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Uma censurável exposição da vítima em juízo e uma possível aplicação do erro do tipo

Agenda 04/11/2020 às 21:54

No caso Mariana Ferrer, o promotor teria argumentado que o réu não teria como saber que a vítima estava em situação de vulnerabilidade, circunstância que passou a ser tratada como "estupro culposo", acarretando a absolvição do réu. Tá certo isso?

I – O FATO

A 3ª Vara Criminal de Florianópolis absolveu José Camargo Aranha, com base no princípio in dubio pro reo, por entender que a acusação de estupro que foi feita contra ele só foi baseada nos relatos da vítima, Mariana, e sua mãe. O juiz, Rudson Marcos, afirmou que não ficou provado que a influencer estava alcoolizada ou sob efeito de droga a ponto de ser considerada vulnerável e não consentir com o ato sexual, por não ter capacidade de oferecer resistência.

O Ministério Público de Santa Catarina afirmou que o pedido para que José Camargo Aranha seja inocentado é fundamentado na falta de provas sobre eventual dolo em sua conduta. Sem isso, não há o crime de estupro de vulnerável (artigo 217-A, parágrafo 1º, do Código Penal).

“Segundo o promotor responsável pelo caso, não havia como o empresário saber, durante o ato sexual, que a jovem não estava em condições de consentir a relação, não existindo portanto ‘intenção’ de estuprar. Por isso, o juiz aceitou a argumentação de que ele cometeu ‘estupro culposo’, um ‘crime’ não previsto por lei. Como ninguém pode ser condenado por um crime que não existe, Aranha foi absolvido”, disse o texto do Intercept.

A influenciadora digital Mariana Ferrer alega ter sido dopada e estuprada no camarote VIP de um beach club em Jurerê Internacional, em dezembro de 2018.

O empresário chegou a ser denunciado pelo Ministério Público e teve pedido de prisão temporária aceito pela Justiça, mas que acabou suspenso em segunda instância.

A denúncia foi fulcrada no artigo 217 – A do Código Penal, que tipifica e tipifica conduta de ter conjunção carnal ou praticar qualquer ato libidinoso com:

  1. menor de 14 anos ou com alguém que, por enfermidade ou doença mental, não tenha o discernimento para a prática do ato; ou
  2. Com alguém que por qualquer outra causa, não possa oferecer resistência.

No caso em tela, a acusação se baseia na segunda hipótese.

Segundo o Estadão, em sua edição de 4 de novembro do corrente ano, a decisão da 3ª Vara Criminal de Florianópolis que inocentou o empresário André Aranha da denúncia de estupro é de 9 de setembro, e o caso ganhou repercussão ontem após o site The Intercept Brasil divulgar detalhes da sessão de audiência onde advogado Gastão insultou a jovem. Com o argumento de que a relação foi consensual, a defesa do empresário exibiu, na audiência, fotos sensuais feitas pela jovem antes do episódio, e sem qualquer relação com o fato.

O advogado de Aranha, Cláudio Gastão, chegou a dizer que a menina tem como “ganha-pão” a “desgraça dos outros”. Apesar das intimidações, o juiz não repreendeu.

A gravação da audiência mostra o advogado Cláudio Gastão da Rosa Filho expondo fotos sensuais da promoter e fazendo comentários pejorativos sobre sua conduta. Ele chamou as imagens da catarinense de "ginecológicas" e afirmou que "jamais teria uma filha do nível" de Mariana. Em momento algum houve interrupção da fala ou questionamento por parte dos demais presentes na audiência sobre a relação das fotos com o caso.

O ministro Gilmar Mendes se manifestou, no dia 3 de novembro do corrente ano, em suas redes sociais sobre a audiência referente a um caso de estupro envolvendo a promoter catarinense Mariana Ferrer, de 23 anos.

Ele classificou as cenas da sessão, divulgadas pelo portal Intercept, como "estarrecedoras", e afirmou que a Justiça não deve ser instrumento de "tortura e humilhação".

"As cenas da audiência de Mariana Ferrer são estarrecedoras. O sistema de Justiça deve ser instrumento de acolhimento, jamais de tortura e humilhação. Os órgãos de correição devem apurar a responsabilidade dos agentes envolvidos, inclusive daqueles que se omitiram", escreveu o ministro Mendes.

O promotor teria argumentado que o réu não teria como saber que a vítima estava em situação de vulnerabilidade, circunstância que passou a ser tratada como estupro culposo, acarretando a absolvição do réu, contrariando, inclusive, a tese inicial apresentada pelo Ministério Público.

Como lembrou William Garcez (O caso Mariana Ferrer: existe estupro culposo?), os crimes contra a dignidade sexual são apurados em segredo de justiça, a teor do artigo 234 – B do Código Penal.

A esse respeito, Rogério Sanches esclarece que “o aludido dispositivo, importante que se diga, foi inserido no Código Penal vigente pela Lei n. 12.015/2009, objetivando exatamente a preservação da intimidade dos envolvidos, e não apenas da vítima, quando da prática de crimes contra a dignidade sexual”.

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Tem-se do REsp 1.767.902, no voto do ministro Sebastião Reis:

“O art. 234-B do Código Penal determina o segredo de justiça nos processos de apuração dos crimes contra a dignidade sexual, não fazendo distinção entre vítima e acusado. Deve o processo correr integralmente em segredo de justiça, preservando-se a intimidade do acusado em reforço à intimidade da própria vítima”.

A vítima, no caso em tela, consoante exposto nas imagens, foi exposta a um processo de exposição pública, sem que a autoridade que presidia a audiência citada determinasse o contrário.

A matéria é de prova e deve ser exposta em sede de segundo grau.


II – O ERRO DO TIPO

Maurício Januzzi Santos e Marcus Vinicius Barbosa de Campos (Estupro culposo: isso realmente existe, artigo publicado no Estadão, em 4 de novembro de 2020) entendem que o caso envolve a aplicação do instituto penal do erro do tipo. 

Segundo o membro do Ministério Público, não há prova nos autos de que André Aranha sabia que Mariana Ferrer estava dopada.

O ônus de produzir tal prova é da acusação e presume-se a inocência do réu por conta do – já conhecido – princípio do in dubio pro reo ou presunção de inocência. Nos crimes sexuais, a palavra da vítima tem especial relevância. No entanto, ela deve estar corroborada com as outras provas produzidas nos autos. No caso de Mariana, segundo o promotor de justiça Thiago Carriço de Oliveira, isso não ocorreu.

Para o membro do Ministério Público do Estado de Santa Catarina, não foi produzida prova nos autos de que o réu André Aranha sabia que Mariana estava incapaz de fornecer consentimento para a prática do ato sexual. Reforça o seu ponto de vista afirmando que o exame toxicológico realizado em Mariana deu resultado negativo.

Diante disso, o promotor de justiça afirmou que, por uma falsa percepção de realidade – achar que Mariana Ferrer estava apta para dar seu consentimento sobre a prática do ato sexual – André Aranha prosseguiu com a ação. Por não ter sido produzido prova sem sentido contrário, essa tese prevaleceu.

Chamou atenção o trecho em que o membro do Ministério Público do Estado de Santa Catarina afirmou que André Aranha teria cometido estupro culposo. Mas o que é estupro culposo? Isso realmente existe? Claro que não.

Na realidade, a questão levantada pelo promotor de justiça - e aceita pelo magistrado - é o chamado “erro de tipo”, que, inclusive, encontra previsão legal no artigo 20 do Código Penal, cuja redação é a seguinte: o erro sobre elemento constitutivo do tipo legal de crime exclui o dolo, mas permite a punição por crime culposo, se previsto em lei.

Teria havido erro do tipo por parte do acusado?

Há erro do tipo se o agente, sem ter noção ou saber o que faz, pratica conduta ilícita. Aqui se exclui o dolo, elemento do tipo.  

No erro do tipo (artigo 20 do CP), o agente se engana sobre um elemento do tipo. O indivíduo pega a mala alheia idêntica a sua, entendendo que lhe pertence. O agente dá um tiro numa pessoa, mas entende que está dando tiro num manequim de loja, semelhante a uma pessoa.  

Diverso é o erro de proibição, onde o indivíduo se engana sobre a consciência da antijuridicidade da conduta, ignorando que o fato seria contrário ao direito.  

Se o erro for inevitável, haveria isenção da pena. Ser for evitável, haverá diminuição da pena(de um sexto a um terço, artigo 21, segunda parte do Código Penal). Sendo evitável, poderia o agente ter a consciência da ilicitude do fato.  

O dolo deve abranger a consciência e a vontade a respeito dos elementos objetivos do tipo. Assim, estará ele excluído se o autor desconhece ou se engana a respeito de um dos componentes da descrição legal do crime (conduta, pessoa, coisa etc), seja ele descritivo ou normativo.

Um erro que recai sobre o elemento normativo do tipo também é erro do tipo excludente do dolo.

Ora, o erro é uma falsa representação da realidade e a ele se equipara a ignorância, que é o total desconhecimento a respeito dessa realidade. No caso de erro do tipo, desaparece a finalidade típica ou seja, não há no agente a vontade de realizar o tipo objetivo. Como o dolo é querer a realização do tipo objetivo, quando o agente não sabe que está realizando um tipo objetivo, porque se enganou a respeito de um dos seus elementos, não age dolosamente; há erro do tipo.

Há o erro essencial que recai sobre um elemento do tipo, ou seja, sobre fato constitutivo do crime, e sem o qual o crime não existiria. O erro acidental recai sobre circunstâncias acessórias da pessoa ou da coisa estranhas ao tipo, que não constituem elementos do tipo. Sem ele o crime não deixa de existir, como disse Francisco de Assis Toledo(O erro no direito penal, 1977, pág. 630).

Resumindo, tem-se: o erro do tipo exclui o dolo, o erro de proibição afasta a compreensão da antijuridicidade. No erro do tipo, o agente não sabe o que faz; o erro de proibição ocorre quando “sabe o que faz”, mas acredita que não é contrário à ordem jurídica. O erro do tipo elimina a tipicidade dolosa; o erro de proibição pode eliminar a culpabilidade, como bem acentuou, à luz do pensamento de Eugenio Raúl Zafffaroni, Fabbrini Mirabete(Manual de direito penal, volume I, 7ª edição, pág. 163).


III - ERRO CULPOSO 

Outro é o erro culposo.

Sabe-se que o erro em que incorre o agente pode ser inevitável (invencível) ou evitável (vencível). Se o agente atuou com erro apesar dos cuidados objetivos, o erro é invencível e exclui o dolo e a culpa. Entretanto, se poderia tê-lo evitado com as cautelas exigíveis nas condições em que se encontrava, ocorrerá o erro culposo. Neste caso, o erro elimina a tipicidade dolosa (não queria a realização do tipo), mas, havendo culpa, responderá por crime culposo se a lei prevê este.

Na hipótese, diante dos elementos dos autos que foram noticiados pela imprensa, seria difícil entender que o acusado não tivesse a mínima intenção de agir na forma como foi imputado na denúncia. Dito isso, porque não há de falar em conduta imprudente em caso de estupro.


IV  – A VÍTIMA TEM LEGITIMIDADE PARA RECORRER

Pode o assistente da acusação recorrer se o Ministério Público não o fizer?

Maurício Zanoide de Moraes (Interesse e legitimação para recorrer no processo penal brasileiro. Ed.  Revista dos Tribunais, pág. 335) apresenta posição favorável a tal intervenção do assistente, pelas seguintes razões:

a)      Inexiste dispositivo processual penal expresso vedando a atuação do ofendido para fins penais;

b)      Se a intenção do legislador fosse restringir a participação da vítima no campo civil, deveria dar-lhe todos os instrumentos possíveis para provar tal direito, o que não fez;

c)   Seria irracional conceder ao ofendido uma atuação marcante, quando propuser a ação penal privada subsidiária da pública, não permitindo o mesmo no caso da assistência;

d)      A restrita possibilidade de interpor recursos apenas demonstra que o assistente é auxiliar do Ministério Público e não órgão principal;

e)      Se fosse unicamente por finalidades civis, caso já tivesse ele recebido a indenização, não poderia habilitar-se como assistente o que não acontece.

Duas correntes são apontadas no enfrentamento do problema: a) uma favorável a apelação por qualquer motivo, da parte do assistente (Mirabete, Ada Pelegrini, dentre outros); b) outra considerando que tal interesse é para garantir a condenação(Greco Filho (Manual de processo penal. Ed. Saraiva, pág. 226.) e ainda Fernando da Costa Tourinho (Código de processo penal comentado. Volume I. 9ª edição. 2005. Ed. Saraiva, pág. 665.) Guilherme de Souza Nucci (Código de Processo Penal Comentado. 5ª edição. Ed. RT, 2006, pág. 960 – 961) aplaude a posição que considera correta tal intervenção pelo assistente, visando aumentar a pena.

Parece-me conclusiva a opinião de Fernando Costa Tourinho (Manual de processo penal. 10ª ed. Ed. Saraiva, 2008, pág. 385-386), para quem a razão de entender a ingerência do ofendido em todos os termos da ação penal pública, ao lado do Ministério Público, repousa na influência decisiva que a sentença da sede penal exerce na sede civil. Em verdade, o assistente não é auxiliar da acusação, pois ele procura defender seu interesse na indenização do dano ex delicto.

Assim, se o papel do assistente fosse reforçar a acusação, poderia ele propor recursos em situações em que o juiz reconhece sua incompetência, julga exceções, etc.

Para Júlio Fabbrini Mirabete (Processo penal. 1991. Ed. Atlas, pág. 336), o instituto da assistência, embora se prenda ao interesse civil do ofendido na reparação do dano, tem ainda um interesse ligado à precípua finalidade da ação penal vinculado ao poder-dever de punir do Estado, que lhe permite recorrer, de forma supletiva, da sentença para justa aplicação da lei penal.


V – CONCLUSÕES

Sendo assim, a vítima, por sua defesa, pode apresentar recurso de apelação, no intuito de que o Tribunal de Justiça discuta se houve prova suficiente para a condenação do réu. O recurso de apelação devolverá ao juízo ad quem o exame da prova, em todas as suas circunstâncias (efeito devolutivo), de sorte a correta aplicação da lei. Lá, certamente, será questionado se o réu agiu ou não em erro do tipo.

De toda sorte, parece claro que as Corregedorias do Tribunal de Justiça local e, ainda, no âmbito do Conselho Nacional de Justiça, devem apurar em matéria de correição a conduta da autoridade judicial no caso, onde se percebe que a vítima foi exposta, em sua intimidade, de forma a sofrer uma tortura psicológica, na forma como foi tratada pela defesa do réu, acusado por crime doloso de estupro. 

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. Uma censurável exposição da vítima em juízo e uma possível aplicação do erro do tipo . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6335, 4 nov. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/86516. Acesso em: 23 dez. 2024.

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