Resumo: Através de um levantamento bibliográfico sobre a nova lei de improbidade administrativa, baseada nas alterações promovidas pelo diploma de nº 14.230 de 2021, e as questões superadas do diploma legislativo pela redação anterior, busca-se entender a maior restrição à definição do conceito de ato ímprobo passível de responsabilização, bem como uma avaliação sobre os avanços como forma de concretização dos objetivos constitucionais expostos na Carta de 1988.
Palavras-chave: Improbidade administrativa; accountability; transparência; moralidade pública.
1. Introdução
Em 2021 aconteceu a aprovação da Lei nº 14.230 que trouxe para o ordenamento jurídico alterações significativas na lei nº 8429 de 1992, com a inclusão de novos preceitos em matéria de responsabilização através da regulamentação do artigo 37 da Constituição Federal. A quantidade de alterações foi tão efetiva que o diploma passou a ser conhecido como nova lei de improbidade administrativa.
Dentre diversas questões relacionadas à nova lei, no presente ensaio busca-se destacar qual a noção de natureza da sanção de improbidade e quais os requisitos para sua configuração que passam a ser mais restritos em razão da necessidade de entender um novo conceito de administração pública. Em um primeiro momento avaliaremos o histórico da lei de improbidade e seu novo diploma legal, com reforço do que seria o conceito de ato ímprobo, e todas as dificuldades inerentes à essa avaliação.
2. A nova lei de Improbidade Administrativa
Em nosso ordenamento tínhamos como diploma responsável pela regência da temática de improbidade a Lei nº 8429 de 1992, que trazia a regulamentação do artigo 37 e incisos da Constituição Federal, que traz em seu caput os princípios explícitos, gerais, que devem ser observados pela administração pública, in verbis:
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte (...)
De maneira mais precisa, o §4º do mesmo dispositivo assim define:
(...)§ 4º - Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível.
Ou seja, todo ato que importasse em violação dos princípios explícitos no caput do artigo 37 da Constituição Federal, poderiam, em tese, serem enquadrados como atos de improbidade sujeitando assim seus agentes ao dever de responsabilização, ressarcimento, sem exclusão da possibilidade de responsabilidade no campo criminal.
Nessa diapasão, insta destacar que a probidade administrativa é uma forma do princípio da moralidade, pois:
A probidade administrativa consiste no dever de o funcionário servir a Administração com honestidade, procedendo no exercício das suas funções, sem aproveitar os poderes ou facilidades delas decorrentes em proveito pessoal ou de outrem a quem queira favorecer. Cuida-se de uma imoralidade administrativa qualificada. A improbidade administrativa é uma imoralidade qualificada pelo dano ao erário e correspondente vantagem ao ímprobo ou a outrem" (SILVA, 2000, p. 648)
De maneira expressa, a Constituição Federal traz então, em alguns dispositivos, a previsão da atos de improbidade administrativa, determinando ao legislador constituído que os autores de atos ímprobos estejam sujeitos às seguintes sanções: a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível.
No entanto, a Constituição não trouxe a definição do que vem a ser improbidade administrativa, deixando ao legislador infraconstitucional tal dever e foi por meio da antiga lei 8429 que esse trabalho foi realizado, através dela tínhamos a definição dos atos de improbidade a partir da exemplificação de casos específicos, tipificando as inúmeras situações em que tais condutas configurarão atos de improbidade administrativa.
O Dicionário Houaiss define a improbidade como “ausência de probidade; desonestidade; ação má, perversa; maldade, perversidade” e o Dicionário Aurélio, na mesma linha, como “mau caráter, desonestidade”. José Afonso da Silva define a improbidade administrativa como uma imoralidade administrativa qualificada pelo dano ao erário e correspondente vantagem ao ímprobo ou a outrem.
O STJ, em diversos precedentes definia a improbidade como a ilegalidade tipificada e qualificada pelo elemento subjetivo da conduta do agente, sendo indispensável para sua caracterização, que a conduta do agente seja dolosa para a tipificação das condutas descritas nos artigos 9º a 11 da Lei 8.429/92, após a alteração normativa trazida pela Lei nº 14.230, de 2021, que passa a abolir condutas culposas como atos de improbidade, pois, de acordo com o § 1º do art. 1º da mencionada Lei, “consideram-se atos de improbidade administrativa as condutas dolosas tipificadas nos arts. 9º, 10 e 11 desta Lei, ressalvados tipos previstos em leis especiais.”
No ano de 2012, o então Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Carlos Ayres Britto, avaliou a Lei 8.249/92 como:
“O mais denso e importante conteúdo do princípio da moralidade, do decoro e da lealdade. Em seus vinte anos de vigência, a norma revolucionou a cultura brasileira, ao punir com severidade os desvios de conduta dos agentes públicos. A Lei de Improbidade Administrativa é revolucionária porque modifica para melhor a nossa cultura, com ela, estamos combatendo com muito mais eficácia os desvios de conduta e o enriquecimento ilícito às custas do Poder Público”
Podemos então definir ato de improbidade como aquela atuação revestida de má-fé ou desonestidade por meio da qual o sujeito dolosamente pratica qualquer das condutas previstas nos artigos da lei com as alterações da nova lei 14.230 de 2021.
Nesse ponto, relacionado à exclusão da modalidade culposa dos atos de improbidade administrativa, visa destacar que a opção do legislador foi a de buscar a não banalização da improbidade administrativa, colocando essa sanção como uma última ratio efetiva, pois apesar da busca constitucional para a moralidade da administração pública, não pode existir uma paralisia causada pelo medo de errar dentro das instituições, devendo existir outros meios que possam coibir atos incorretos e primar pela efetividade institucional.
Importante destacar que não se trata de um retrocesso ou ainda uma proteção deficiente do valor constitucional imposto à probidade administrativa, uma vez que, conforme dito, no caso de erro grosseiro ou culpa grave, a eficiência administrativa e a integridade do patrimônio público e social seguem tuteladas por outras esferas normativas de apuração, como na esfera cível, sem prejuízo de processo administrativo disciplinar e eventual ação penal, na hipótese do crime de peculato culposo.
Antes mesmo da alteração promovida em 2021, alguns autores já levantavam o erro que existia na configuração da chamada improbidade culposa, uma vez que a sanção de improbidade não se traduzia em sanção penal, ou não deveria, e deveriam existir meios outros, inclusive listados constitucionalmente, para correção de atos e falhas na administração:
É inconstitucional a modalidade culposa no caso de dano ao erário ao argumento de que “a improbidade administrativa funciona como uma ‘espécie do gênero imoralidade administrativa, qualifi cada pela desonestidade de conduta do agente público, mediante a qual este se enriquece ilicitamente, obtém vantagem indevida para si ou para outrem ou causa dano ao erário’. Assim sendo, somente a conduta dolosa (consciente) é que deverá ser considerada, em tese, como uma possível improbidade administrativa, sob pena de vulgarização da própria norma, com ferimento ao princípio da razoabilidade [...]. A devassidão a que se refere José Afonso da Silva, caracterizadora da improbidade administrativa, por certo, deverá vir contida na índole da conduta do agente público, ou na vontade de lesar ao erário, pois do contrário falta tipicidade para enquadrar o ato culposo em ímprobo. Nem toda lesão ao patrimônio público pode ser considerada como reveladora de um ato de improbidade administrativa, pelo fato de a conduta do agente público ser um elemento caracterizador do ilícito”. E, salienta que o entendimento no sentido de que “sem a figura do dolo, presente no ato do agente público, não confi gura improbidade administrativa também foi recepcionado pelo Poder Judiciário, onde o STJ, pelo RESP nº 213.994-0/ MG deixou cristalinamente demonstrado que a ‘A lei alcança o administrador desonesto, não o inábil’” (MATTOS, 2010. p. 269).[1]
Em suma: a improbidade administrativa se refere a conduta do agente público que acarrete: i) enriquecimento ilícito, ii) lesão ao Erário ou iii) violação dos princípios da Administração, praticados de forma dolosa e qualificados por um plus: a má-fé do agente, caracterizada pela verificação fática objetiva da obtenção de vantagem indevida para si ou para outrem, com repercussão no patrimônio público e social. Continua válida, portanto, a jurisprudência consolidada pelo Superior Tribunal de Justiça, no sentido de que basta o dolo genérico qualificado pela má-fé ou desonestidade para configurar a improbidade (AgInt no REsp 1872310/PR, Relator Ministro Benedito Gonçalves, PRIMEIRA TURMA, julgado em 05/10/2021, DJe 08/10/2021).
Ainda no campo da improbidade cumpre ressaltar a discussão sobre a natureza da sanção de improbidade como sendo penal ou cível. Alguns autores defendem que em que pese a improbidade tramitar na esfera cível, seria visível que os princípios que devem nortear o processo são os do processo penal e não os do processo civil, já que as sanções previstas em lei possuem natureza sancionatória penal.
Ou seja, a lei de improbidade tem viés eminentemente sancionador e penalizador, sendo inclusive bem graves se comparadas com as sanções previstas no Código Penal, por tal razão, deve ser um processo orientado pelo processo penal. Daí porque as regras que devem prevalecer no ambiente processual são as que balizam o processo penal e não o processo civil (BERTI, 2016).
Todavia, o entendimento majoritário é de que a ação de responsabilização por improbidade administrativa tem natureza cível, O Ministério Público ou pessoa jurídica de direito público que tenha sido prejudicada, ou seja, Município, Estado ou União (conforme decisão confirmada recentemente pelo STF nas ADIS 7042 e 7043), podem ingressar na Justiça com uma ação civil pública por ato de improbidade administrativa:
“A pessoa contra a qual poderá ser ajuizada a ação será sempre um agente público, incluindo, caso exista, terceiros beneficiados pelo ato ilícito. O terceiro sozinho não responde por improbidade, só pode fazê-lo com a participação de um agente público, embora possa responder isoladamente por sua conduta, com base na Lei Anticorrupção (Lei 12.846/2013)”[2]
Assim sendo, a ação de improbidade administrativa tem natureza civil e não criminal, posição inclusive referendada pelo STF na Pet 3240 de 2018, ao definir que o foro especial por prerrogativa de função previsto na Constituição Federal em relação às infrações penais comuns não é extensível às ações de improbidade administrativa, pois essas possuem natureza civil.
E é justamente a partir do debate da natureza da sanção e da necessidade de existência de outras vias e instâncias capazes de responsabilizar o administrador que eventualmente pratica alguma falha ou ato grave que reside não apenas a iniciativa do legislador em buscar colocar a sanção de improbidade como última ratio como na busca de incentivar uma maior accountability dentro das instituições.
3. Conclusão
Desde a Constituição Federal de 1988 inaugura-se a preocupação com a moralidade administrativa, convertendo-se a persecução da imoralidade na prática, por muitos anos, através basicamente das ações de improbidade administrativa. Com o aumento dos índices de corrupção, demora excessiva na tramitação das ações de improbidade e ausência de outros meios de controle dos atos administrativos, receber as alterações legais que permitiram conferir maior proporcionalidade à responsabilização por atos ímprobos é uma forma de trazer racionalidade ao sistema.
Referências
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SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2005.
Notas
[1] Devidamente citado no trabalho de OLIVEIRA, Márcio Berto Alexandrino de. O crater penal da ação de improbidade administrativa. Disponível em: <https://emporiododireito.com.br/leitura/o-carater-penal-da-acao-de-improbidade-administrativa> . Acesso em 13 set 2022.
[2] https://comunicacao.mppr.mp.br/2020/03/21439/Improbidade-administrativa.html