O Superior Tribunal de Justiça, órgão constitucionalmente incumbido de uniformizar a interpretação da legislação federal, parece ter se esquecido de sua própria missão.
Em vez de oferecer segurança jurídica e coerência normativa, a Corte se divide em entendimentos antagônicos sobre a aplicação do § 8º-A, do art. 85. do Código de Processo Civil — dispositivo que, longe de ser ambíguo, determina que os honorários advocatícios fixados por equidade devem observar os critérios estabelecidos pela Ordem dos Advogados do Brasil.
Na Primeira Seção, que julga casos de direito público, foi sufragada a tese de que a tabela da OAB é meramente referencial, sem força vinculante, mesmo após a entrada em vigor da Lei federal nº 14.365/2022.1
A propósito, confira-se:
“De notar também que, segundo a jurisprudência desta Corte de Justiça, a previsão contida no § 8º-A do art. 85. do CPC, incluída pela Lei n. 14.365/2022 - que recomenda a utilização das tabelas do Conselho Seccional da Ordem dos Advogados do Brasil como parâmetro para a fixação equitativa dos honorários advocatícios -, serve apenas como referencial, não vinculando o magistrado no momento de arbitrar a referida verba, uma vez que deve observar as circunstâncias do caso concreto para evitar o enriquecimento sem causa do profissional da advocacia ou remuneração inferior ao trabalho despendido”
(AgInt no AgInt na Rcl n. 45.947/SC, relator Ministro Gurgel de Faria, Primeira Seção, DJe de 26/6/2024).
Posteriormente, a Segunda Seção, especializada em direito privado, passou a adotar, com acerto, o entendimento de que a natureza meramente referencial da tabela de honorários da OAB — que permite ao magistrado não se vincular a ela — aplica-se exclusivamente às hipóteses de fixação por equidade em sentenças proferidas antes da vigência da alteração legislativa introduzida pela Lei nº 14.365, de 2 de junho de 2022, a qual acrescentou o § 8º-A ao artigo 85 do Código de Processo Civil.
Veja-se:
“O parágrafo 8º-A do art. 85. do CPC/2015 determina que ‘para fins de fixação equitativa de honorários sucumbenciais, o juiz deverá observar os valores recomendados pelo Conselho Seccional da Ordem dos Advogados do Brasil a título de honorários advocatícios ou o limite mínimo de 10% (dez por cento) estabelecido no § 2º deste artigo, aplicando-se o que for maior”
(AgInt na Rcl n. 47.536/SP, relator Ministro Antonio Carlos Ferreira, Segunda Seção, DJe de 5/11/2024).
Ambas as Turmas da Primeira Seção têm aplicado unissonamente o entendimento consolidado no seu colegiado.
O que tem causado grande perplexidade é a postura adotada entre as duas turmas de direito privado: apesar da existência de precedente qualificado firmado pela 2ª Seção, as Terceira e Quarta Turmas vêm decidindo de forma diametralmente oposta.
Enquanto a Quarta Turma segue acertadamente o precedente, a Terceira Turma decidiu adotar o entendimento já superado, anterior à vigência da Lei nº 14.365/2022.
Confira-se o que tem dito a Terceira Turma:
“Não há vinculação do magistrado à tabela de honorários da OAB, que possui caráter meramente referencial, conforme entendimento pacificado desta Corte. A fixação por equidade deve atender às peculiaridades do caso concreto, em observância ao princípio da razoabilidade, conforme o art. 85, § 8º, do CPC, e não exclusivamente aos valores indicados pela entidade de classe”
(AgInt no REsp n. 2.160.930/SP, relator Ministro Carlos Cini Marchionatti (Desembargador Convocado TJRS), Terceira Turma, DJEN de 20/2/2025).
Por outro lado, a Quarta Turma assim entende:
“5. Recurso provido para determinar que o valor referente aos honorários advocatícios seja calculado conforme a disposição do art. 85, § 8º-A, do CPC.
Tese de julgamento: ‘1. A fixação dos honorários advocatícios por equidade deve observar os valores recomendados pelo Conselho Seccional da OAB ou o limite mínimo de 10% do art. 85, § 2º, do CPC, aplicando-se o que for maior’.
Dispositivos relevantes citados: CPC, art. 85, §§ 2º, 8º e 8º-A; CC, arts. 944. e 953.Jurisprudência relevante citada: STJ, AgInt no REsp n. 1.741.941/PR, relator Ministro Og Fernandes, Segunda Turma, julgado em 9.10.2018; EAREsp n. 1.255.986/PR, relator Ministro Luis Felipe Salomão, julgado em 20.3.2019”
(REsp n. 2.166.219/SP, relator Ministro João Otávio de Noronha, Quarta Turma, julgado em 8/9/2025, DJEN de 11/9/2025).
No voto condutor desse acórdão, o Ministro João Otávio de Noronha consignou que:
"Dessa feita, o entendimento de que a tabela de honorários da OAB possui caráter meramente referencial e que, por isso, o magistrado não está adstrito a ela, aplica-se às hipóteses de fixação por equidade nas sentenças anteriores à entrada em vigor da modificação legislativa trazida pela Lei n. 14.365, de 2/6/2022 , que incluiu o § 8º-A ao art. 85. do CPC".
Com efeito, o Superior Tribunal de Justiça foi concebido pela Constituição Federal de 1988 como o guardião da interpretação uniforme da legislação federal. Conforme o art. 105, inciso III, compete ao STJ julgar, em recurso especial, as causas decididas em única ou última instância pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos Tribunais dos Estados, quando a decisão contrariar tratado ou lei federal, ou negar-lhes vigência.
Trata-se, portanto, de um papel institucional de extrema relevância para a segurança jurídica e a estabilidade normativa no país.
No entanto, o que se observa na prática é uma preocupante dissonância interna. A Corte, que deveria falar com uma só voz, apresenta interpretações divergentes sobre o mesmo dispositivo legal — o § 8º-A, do art. 85. do CPC, introduzido pela Lei nº 14.365/2022.
A contradição entre a Primeira e a Segunda Seção do STJ e, principalmente entre as duas Turmas da 2ª Seção (o que é mais grave, já que tem precedente da Seção), revela uma espécie de loteria que mina a confiança dos jurisdicionados e dos operadores do direito na capacidade do Tribunal de cumprir sua função uniformizadora.
Quando o próprio STJ se torna fonte de insegurança jurídica, o sistema perde um de seus pilares de estabilidade. Afinal, como pode o jurisdicionado — ou mesmo o magistrado de primeira instância — saber qual entendimento seguir, se o órgão máximo da legislação federal não consegue se posicionar de forma clara e coesa?
O processo judicial não pode se transformar em uma espécie de loteria hermenêutica, em que a parte dependa da sorte de seu caso ser distribuído a um órgão jurisdicional mais alinhado com a jurisprudência consolidada.
A Lei nº 14.365, de 2 de junho de 2022, introduziu o § 8º-A ao art. 85. do Código de Processo Civil com um objetivo claro: conferir maior objetividade e segurança jurídica à fixação de honorários advocatícios por equidade. O dispositivo estabelece que, nesses casos, o magistrado deverá observar os critérios estabelecidos pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), especialmente sua tabela de honorários.
A redação é direta e imperativa. Ao empregar o verbo “deverá”, o legislador não deixou margem para interpretações que relativizem a vinculação aos parâmetros da OAB. Isso significa que a tabela da OAB deixou de ser meramente referencial nesses casos e passou a ter caráter vinculante. Não há o que se interpretar da norma (in claris cessat interpretatio).
Trata-se de uma tentativa legislativa de corrigir distorções históricas na fixação de honorários por equidade, frequentemente arbitrados em valores irrisórios, desproporcionais ao trabalho técnico e à responsabilidade assumida pelo advogado.
No entanto, mesmo diante de uma norma clara, a 3ª Turma do STJ conseguiu produzir uma névoa interpretativa, uma neblina jurisprudencial, mesmo diante da existência de um precedente firmado no âmbito da Segunda Seção.
A consequência é grave: a norma perde sua efetividade, e os operadores do direito ficam à mercê da Turma que julgará o caso. A mesma lei, aplicada por juízes distintos, pode gerar resultados diametralmente opostos, dependendo da Turma do STJ que vier a se manifestar. Isso compromete não apenas a segurança jurídica, mas também a própria legitimidade da Corte como intérprete final da legislação federal.
Até onde se sabe, o STJ não firmou tese em sede de recursos repetitivos, tampouco submeteu a questão ao Pleno para pacificação. A Corte parece confortável em sua ambiguidade, mesmo diante da insegurança jurídica que ela gera.
A bipolaridade interpretativa entre suas seções não apenas enfraquece a função uniformizadora do STJ, como também compromete a credibilidade da jurisprudência como fonte segura de direito.
Essa desuniformidade afeta diretamente a advocacia. A norma introduzida pela Lei nº 14.365/2022 foi uma conquista da classe, que buscava garantir critérios objetivos e justos para a fixação de honorários por equidade.
O desprestígio da advocacia, nesse contexto, não é apenas simbólico. É material. Honorários fixados sem critério, em valores irrisórios, comprometem a viabilidade econômica da profissão e desestimulam o exercício técnico e diligente da atividade. A mensagem que se transmite é clara: mesmo diante de uma norma que busca proteger o profissional, o Judiciário acaba por ignorá-la.
Além disso, a insegurança jurídica gerada pela desuniformidade afeta também os magistrados de primeira instância. Sem uma orientação clara do STJ, cada juiz se vê diante de um dilema interpretativo: seguir a literalidade da norma ou adotar o entendimento de uma das seções da Corte, correndo o risco de ver sua decisão reformada por outra com posicionamento oposto. Essa instabilidade compromete a eficiência da prestação jurisdicional e alimenta o contencioso desnecessário.
Em última análise, a desuniformidade interpretativa do STJ sobre o § 8º-A, do art. 85. do CPC representa um retrocesso institucional. Em vez de garantir segurança, previsibilidade e valorização da advocacia, a Corte contribui para a fragmentação do sistema e para o descrédito da norma. A advocacia, mais uma vez, paga o preço dessa névoa interpretativa.
Diante da evidente cisão interpretativa entre suas seções, o Superior Tribunal de Justiça precisa urgentemente se reconectar com sua missão constitucional: uniformizar a aplicação da legislação federal. A omissão diante da divergência sobre o § 8º-A, do art. 85. do CPC não é apenas uma falha técnica — é uma abdicação institucional de sua função precípua.
A Corte não pode continuar a permitir que a mesma norma produza efeitos distintos conforme o “CEP” da Turma julgadora.
Diante da divergência entre seções, é possível — e desejável — que o Pleno ou a Corte Especial seja provocado a se manifestar.
O STJ pode, também, selecionar casos representativos da controvérsia e submetê-los ao rito dos recursos repetitivos, firmando tese vinculante sobre a aplicação do § 8º-A, do CPC, garantindo: coerência jurisprudencial; vinculação das instâncias inferiores; redução de litígios sobre o tema.
Ademais, deveria ser instituídas rotinas de diálogo entre relatores das Turmas temáticas para evitar decisões contraditórias sobre dispositivos legais relevantes, afinal, a jurisprudência não pode ser construída em compartimentos estanques. Mais do que medidas pontuais, é necessário fortalecer a cultura institucional de respeito aos precedentes e à coerência.
O STJ deve ser exemplo de estabilidade interpretativa, e não vetor de insegurança.
A divergência interpretativa entre as seções do STJ sobre o § 8º-A, do art. 85. do CPC não é apenas um problema hermenêutico — é um fator de corrosão da segurança jurídica. Quando o tribunal responsável por uniformizar a aplicação da lei federal se divide em entendimentos opostos, o jurisdicionado deixa de ter uma referência confiável. A previsibilidade, que deveria ser um dos pilares do sistema jurídico, é substituída por uma instabilidade institucional que compromete a confiança na Justiça.
O resultado? Um paradoxo institucional: o tribunal que deveria falar com uma só voz sobre a lei federal, ecoa em duas frequências distintas.
Nota
1 Que acrescentou o art. 8º-A, no Código de Processo Civil, para dispor que “para fins de fixação equitativa de honorários sucumbenciais, o juiz deverá observar os valores recomendados pelo Conselho Seccional da Ordem dos Advogados do Brasil a título de honorários advocatícios ou o limite mínimo de 10% (dez por cento) estabelecido no § 2º deste artigo, aplicando-se o que for maior”. Disponível em <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2022/lei/L14365.htm>. Consulta em 13/10/2025.