street e Ângela Diniz se conheceram em agosto de 1976, durante um jantar realizado pela elite paulistana, instante em que perceberam grande sintonia. Um mês depois, apaixonado, Doca abandonou sua esposa e filhos para viver sua paixão com Ângela. 

Assim, o casal passou a morar na casa que Ângela tinha em Búzios (RJ). Desde então a socialiteque bancava todos os luxuosos gastos do casal, passando, literalmente, a sustentar Doca Street. 

Em razão de ser extremamente ciumento, Doca fazia com que Ângela, deixasse de frequentar os lugares que sempre frequentou, bem como a distanciou de seus amigos. Doca controlava todos os atos da moça, o que, posteriormente, passou a lhe incomodar, haja vista que sempre foi uma mulher independente e que não tolerava nenhum tipo de submissão. 

Por conta dessa possessividade de Doca, o romance que viviam esfriou, e, no lugar da paixão vieram as brigas.  

A briga fatídica aconteceu na véspera do ano novo de 1976/1977, onde o casal decidiu passar o dia na praia. Entre muitos coquetéis de vodca, Ângela ficava cada vez mais desinibida, o que estava irritando seu controlador, Doca Street.  

A gota d’água foi quando uma alemã, Gabrielle Dayer, chegou até Ângela oferecendo os artesanatos que confeccionava e vendia na praia, momento em que a moça se encantou pela estrangeira e tentou seduzi-la. Doca não tolerou o comportamento da namorada, sentiu-se humilhado, e, então, retornaram para casa em que viviam. 

Como Ângela havia ingerido muita bebida alcoólica naquele dia, ao chegarem em casa, Doca foi lhe ajudar a tomar banho. Contudo, de alguma forma, retomaram, de forma muito intensa, a briga que tiveram por conta da alemã, e, por conta das atrocidades que ouvia de seu namorado, Ângela é levada ao descontrole, a ponto de ter quebrado toda a mobília de seu banheiro. 

Logo após a confusão, mais calma, porém ainda sobre efeito de bebida alcoólica, Ângela anunciou à Doca o fim do relacionamento. Inconformado, tentou, insistentemente convence-la de que essa não era sua vontade, pois a moça estava em estado de embriaguez, além de argumentar que lhe amava de forma muito intensa e por isso era tão ciumento. Entretanto, Ângela estava decidida, não queria mais aquele relacionamento abusivo.  

Assim, o rapaz pegou seus pertences e foi embora. Todavia, quando já estava há alguns quilômetros de distância da casa que saia, Doca decidiu voltar para, mais uma vez, demonstrar a Ângela que pôr um fim no relacionamento era uma decisão precipitada.  

Ao retornar, Doca encontra Ângela sentada perto da piscina, descansando. Ele se aproxima da moça, e, de joelhos, pede perdão, bem como que ela reconsiderasse a decisão do término, mas Doca não teve a resposta que gostaria de ouvir. Ângela olhou em seu rosto e disse que se ele quisesse ficar, teria que suportar dividi-la com outros homens e mulheres. 

Nesse instante, Doca ficou transtornado, não poderia aceitar esse tipo de comportamento vindo de uma mulher, seria “humilhante”, a sociedade o julgaria.  

Assim, movido pelo ódio que sentiu ao ouvir essa frase de Ângela, quando a moça se levantou para ir ao banheiro, Doca Street, por trás, proferiu a seguinte frase “se você não vai ser minha, não será de ninguém”, e, em seguida, desferiu quatro tiros contra Ângela, deixando a arma de fogo no local do crime, ao lado do corpo da vítima. 

Após o crime, Doca Street, fugiu para Minas Gerais. 

No dia 18 de outubro de 1979, houve o primeiro julgamento de Doca, cujo advogado contratado foi o criminalista Evandro Lins e Silva, de memorável carreira. Ao utilizar a aludida tese defensiva, esmiuçou a vida da vítima, mostrando-a como pessoa promíscua, transformando Doca na verdadeira vítima e Ângela culpada e merecedora de sua morte. 

Os jurados o condenaram a pena de reclusão de dois anos, com direito a suspensão condicional da pena (não precisaria se recolher ao cárcere). 

A acusação recorreu para novo júri.  

Designado novo julgamento, o qual ocorreu em novembro de 1981, figurando como advogado de defesa do réu, o Dr. Humberto Telles. Dessa vez, o júri não entendeu que Doca agiu em legítima defesa da honra, mas sim que houve homicídio doloso qualificado, razão pela qual foi condenado em quinze anos de reclusão. 

IV – A SOBERANIA DO JÚRI E A LEGÍTIMA DEFESA DA HONRA: UM EXEMPLO RECENTE  

Sabe-se, nos termos da Constituição Federal, artigo 5º, XXXVIII, que é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados: a) a plenitude da defesa; b) o sigilo das votações; c) a soberania dos veredictos; d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida. 

José Frederico Marques (Elementos de Direito Processual Penal, volume III, pág. 262) diz dever entender-se por soberania do júri, a impossibilidade dos juízes togados se substituírem aos jurados na decisão da causa. 

É o que se lê do artigo 593, III, ¨d¨, do Código de Processo Penal quando se observa que, diante de recurso da apelação do condenado, fundado no fato da decisão dos jurados ser manifestadamente contrária, estatui-se que o tribunal ad quem se der provimento à apelação, deverá sujeitar o réu a novo julgamento. 

Outra não é a lição de Marques Porto (Júri – Procedimento e aspectos do julgamento (Questionários), 5ª edição, São Paulo, Saraiva, pág. 35). que disse que ¨o entendimento do conceito de soberania reaparece com seus efeitos após o julgamento pelo Tribunal do Júri, quando do exame de apelação, buscando a rescisão, pelo mérito, do decidido pelos jurados; ao Tribunal do Júri cabe proferir decisão então não manifestadamente contrária à prova, que encontre amparo em contingente menor de provas em conflito, e decisões, com tal amparo, que não prevaleceriam, em regra, quando, proferidas por juiz singular, são mantidas, porque excepcional a marginalização de decisões de jurados, circunstância a demonstrar que, no julgamento da apelação para avaliação do que foi decidido pelos jurados, o entendimento do conceito de soberania dá atenção aos seus limites, agora sem caráter ampliativo e indevido.¨ 

Certo que a soberania do júri, soberania dos veredictos dos jurados, não pode excluir a recorribilidade das decisões emanadas do Tribunal do Júri, sendo assegurada com a devolução dos autos àquele órgão judicial para que profira um novo julgamento, se cassada a decisão recorrida diante do princípio do duplo grau de jurisdição. 

Na lição de Paulo Lúcio Nogueira (Curso Completo de Processo Penal, 3ª edição, São Paulo, Ed. Saraiva, 1987, pág. 217), por soberania do Júri ou dos veredictos entende-se que o Tribunal do Júri não pode reformar a decisão dos jurados ainda que contrária a prova dos autos, podendo apenas anular o julgamento e mandá-lo a novo Júri. Ao final, acrescenta, aduzindo que ¨isso apenas uma vez, pois não poderia haver segunda apelação pelo mérito, embora possa haver tantas quantas forem necessárias, desde que ocorra alguma nulidade¨. 

Pois bem.  

Recentemente, a Primeira Turma do STF (Supremo Tribunal Federal) decidiu no dia 29 de setembro do corrente ano, por três votos a dois, manter a decisão do Tribunal do Júri de absolver um homem que confessou ter esfaqueado a mulher por suspeitar estar sendo traído. A vítima foi levada ao hospital e sobreviveu ao ataque. O caso foi inicialmente julgado pelo Tribunal do Júri que, apesar de entender que a tentativa de feminicídio de fato foi praticada pelo acusado, decidiu absolver o réu.  

O relator, ministro Marco Aurélio Mello, votou pela concessão do pedido do réu afirmando que a “a lei maior assegura a soberania dos veredictos”. “O que é julgamento pelo tribunal do júri, é o julgamento por iguais, por leigos”, argumentou. 

Em seguida, os ministros Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso divergiram. 

Alexandre de Moraes afirmou que o réu “se sentiu no direito de desferir diversos golpes de faca na vítima, ou seja, crime gravíssimo contra a mulher. E pelo motivo mais abjeto possível, o fato de seu companheiro entender que sua mulher o pertence”. 

“Não há dúvida que a soberania dos veredictos é do Tribunal do Júri. O Tribunal do Júri é a única instância exauriente na apreciação de fatos e provas do processo. Não necessariamente, um único conselho de sentença. A soberania está ligada ao instituto do júri no Brasil”, argumentou Moraes, defendendo ser possível a realização de um novo julgamento. 

Luís Roberto Barroso criticou a decisão do júri e defendeu que ela possa ser revista. 

"Não pode o Tribunal de Justiça, que é soberano na revisão dos fatos, reconhecer que ocorreu uma decisão contrária a prova dos autos e mandar realizar um novo júri? Se essa não é uma decisão contrária à prova dos autos, eu tenho dificuldade de saber o que é", afirmou. 

O ministro classificou o caso de “feminicídio em estado bruto e apenas mais uma estatística”. 

"Se o júri tiver um surto de machismo, ou de primitivismo e absolver alguém, o tribunal não pode pedir que outro júri reavalie?", questionou Barroso. "Acho que as pessoas têm um senso, meu senso de justiça se sente ofendido por se naturalizar uma tentativa de feminicídio como essa. Não gostaria de viver no país em que os homens pudessem matar sua mulher por ciúme e saírem impunes", completou. 

Últimos a apresentar voto, os ministros Dias Toffoli e Rosa Weber acompanharam o relator, sob o argumento de que o júri é soberano para decidir. 

 Esse recente julgamento, que serve como modelo, é um exemplo brutal de que a “legítima defesa da honra”, tido como argumento superado, ainda absolve no Brasil, num país em que o Tribunal do Júri, no julgamento dos crimes dolosos contra a vida, está sujeito a paixões e emoções fortes.  

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. Crimes passionais e soberania do júri. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6310, 10 out. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/85943. Acesso em: 23 dez. 2024.

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