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A guarda compartilhada em confronto com a medida protetiva de urgência

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Agenda 06/01/2021 às 11:25

4. A GUARDA COMPARTILHADA EM CONTEXTOS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA RECONHECIDOS PELO JUDICIÁRIO

  O legislador, ao impor a guarda compartilhada como regra, fundamentou tal medida no principio do melhor interesse da criança, considerando que o convívio com ambos os genitores será o que representa este melhor.

Neste cenário, e considerando o referido princípio, temos que, nas palavras de Guilherme Calmon Nogueira da Gama (2008):

O melhor interesse da criança e do adolescente se relaciona à dimensão afetivo-antropológica do cuidado, atuando simultaneamente como atitude de preocupação e inquietação pela criança e do adolescente (forma de preocupação), mas também como atitude de desvelo, solicitude, afeição e amor (forma de enternecimento e afeto pela criança). Assim, o vetor a ser observado em matéria de atribuição da guarda jurídica (unilateral ou compartilhada) tem como base o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente (GAMA, 2008, p. 248).

Objetivando alcançar o que representa o melhor interesse da criança, tal critério foi consolidado como uma cláusula geral e como um princípio protetivo do menor, que deve se moldar a cada caso concreto. Para sua real realização, não é suficiente a análise somente do que dispõe a legislação, mas sim uma análise aprofundada da situação fática dela decorrente, o qual o magistrado deverá avaliar metodicamente os interesses da criança, sejam eles materiais ou morais, respeitando a particularidade da situação e das partes envolvidas. (CARBONERA, 2000, p. 124).

Assim, tem-se que a própria Lei nº 13.058/2014 aduz que a aptidão para o exercício do poder familiar é critério basilar para aplicação da guarda compartilhada (§2º, art. 1.584 da Lei). Assim, a questão que se impõe é se o genitor que agride uma mulher que, inclusive, é mãe de seus filhos, pode ser considerado apto para o exercício da guarda compartilhada?

Em que pese a existência de muitas decisões que cerrem os olhos para uma possível inaptidão paterna em face da violência conjugal, como se existisse uma dicotomia entre agressor e pai, várias também têm sido as decisões que reconhecem essa violência como elemento desabonador da paternidade:

FAMÍLIA. AÇÃO DE GUARDA. CERCEAMENTO DE DEFESA. PRELIMINAR AFASTADA. ANIMOSIDADE ENTRE OS PAIS. EXISTÊNCIA DE PROCESSO CRIMINAL EM DECORRÊNCIA DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. IMPOSSIBILIDADE DA GUARDA COMPARTILHADA. AUSÊNCIA DE PROVAS QUE COMPROVEM A FALTA DE TRATAMENTO ADEQUADO NO LAR MATERNO. MANUTENÇÃO DA SITUAÇÃO FÁTICA ATUAL. SENTENÇA MANTIDA. 1.Cabe destacar que o juiz é o destinatário da prova, não se podendo olvidar que, nos termos do art. 370 do Novo Código de Processo Civil, cabe-lhe determinar as provas necessárias ao julgamento do mérito. Assim sendo, compete ao julgador avaliar os elementos constantes nos autos e a utilidade da prova pretendida, podendo dispensar a produção de provas que julgar desnecessárias. 2. Embora a realização do estudo do psicossocial seja considerado um dos meios de prova para convencimento do julgador, o magistrado não está vinculado somente ao referido documento, que é mero auxiliar na formação do julgamento, devendo ser analisado todo o conjunto fático probatório constante nos autos. Preliminar de cerceamento de defesa rejeitada. 3. Caso concreto em que restouclara a animosidade entre as partes, tendo em vista a existência de processos criminais por condutas praticadas pelo réu/apelante contra a autora/apelada no âmbito doméstico, o que gerou o deferimento de medida protetiva em favor da apelada e a procedência da denúncia formulada pelo Ministério Público para condenar o apelante nas penas do artigo 147 do CP, c/c artigo 5º, inciso XLVI, da Lei 11.340. 4. Sobre o tema, é sabido que, embora a guarda compartilhada seja a regra no ordenamento jurídico, deve-se dar prevalência à guarda unilateral quando essa atender ao melhor interesse da criança e quando houver beligerância entre os genitores.

(TJ-DF 20160111074056 - Segredo de Justiça 0014909-71.2016.8.07.0016, Relator: JOSAPHA FRANCISCO DOS SANTOS, Data de Julgamento: 20/02/2019, 5ª TURMA CÍVEL, Data de Publicação: Publicado no DJE : 01/03/2019 . Pág.: 873/877)

ALIMENTOS E GUARDA – Genitora x genitor – Sentença de parcial procedência – Recurso do réu – Pretensões de fixação de guarda compartilhada e redução de valor da pensão alimentícia fixada em favor do filho comum – Notícia de que a genitora do menor foi vítima de violência doméstica praticada pelo réu, tendo contra ele sido imposta medida protetiva para que dela mantenha distância de 200 m – Inviabilidade de fixação de guarda compartilhada, que pressupõe respeito e boa convivência entre os genitores – Valor da pensão alimentícia fixado pela sentença razoável frente às despesas presumidas – Sentença mantida – RECURSO NÃO PROVIDO.

(TJ-SP - AC: 10012548920198260045 SP 1001254-89.2019.8.26.0045, Relator: Miguel Brandi, Data de Julgamento: 04/12/2020, 7ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 04/12/2020)

AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE DIVÓRCIO. GUARDA PROVISÓRIA UNILATERAL À GENITORA. JUSTA CAUSA. MELHOR INTERESSE DA MENOR. REVERSÃO OU COMPARTILHAMENTO. INDEFERIMENTO. 1. Existindo no contexto probatório dos autos, elementos (extensa carga laboral, distância do local de trabalho, existência de outros filhos em localidade longínqua e histórico de violência doméstica) que evidenciam a impossibilidade de o genitor desempenhar a contento, a guarda unilateral e até mesmo compartilhada da infante, impõe-se, em atenção ao melhor interesse da infante, manter a guarda provisória unilateral à genitora. AGRAVO DE INSTRUMENTO CONHECIDO E DESPROVIDO. DECISÃO MANTIDA.

(TJ-GO - AI: 02877143920198090000, Relator: SÉRGIO MENDONÇA DE ARAÚJO, Data de Julgamento: 27/08/2019, 4ª Câmara Cível, Data de Publicação: DJ de 27/08/2019)

AGRAVO DE INSTRUMENTO. GUARDA COMPARTILHADA. INDEFERIMENTO. ADEQUAÇÃO, NO CASO CONCRETO. Em juízo de cognição sumária, mostra-se adequada a decisão que deferiu guarda unilateral à mãe, bem assim fixou o esquema de visitação paterno, em face de medida de proteção aplicada como consequência de episódio de violência doméstica. Em face da medida de proteção, por ora não cabe mesmo fixar guarda compartilhada. NEGARAM PROVIMENTO. (Agravo de Instrumento Nº 70073644924, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Rui Portanova, Julgado em 13/07/2017).

(TJ-RS - AI: 70073644924 RS, Relator: Rui Portanova, Data de Julgamento: 13/07/2017, Oitava Câmara Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 18/07/2017)

 Fundamental para compreensão do que de fato representa o melhor interesse dos filhos, é analisar todos os fatores que rodeiam a relação, inclusive a produção de um tipo de violência que afeta, de diversas maneiras, direta e indiretamente, a prole.

É primordial, para a busca da saúde física e mental dos filhos, não desconsiderar e nem naturalizar a violência doméstica, pois, será que um pai que machuca a mãe de seus filhos de fato se mantém apto ao exercício da guarda? Essa pergunta precisa ser feita pelos magistrados e magistradas quando das decisões sobre a definição ou não da guarda, devendo ser respondida com técnica e imparcialidade para que de fato o melhor interesse dos filhos seja alcançado e a justiça prevaleça.


5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pretexto da Lei, não pode o juiz ou juíza desconsiderar um contexto fático de violência, sob um falso paradigma de melhor interesse da criança, e definir a guarda compartilhada simplesmente por ser esta, em face da Lei nº 13.058/2014, a regra.

Importante registrar que, com a promulgação da Lei Maria da Penha, que desnaturalizou, visibilizou e tipificou os vários tipos de violência, impõe-se ao direito de família estar atento aos contextos familiares paralelos, mesmo quando fugirem de sua competência específica.

Nesse sentido é importante considerar, nas decisões das Varas de Direito das Famílias, que existe uma sociedade patriarcal que hierarquiza gêneros e objetifica mulheres a tal ponto de a violência ser tida como uma forma de controle. Nessa engrenagem, em muitos casos, os filhos são meios e são vítimas também dessa violência, pois acabam sendo utilizados para ferir a vida de mulheres que quebraram o ciclo da violência, mas que continuam sendo vitimadas por genitores inaptos e irresponsáveis, mas legitimados pelo judiciário.

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Indubitavelmente, a imposição da guarda compartilhada não pode ser uma medida cega e desatenta, para não ser mais um instrumento de controle machista. A guarda compartilhada, para que de fato atenda aos seus objetivos nobres, precisa se alinhar à realidade, e ser uma construção, não uma imposição. Do mesmo modo, é importante que o impacto da violência doméstica sobre os filhos seja considerado, e que os agressores sejam considerados inaptos para o exercício da guarda, especialmente em casos em que há medida protetiva de urgência deferida.

Nesse sentido, acertadamente, várias decisões têm reconhecido o fator violência doméstica e familiar contra as mulheres como desabonador para o exercício do poder familiar e, portanto, da guarda do agressor, sendo este, ao nosso ver, um progresso de um judiciário atento às desigualdades de gênero que ainda permeiam a sociedade da qual a família é a semente e precisa, para germinar saudavelmente, desenvolver-se sem o controle da violência.


6. REFERÊNCIAS

Agredir a mulher sem ameaçar filhos não tira direito à guarda compartilhada. Disponível em <https://www.conjur.com.br/2017-mar-24/agredir-mulher-nao-tira-direito-guarda-compartilhada-filhos>. Acesso em 31.12.2020.

BRASIL, Lei nº. 11.340, de 7 de agosto de 2006, (Lei Maria da Penha).

CARBONERA, S. M. Guarda de filhos: na família constitucionalizada. Porto Alegre: Fabris, 2000.

Debatedoras defendem exceções à guarda compartilhada em casos de violência. Disponível em <https://www.camara.leg.br/noticias/537776-debatedoras-defendem-excecoes-a-guarda-compartilhada-em-casos-de-violencia/>. Acesso em 31.12.2020.

DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça: a efetividade da lei 11.340/2006 de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010.

FILHO, Waldyr Grisard. Guarda Compartilhada: um novo modelo de responsabilidade parental. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.

GAMA, G. C. N. Princípios constitucionais de direito de família: guarda compartilhada à luz da lei nº 11.698/08: família, criança, adolescente e idoso. São Paulo: Atlas,2008.

LÔBO, Paulo. Direito Civil: Famílias. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

Os filhos da violência de gênero. Disponível em: <https://professoraalice.jusbrasil.com.br/artigos/493876113/os-filhos-da-violencia-de-genero>. Acessado em 01.01.2021.

STJ: falta de diálogo entre ex-cônjuges não inviabiliza guarda compartilhada. Disponível em: https://correio-forense.jusbrasil.com.br/noticias/319524622/stj-falta-de-dialogo-entre-ex-conjuges-nao-inviabiliza-guarda-compartilhada?ref=amp. Acesso em 01.02.2021.

URAGE, M. A. A guarda compartilhada obrigatória à luz do princípio do melhor interesse da criança. Disponível em: <https://juridicocerto.com/p/advmicheleurague/artigos/a-guarda-compartilhada-obrigatoria-a-luz-do-principio-do-melhor-interesse-da-crianca-2327>. Acesso em 30 de dezembro de 2020.

VAN DAL, S. L. V.; BONDEZAN, D. T.. A nova lei de guarda compartilhada obrigatória (lei 13.058/2014) e os efeitos para a formação da criança. Disponível em: <https://ibdfam.org.br/artigos/1339/A+lei+de+guarda+compartilhada+obrigat%C3%B3ria+(lei+13.0582014)+e+os+efeitos+para+a+forma%C3%A7%C3%A3o+da+crian%C3%A7a+>. Acesso em 30 de dezembro de 2020.


Notas

[1] Brasil é o quinto país do mundo em ranking de violência contra a mulher. Disponível em <http://g1.globo.com/hora1/noticia/2015/11/brasil-e-o-quinto-pais-do-mundo-em-ranking-de-violencia-contra-mulher.html>. Acesso em 27.12.2020.

[2] STJ: falta de diálogo entre ex-cônjuges não inviabiliza guarda compartilhada. Disponível em: https://correio-forense.jusbrasil.com.br/noticias/319524622/stj-falta-de-dialogo-entre-ex-conjuges-nao-inviabiliza-guarda-compartilhada?ref=amp. Acesso em 01.02.2021.

[3] Os filhos da violência de gênero. Disponível em: <https://professoraalice.jusbrasil.com.br/artigos/493876113/os-filhos-da-violencia-de-genero>. Acessado em 01.01.2021.

[4] Processo que corre em segredo de justiça no qual a autora deste texto, Anne Caroline Fidelis de Lima, funciona como advogada da vítima.

[5] Agredir a mulher sem ameaçar filhos não tira direito à guarda compartilhada. Disponível em <https://www.conjur.com.br/2017-mar-24/agredir-mulher-nao-tira-direito-guarda-compartilhada-filhos>. Acesso em 31.12.2020.

[6] Debatedoras defendem exceções à guarda compartilhada em casos de violência. Disponível em <https://www.camara.leg.br/noticias/537776-debatedoras-defendem-excecoes-a-guarda-compartilhada-em-casos-de-violencia/>. Acesso em 31.12.2020.

[7] Idem.

Sobre a autora
Anne Caroline Fidelis de Lima

Advogada, bacharela em Direito pela Universidade Federal de Alagoas, professora universitária, mestra em sociologia pela Universidade Federal de Alagoas, pós-graduada em direito civil, processo civil pela Escola Superior de Advocacia da OAB/AL e em gestão pública municipal pela Universidade Federal de Alagoas.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Anne Caroline Fidelis. A guarda compartilhada em confronto com a medida protetiva de urgência. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6398, 6 jan. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/87689. Acesso em: 22 dez. 2024.

Mais informações

Artigo apresentado como trabalho de conclusão de pós-graduação da UNIBF

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