Capa da publicação Ativismo judicial transnacional: expandir os horizontes das cortes é possível?
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Expandir os horizontes das cortes é possível?

Analisa-se a abertura ao ativismo judicial transnacional e ao 'judicial borrowing' a partir da disputa interpretativa sobre a Lei de Anistia travada entre o STF e a Corte Interamericana de Direitos Humanos.

RESUMO

Analisa a possibilidade de construção de um diálogo entre cortes, na perspectiva do que se convencionou chamar ativismo judicial transnacional, fenômeno decorrente do mais amplo movimento em torno da interculturalidade jurídica, ou, como se prefere, da transjuridicidade. Nesse contexto, apresenta algumas reflexões em torno da mundialização dos processos cognitivos e de aplicação prática da jurisprudência colhida em órgãos judiciais estrangeiros, em especial, tribunais constitucionais e cortes internacionais, na modalidade de simples empréstimo retórico (judicial borrowing). Adota como paradigma de análise dessa possibilidade discursiva a questão relativa à (in)constitucionalidade da Lei de Anistia brasileira, mantida preservada pelo Supremo Tribunal Federal, em dessincronia com o que foi logo em seguida decidido pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (inconvencionalidade). Em arremate, propõe questionar a possibilidade do uso de precedentes emprestados, de modo a ampliar o diálogo judicial transnacional e, consequentemente, o horizonte de interpretação sobre controvérsias que não se resolvem apenas ancoradas na cultura jurídica doméstica.

Palavras-Chaves: Diálogo entre cortes; transjuridicidade; judicial borrowing; tribunais internacionais; jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos; Caso Guerrilha do Araguaia; Lei de Anistia brasileira; ADPF 153.


1. Introdução

A tradição legal da América Latina experimenta um momento peculiar em que a democracia e o constitucionalismo plantados no solo de nações muito jovens, assaz violentadas por diversos regimes ditatoriais, geram transformações e compromissos dirigidos por novos fundamentos da organização sócio-política, em que a valorização dos direitos humanos, a ética republicana e accountabillity se mostram inegociáveis.

No novo arranjo institucional, peças foram deslocadas e conceitos revisitados. Imprecisões ou exageros terminológicos à parte, na medida em que se nota a expansão global do Poder Judiciário e a invasão do direito em relação às demais esferas da vida[1], concomitante ao surgimento de uma sociedade de litigantes[2], vem se observando a caracterização de uma nova racionalidade para o Judiciário, em que a função de julgar assume feições de uma nova religião, e ocupa um lugar privilegiado na nova cena política. A demanda da justiça vem do desamparo da política, anuncia Paul Ricoeur no prefácio do excepcional trabalho de Garapon[3].

Para além do direito doméstico, nota-se cada vez mais a possibilidade de protrair a defesa dos direitos humanos em esferas de jurisdição internacional de direitos humanos, sempre que os ordenamentos internos se afigurem insuficientemente preparados para acolher o nível discursivo baseado em direitos da humanidade (human rights-based approach).

No presente trabalho, serão apresentadas sondagens preliminares acerca da possibilidade de um ativismo jurídico transnacional, enquanto instrumento de defesa jusfundamental, e, ainda, as condições para a compreensão do fenômeno denominado diálogo entre as cortes, por meio da percepção dialética de casos concretos. Para aprofundar a análise, toma-se a disputa interpretativa estabelecida entre o Supremo Tribunal Federal e a Corte Interamericana de Direitos Humanos, no julgamento da validade da Lei de Anistia brasileira, a partir dos respectivos acórdãos da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 153 e do Caso Gomes Lund e outros versus Brasil (Caso Guerrilha do Araguaia).

De antemão, uma advertência metodológica: não será objeto desse trabalho analisar a questão a relação hierárquica que deve pautar ordens jurídicas distintas, tal como se discute em diversos trabalhos de maior fôlego, que sempre remetem a questões doutrinárias célebres[4] e construções judiciais igualmente conhecidas.[5]

2. Internacionalização do Direito: primeiros passos em direção ao ativismo jurídico transnacional e ao diálogo entre juízes

Sob os conceitos de ativismo judicial e de judicialização da política, o jurídico se transforma em promessa do novo e do resgate de dívidas históricas, no sentido de suplantar clamores sociais nunca antes (satisfatoriamente) respondidos.

Para Luís Roberto Barroso, o fenômeno da judicialização e do ativismo judicial são análogos, sendo aquele decorrente do modelo constitucional adotado como resultado factual do controle jurisdicional previsto no sistema de Justiça, ao passo em que o ativismo é pura atitude, ou seja, deriva da escolha de um modo específico e proativo de interpretar a Constituição, expandindo o seu sentido e alcance. O papel do Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento de questões complexas, tais como a discussão da fidelidade partidária, sobre a possibilidade de descriminalização de aborto de fetos anencefálicos e a autorização de experiências científicas com células tronco-embrionárias, são exemplos recentes de como o Judiciário se torna um complexo reduto da luta política da sociedade, nos temas em que possa ser suscitado o que se convencionou chamar de desacordos morais razoáveis (reasonable disagreements), ou seja, situações argumentativas desconcertantes para a sociedade, em que a mediação política não é capaz de perceber a porosidade das posições antagônicas que se estabelece a partir do dissenso (complexidade social).[6]

Em outra direção, vem se tornando recorrente a ocorrência do fenômeno denominado diálogo entre juízes, consistente na incorporação de argumentos extraídos de decisões no âmbito global, seja aquelas promanadas em tribunais estrangeiros ou em cortes de jurisdição eminentemente internacional (cortes regionais ou tribunais internacionais). Essa é a advertência de Allard e Garapon: O Direito tornou-se um bem intercambiável. transpõe as fronteiras como se fosse um produto de exportação. Passa de uma esfera nacional para outra, por vezes infiltrando-se sem visto de entrada[7].

Esses autores chamam a atenção para reconhecimento de que os juízes se afirmam como engenheiros da mundialização. Para esses autores, trata-se do comércio de juízes[8]. Eles reconhecem que, cada vez mais, se recorre a soluções argumentativas externas para equalizar problemas do próprio sistema. O precedente utilizado por Allard e Garapon ilustra o conceito: em um caso decidido em 2003 (Lawrence versus Texas), a Suprema Corte dos Estados Unidos recorreu à jurisprudência da Corte Européia de Direitos do Homem (Dudgeon versus United Kingdom, 1981) para decidir pela inaplicabilidade de legislação do Estado do Texas que proibiam relações homossexuais, caracterizadas como sodomia, o que gerou grande embate ideológico.

A Corte Constitucional da África do Sul também consagra um exemplo notável de como é possível esse diálogo entre juízes, que alguns autores denominam de comunidade global de cortes, expressão cunhada por Anne-Marie Slaughter[9] . O caso State versus Makwanyane, de 1995, é representativo: o Tribunal sul-africano declarou a inconstitucionalidade da pena de morte, invocando argumentos hauridos do Tribunal Europeu de Direitos Humanos e de incontáveis tribunais constitucionais ao redor do globo.[10] Esse caso é, portanto, o que Sofia Ciuffoletti considera paradigma do diálogo judicial global[11].

A relevância da articulação entre a instrumentalização argumentativa entre diferentes sistemas judiciais foi evidenciada pelo juiz Antonin Scalia, da Suprema Corte americana, no julgamento do caso Roper versus Simmons, também relacionado à pena de morte: embora as opiniões de nossos próprios cidadãos sejam essencialmente irrelevantes para as decisões da corte nos dias atuais, os pontos de vista de outros países e da comunidade internacional estão no centro das atenções[12]. Apesar disso, os EUA pode ser considerado completamente contrário ao diálogo transnacional[13].

Delmas-Marty considera que essa dialética possibilitará inúmeros avanços, entre os quais um pluralismo ordenado, a fim de evitar o sobreposição de uma ordem hegemônica ou, por outro lado, quedar-se à desordem impotente[14]. O diálogo entre juízes apresenta-se como relevante mecanismo para a superação de um provincialismo dissociante ou de um internacionalismo hegemônico que, de modo oscilante, marcam as relações entre cortes domésticas e transnacionais.[15]

Interessante, nesse sentido, é o conceito de judicial borrowing, cuja tradução literal é empréstimo judicial, consistente na utilização simples de jurisprudência estrangeira, sem a devida depuração terminológica, jurídico-etiológica e, até mesmo epistemológica, que marca o método do Direito Comparado[16]. Com o empréstimo temático, tribunais se habilitam a sopesar fundamentos esposados em cortes estrangeiras, sobretudo internacionais e constitucionais, espelhando na decisão a ser produzida, no âmbito doméstico, os fundamentos jurídicos e motivações sociais, históricas e, em geral, pragmáticas, hauridos da interpretação do repertório de origem, ainda que díspares e incongruentes os elementos circundantes do sistema ao qual se recorre, em relação ao receptor.

A questão se põe na possibilidade de intercâmbio de normas equivalentes oriundas de múltiplas fontes e o tratamento conferido a essas normas em casos similares enfrentados ao redor do globo por tribunais dos mais diversos quilates, em que pese ser mais verificável essa incidência de cruzamentos interpretativos entre as cortes constitucionais, como bem adverte Sofia Ciuffoletti, que, em obra pioneira, destaca o aparato conceitual e o modelo de análise do fenômeno:

A influência da jurisprudência estrangeira no processo de argumentação dos juízes, em especial os juízes constitucionais (...) é uma prática que se manifesta historicamente, embora com características variadas e significados, desde o início do Direito moderno. Nos últimos anos tem-se, no entanto, imposto aos teóricos do constitucionalismo contemporâneo a observação de fenômeno que abriu novas perspectivas de reflexão teórica, empurrando a doutrina a ponderar explicações hermenêuticas contrapostas. Pretendemos, aqui, para se referir ao fenômeno do "diálogo" entre os tribunais, que se manifesta como uma atitude receptiva de várias cortes constitucionais, superiores e até internacionais, que esta gradualmente aumentando, nos últimos tempos, de um modelo geral de empréstimos judiciais, a mera importação de jurisprudência estrangeira, caracterizada pela dependência passiva de categorias epistemológicas de alguns poucos países exportadores legais e constitucionais, com uma pesquisa jurisprudencial de modelos avançados de proteção consciente e aberto a nível mundial.[17]

É preciso pontuar que essa prática, apesar de ser muito disseminada, ainda foi pouco analisada sob essa perspectiva pragmática específica, havendo poucos trabalhos acadêmicos se debruçado sobre o tema. Os autores mais conhecidos preferem usar nomenclatura e (pretensos) métodos que oscilam entre o constitucionalismo e o Direito Internacional, traduzindo esse fenômeno de mundialização jurisprudencial sob várias denominações. Preferimos chamar genericamente esse fluxo teórico de transjuridicidade.

Para Peter Häberle, o Estado Constitucional e o Direito Internacional transformam-se em conjunto. O direito constitucional não começa onde cessa o Direito Internacional. Também é válido o contrário, ou seja, o Direito Internacional não termina onde começa o Direito Constitucional.[18] Na esteira da constatação de André de Carvalho Ramos, a questão da pluralidade das ordens jurídicas é investigada há muito pela doutrina constitucionalista, sob diversas denominações: constitucionalismo multinível, interconstitucionalidade, transconstitucionalismo, cross-constitucionalismo e constitucionalismo transnacional. Os autores destacados por Carvalho dentre os quais Aragón Reyes, Gomes Canotilho e Marcelo Neves, têm em comum uma abordagem relacionada ao direito constitucional e demonstram a saudável preocupação dos constitucionalistas com a ascensão do Direito Internacional, representada, por sua vez, na ótica dos internacionalistas, na expressão internacionalização do Direito.[19] O mesmo autor destaca, assim, o recrudescimento do uso retórico e argumentativo da ratio decidendi internacional para fundamentar a decisão nacional, incrementando seu poder de convencimento, especialmente útil nas rupturas hermenêuticas promovidas pelos Tribunais nacionais.

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Não obstante, observa-se recalcitrante incongruência entre as jurisdições internacional e domésticas, sobretudo em matéria de direitos humanos, na qual é possível falar-se mesmo em autismo para com o direito internacional, como a observação de Burgorgue-Larsen, sobre a cultura judicial norte-americana e sua postura de total desacordo com cláusulas de acesso à justiça internacional o caso dos prisioneiros de Guantánamo; Da mesma maneira que o direito sai de suas fronteiras nacionais o que é para Mireille Delmas-Marty a marca da internacionalização do direito, o diálogo faz o mesmo.[20]

Com apoio na opinião de Anne-Marie Slaughter, Cecília MacDowell esclarece:

a resolução internacional de disputas tem sido substituída cada vez mais pela litigância transnacional, uma significativa mudança no sistema jurídico internacional. Tradicionalmente, as disputas internacionais envolviam Estados e eram resolvidas sob os auspícios do sistema internacional. A litigância transnacional, ao contrário, engloba cortes internas e internacionais, envolvendo casos entre Estados, entre indivíduos e Estados e entre indivíduos através de suas fronteiras.[21]

Exemplo disso é a sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) sobre a Guerrilha do Araguaia (Gomes Lund contra o Brasil, de 2010), cujas conclusões operam no sentido de indigitar o Brasil por sua leitura equivocada sobre o alcance da Lei de Anistia Lei nº 6.683/79), que vem impedindo a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos incompatíveis com a Convenção Americana de Direitos Humanos. O processo nasceu do ativismo de três ONGs brasileiras: o Centro Pela Justiça e o Direito Internacional, o Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro e, ainda, a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos de São Paulo.

Ocorre que, antes da decisão Corte IDH, o Supremo Tribunal Federal (STF), em abril de 201, havia julgado improcedente Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 153) proposta pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) para declarar inconstitucional a Lei de Anistia, um dos últimos óbices do resgate da verdade e da memória, na tardia transição democrática brasileira.

Sobre esses dois julgados que, embora relativos ao mesmo caso, se distanciam fatalmente em suas conclusões, serão sopesadas algumas impressões nos tópicos seguintes. Nossa hipótese central é a de que a internacionalização do direito promoverá a chegada de uma nova etapa do fenômeno ativismo judicial por um lado, mas por outro, caso o diálogo entre os sistemas jurídicos não seja adequadamente concertado, suceder-se-á a crise entre ordens jurídicas justapostas, como no caso concreto em discussão.

3. O choque das placas tectônicas e o caso brasileiro acerca da lei de anistia: desacordo entre planos jurídicos contrapostos

No julgamento da ADPF 153, os juízes do STF reconheceram ter se operado, à época da promulgação da lei em xeque, um acordo amplo e irrestrito de toda sociedade, com validade política e social à vista do momento histórico em que foi realizado[22]. O então Presidente da Corte, Min. Cezar Peluso, afirmou não conseguir entender o porquê de a OAB questionar esse acordo mais de 30 anos depois, tendo dele participado, destacando o mérito conservador do voto do Relator, Min. Eros Roberto Grau, que praticamente identificou naquela quadra a ocorrência do perdão e da anistia de atos grotescos da recente história, sobremaneira aqueles eivados do mais profundo e horrendo autoritarismo. Como se a sociedade não fosse refém do Estado não-democrático; como se a OAB não estivesse submetida ao jugo cruel da exceção.

Essa mesma OAB, ao ajuizar a Ação Constitucional, fixou os pontos da controvérsia: interpretação conforme à constituição, de modo a declarar, à luz dos seus preceitos fundamentais, que a anistia concedida pela lei aos crimes políticos ou conexos não se estende aos crimes comuns praticados pelos agentes da repressão contra opositores políticos, durante o regime militar (1964/1985). Os fundamentos da ADPF identificam o descumprimentos dos seguintes preceitos fundamentais: (i) isonomia em matéria de segurança (CRFB, art. 5o, caput), tendo a lei estendido a anistia a classes indefinidas de crimes; (ii) o dever do Poder Público de não ocultar a verdade (CRFB, art. 5o, XXXIII); a violação aos princípios democrático e republicano (CRFB, art. 1o); e o desrespeito ao valor supremo da dignidade humana (CRFB, art. 1o, III).

A discussão, no âmbito da Corte, gravitou em torno do sentido normativo atribuído ao art. 5º, caput e incisos III e XXXIII da CRFB, pugnando o STF pela não violação aos princípios democrático e republicano. Na visão estreita dos Ministros, a Lei nº 6.683, de 1979, porquanto veicula uma decisão política assumida naquele momento o momento da transição conciliada de 1979 é uma lei-medida, não se tratando de regra dirigida para o futuro, dotada, como as normas regulares, de abstração e generalidade; Há de ser interpretada a partir da realidade no momento em que foi conquistada[23]. E nesse contexto, a Lei de Anistia se harmoniza com a ordem constitucional vigente, como assente na jurisprudência da Corte, como aconteceu na sucessão das frequentes anistias concedidas, no Brasil, desde a República, afastando, assim, a importância da Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes e Lei nº 9.455, de 7 de abril de 1997, que define o crime de tortura, e, ainda, desconsiderando o que preconiza o art. 5o, inciso XLIII, da CRFB, que declara insuscetíveis de graça e anistia a prática da tortura, entre outros crimes, posto que a lei foi anterior a todas elas. A Emenda Constitucional n. 26, de 27 de novembro de 1985, ao convocar a assembleia constituinte, perpetuou esse estado de coisas, radicado na auto-anistia, não se podendo invocar parâmetros normativos de correção, se todos esses são posteriores ao conjunto de decisões políticas fundamentais voltadas à consecução da reabertura democrática.

Após o julgamento pelo STF de 29 de abril de 2010, em que se julgou improcedente a ADPF 153 por 7 votos contra 2, a Corte IDH notificou o governo do Brasil em 14 de dezembro de 2010, os representantes das vítimas e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos a respeito da Sentença. O Tribunal concluiu que o Brasil é responsável pelo desaparecimento forçado de 62 pessoas, ocorrido entre 1972 e 1974, na região conhecida como Araguaia.

No caso referido, foi analisada, entre outras questões, a compatibilidade da Lei de Anistia com as obrigações internacionais assumidas pelo Brasil à luz da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Com base no direito internacional e em sua jurisprudência constante, a Corte IDH concluiu que as disposições da Lei de Anistia que impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos são incompatíveis com a Convenção Americana e carecem de efeitos jurídicos, razão pela qual não podem continuar representando um obstáculo para a investigação dos fatos do caso, nem para a identificação e a punição dos responsáveis[24].

No enfrentamento da questão, preciosa a lição de Kelsen:

Visto que é impossível admitir simultaneamente o caráter obrigatório de duas ordens normativas distintas e independentes uma da outra, não haveria entre elas senão um tipo de relação que, fazendo surgir sua independência como puramente provisória e relativa, faça-as retornar em qualidade de ordens parciais ou subordinadas numa unidade superior de uma ordem total. Duas relações respondem a essa exigência: a coordenação, que une dois elementos equivalentes, e a subordinação, que estabelece uma hierarquia entre os mesmos. Coordenar dois sistemas de normas significa subordiná-los a uma terceira ordem, a uma ordem superior que limita seu domínio. Portanto, a subordinação é a relação fundamental. Em que consiste? Um sistema de normas está subordinado a outro sistema de normas quando extrai sua força obrigatória deste último, considerado superior precisamente por essa razão. Ora, isto supõe que tal ordem superior contenha uma norma que constitui a fonte da ordem inferior. De qualquer modo há, ao lado de normas materiais que regulamentam imediatamente e por elas mesmas certos objetos, normas formais que confiam a regulamentação de certas matérias a uma certa jurisdição, a uma determinada autoridade. Sobre essas matérias e nessa jurisdição, a ordem em questão limita-se a instituir uma autoridade que tem autoridade para editar regras nesses limites. Por isso, essa norma de ordem superior constitui a norma fundamental (isto é, o princípio de unidade) da ordem inferior. Nestas condições, não se pode mais falar de duas ordens diferentes, a não ser mediante certa restrição. Porque, visto que a norma fundamental [da ordem inferior] pertence ao mesmo tempo à ordem superior, a ordem inferior está, na verdade, contida na ordem superior. Há um duplo caráter. Se fizermos uma abstração da norma fundamental [da ordem inferior] - puramente formal - ele é uma ordem parcial com o mesmo valor da norma fundamental. Entretanto, se consideramos esta norma fundamental, se levamos em conta a ordem inferior que se baseia nela, a ordem superior surge como a ordem global. Assim, a unidade das ordens parciais é reconstituída[25].

Ou seja, a relação de coordenação é ínsita ao sistema interamericano, que vincula o Brasil às decisões da Corte IDH, por força da cláusula facultativa de jurisdição obrigatória ao qual o país aderira em 1998.

4. Em torno de um modelo de diálogo transnacional entre as cortes

Engana-se quem pensa que a transição democrática se operou de forma plena no Brasil. Talvez não venha a se concluir nunca. Ao menos enquanto persistir o autoritarismo herdado em inúmeras posturas institucionais e até mesmo culturais e, ainda, a crença em uma forma mística de perdão e de que daqui pra frente tudo vai ser diferente, assim mesmo, sem se saber a verdade, sem se preocupar com a memória. O passado também revela o futuro e, ainda mais, o presente.[26]

Em termos estritamente jurídicos, se criou um hiato entre o que o Estado brasileiro deve fazer cumprir as determinações da Corte IDH, até porque o Brasil é um Estado-parte da OEA e se submeteu à jurisdição obrigatória da Corte (cláusula facultativa aprovada em 1998) e as repercussões jurisdicionais da decisão da Suprema Corte, pois não se deve esperar que juízes brasileiros recebam ações penais ou determinem o processamento de feitos relacionados com o período de exceção, na ruptura da Anistia, demonstração invulgar de que entendimento do STF prevalecera. Afinal, no Brasil, já houve a transição sem a justiça[27].

Se o Brasil cumprirá a decisão da Corte IDH em todos os seus termos, só o tempo consagrará. Até mesmo porque as consequências complexas da sentença acima abordada prenunciam um modelo adaptativo para a convivência de visões de mundo diferenciadas, que oscilam entre a soberania judicial (que integra a própria concepção de soberania estatal) e o horizonte de defesa dos direitos humanos que orienta o Sistema da OEA.

Mesmo tendo o órgão de cúpula do Judiciário nacional sinalizado em sentido contrário à interpretação da Corte IDH, como visto anteriormente, cabe ressaltar que ainda resta pendente, até a presente data (junho de 2013), o julgamento do recurso de embargos de declaração interpostos na ADPF 153, em 16/03/2011; os autos estão conclusos para julgamento desde 28/06/2012.

Vale ressaltar que a OAB insiste em argumento capital do julgamento de Gomes Lund: o de que a Lei de Anistia viola o princípio fundamental do direito internacional e da proteção dos direitos humanos que qualifica como crimes contra a humanidade são imprescritíveis e indignos de anistia, como tais o assassínio, o extermínio, [...] e todo ato desumano, cometido contra a população civil" por autoridades estatais[28]. Essa interpretação foi confirmada pela Corte IDH em cinco casos anteriores, além da própria sentença em execução.[29]

A omissão quanto a esses temas é patente no acórdão do ADPF 153 e, como destacado pelo Conselho Federal,

reside na premissa de que entre as barbáries cometidas pelo regime de exceção há os crimes de desaparecimento forçado e de seqüestro que, em regra, só admitem a contagem de prescrição a partir de sua consumação em face de sua natureza permanente, conforme já assentado na Extradição 974 d a, de modo que inexistindo data da morte não há incidência do fenômeno prescritivo.

O dever de investigação, ajuizar e punir os responsáveis por violações aos direitos civis e políticos, já o definiu o Comitê de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas ONU, compete aos Estados Partes do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (ratificado pelo Brasil).

A suplantação desses pontos omissos poderia ser substituída pela questão: que se pode aprender com esse dilema? Em verdade, para estabelecer premissas possíveis e o real aprendizado que se espera da experiência da atividade do STF no debate sobre a validade ou não da Lei de Anistia passa por outros temas conexos, como, à guisa de exemplo, o papel do controle de convencionalidade da lei de auto-anistia.[30] Na proposta desse trabalho temos outra premissa: se o diálogo entre as cortes é algo assimétrico e de difícil (ou improvável) estruturação analítica, a par de não se conceber um modelo estabilizado, à luz do que chamamos singularmente de transjuridicidade, a despretensiosa e informativa exposição de decisões globalizadas, nos moldes do judicial borrowing, proporciona visões e impressões social e historicamente mais adequadas para a democrática superação da controvérsia.

Estabelecer canais de diálogo com a história e com a práxis jurídica mundial pode se constituir numa experiência renovadora e dialética, que permita um ganho de conteúdo operacional e de profunda valorização do plano de justificação das normas concretizadas pela hermenêutica jurídica. Nesse sentido, destaca-se o diálogo judicial transnacional estabelecido no acórdão 359/2009, do Tribunal Constitucional de Portugal, exemplificativo dessa postura: A correcta compreensão da questão de inconstitucionalidade suscitada nos presentes autos impõe, antes de mais, a clara percepção de que tal matéria tem sido objecto de apreciação, com resultados nem sempre coincidentes, em outras jurisdições.[31]

Se por um lado a importação acrítica de institutos jurídicos sacramentados pela atividade legislativa (legal transplant) é algo indesejável e, no entanto, bem corriqueiro em tempos de falsa percepção da representação política, a possibilidade de cotejar tendências decisionais nas mais diversas tradições jurídicas mundo afora, apenas com o intuito de possibilitar o mais amplo entendimento das controvérsias que se põem à mesa de julgamento. Sobretudo em casos que conduzem à interpretação constitucional e ao entrelaçamento de normas internas (constitucionais, supralegais e infraconstitucionais) e de potencial repercussão internacional (institucional ou teoricamente), parece-nos razoável a possibilidade de estabelecer o diálogo transnacional, ainda que se passe a impressão de empunhadura de ativismo judicial em favor de uma ou outra posição interpretativa, eventualmente desprovida de fundamentos normativos ou de consolidada base jurisprudencial.

Com respeito a esse modo-de-ser da dialética transjudicial, na hipotética e incerta sessão que apreciará os embargos de declaração na ADPF 153, caso fossem ilustrados em plenário considerações derivadas dos mencionados precedentes da Corte IDH (Caso Loayza Tamayo vs. Perú, Caso Barrios Altos vs. Perú e Caso Comunidad Moiwana) e até mesmo o Caso Guerrilha do Araguaia , talvez a conclusão do STF em relação à constitucionalidade da lei de auto-anistia brasileira fosse bem diferente daquela tomada em plenário meses antes da Corte IDH se pronunciar sobre a mesma legislação, para condenar o Estado brasileiro.

5. Últimas considerações

O ativismo judicial se relaciona diretamente com a tendencial conversação mantida pelas mais diversas cortes nacionais e internacionais, na construção de sua identidade hermenêutica. No horizonte de transformações sociais e democráticas impulsionadas pela maior atuação e expansão do poder das cortes, no debate de grandes controvérsias, é visível que a interação entre diferentes culturas e a quebra das barreiras físicas se manifesta, de modo peculiar, nos tribunais e na construção judicial do Direito.

Os fenômenos que se convencionou sintetizar na expressão transjuridicidade abrigam múltiplas possibilidades de análise e operacionalidade prática. O pragmatismo do judicial borrowing e a tendencial ampliação do diálogo entre as cortes se revelam ferramentas relevantes para a adoção de posturas reflexivas emancipadas da ratio juris dominante, focadas no paradigma da legalidade e do recurso exagerado aos precedentes. Não obstante o incipiente desenvolvimento teórico da perspectiva dos empréstimos, esse fenômeno pode conduzir à ampliação do papel do diálogo transnacional.

Com respeito ao resultado do julgamento da ADPF 153, não se vislumbra a ocorrência desse trânsito da jurisprudência, ao passo em que o Caso Gomes Lund é profundamente marcado pelo ativismo transnacional. Postas lado a lado, as decisões da Corte IDH e do STF não representam a mera ocorrência de disputa interpretativa entre a justiça constitucional brasileira e o tribunal do sistema regional da OEA a respeito da aplicabilidade da Lei de Anistia, mas a monumental incongruência de compreensão sobre justiça social e direitos humanos, sobremaneira no que toca ao direito à verdade e à memória.


Referências

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Sobre o autor
José Sebastião Fagundes Cunha

Desembargador do TJPR Presidente da 3ª Câmara Civil Tributário / Relações de Trabalho Doutor pela UFPR Pós-Doutor pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CUNHA, José Sebastião Fagundes. Expandir os horizontes das cortes é possível?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 7035, 5 out. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/100428. Acesso em: 5 dez. 2024.

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