Capa da publicação CNJ admite cancelamento administrativo de matrículas irregulares de imóveis: em defesa das terras públicas
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Conselho Nacional de Justiça admite o cancelamento administrativo de matrículas irregulares de imóveis.

Um grande passo para defesa das terras públicas

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11/10/2010 às 07:06

Resumo:


  • O julgamento do Pedido de Providências n. 0001943-67.2009.2.0.0000 resultou no cancelamento de 5,5 mil títulos irregulares no Estado do Pará, sendo um marco para a defesa das terras públicas e o combate à grilagem.

  • A decisão derrubou um dogma na jurisprudência brasileira, demonstrando que é possível o cancelamento administrativo de registros de títulos nulos de pleno direito, conforme previsto nas Leis n. 6.015/73 e 6.739/79.

  • O cancelamento administrativo de registros irregulares é respaldado pelo regime jurídico-constitucional das terras públicas, demonstrando que o Juízo administrativo possui competência para realizar essa ação, sem violar o contraditório e a ampla defesa dos envolvidos.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Rompe-se o dogma de que é necessário provocar a jurisdição para cancelar registro ou matrícula de imóvel em razão de defeito essencial do título.

SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. O julgamento do Pedido de Providências n. 0001943-67.2009.2.0.0000. Um marco para defesa das terras públicas e para o combate a grilagem. 3. Da competência do Juízo administrativo para cancelar matrículas irregulares. 4. Conclusão. Referências.


1. Introdução.

No final do mês de agosto do ano em curso, uma decisão do Conselho Nacional de Justiça – CNJ que, nos autos do Pedido de Providências - PP n. 0001943-67.2009.2.0.0000, determinou o cancelamento de 5,5 mil títulos irregulares no Estado do Pará (SELIGMAN; ANGELO, 2010), possivelmente fruto de grilagem de terras públicas, tem sido objeto de comentários no meio jurídico e também no meio não-jurídico. [01]

A decisão é emblemática, não só pela defesa do patrimônio público brasileiro, mas também, por acabar com um dogma que vinha sendo sustentado pelo Poder Judiciário com certa freqüência: o de que sempre é necessário provocar a jurisdição para cancelar registro ou matrícula de imóvel em razão de defeito essencial do título (cláusula de reserva de jurisdição).

O Corregedor Nacional de Justiça, Ministro GILSON DIPP, analisou com extrema profundidade a questão, não deixando, assim, qualquer margem para manutenção da tese de que somente no âmbito jurisdicional é possível cancelar registros de imóveis amparados em títulos nulos de pleno direito.

Dessa forma, cumpre enaltecer a referida decisão e, ao mesmo tempo, tecer breves comentários sobre um tema de extrema relevância para a tutela constitucional dos bens públicos.


2. O julgamento do Pedido de Providências n. 0001943-67.2009.2.0.0000. Um marco para defesa das terras públicas e para o combate a grilagem.

Conforme mencionado, o julgamento do Pedido de Providências n. 0001943-67.2009.2.0.0000, culminou por derrubar um dogma na jurisprudência pátria, de que somente através da jurisdição [02] é possível cancelar registro ou matrícula vinculada a título nulo de pleno direito.

No caso em questão, diversos entes públicos e privados [03] levaram ao conhecimento do Conselho Nacional de Justiça a situação verificada pela Comissão de Estudo e Monitoramento das Questões Ligadas à Grilagem de Terras no Estado do Pará, nos cartórios de registro de imóveis das comarcas do interior do Estado. O referido estudo apurou que a área grilada no Brasil beira os cem milhões de hectares, dentre os quais trinta milhões se localizam no Estado do Pará.

Em síntese, os requerentes se insurgiram contra o entendimento do Tribunal de Justiça do Estado do Pará que, ao enfrentar o problema:

Posicionou-se pela impossibilidade de cancelamento administrativo das matrículas nulas de pleno direito, de que trata a Lei nº 6739/1979, que prevê hipótese de providências administrativas, com respeito ao devido processo legal e ampla defesa, para o cancelamento de matrículas irregulares, entendimento que foi ratificado na 1ª Sessão Extraordinária do Conselho da Magistratura realizado no dia 19.03.2009. [04]

Amparado em precedentes do próprio CNJ, [05] a tese da cláusula de reserva de jurisdição foi afastada com base nos seguintes argumentos:

1º Registro baseado em suposto título que formalmente deixou de existir, é hipótese que se enquadra no exemplo de inexistência do título, passível de cancelamento em sede administrativa;

2º As partes interessadas – prejudicadas com o cancelamento administrativo dos títulos – dispõem de ação anulatória para atacar o ato, a ser proposta perante o juiz competente contra a pessoa jurídica de direito público que requereu o cancelamento, nos termos do art. 3º da Lei n. 6.739/79;

3º A possibilidade da controvérsia sobre o domínio estar em discussão no âmbito judicial não importa em obstáculo à atuação da Corregedoria, tendo em vista a independência de que gozam as esferas administrativa e judicial;

4º A Lei n. 10.267/2001, que possibilitou o cancelamento administrativo de matrículas irregulares, veio exatamente para obstar a prática de grilagem, pois até então, a legislação vigente era supostamente insuficiente para proteger o patrimônio da União;

Mas a decisão do CNJ exarada no Pedido de Providências n. 0001943-67.2009.2.0.0000 foi além dos argumentos utilizados nos precedentes anteriores daquele órgão. Admitindo que os referidos precedentes não deram "a devida saliência aos fundamentos que lhe abonam a tese, não os explicitaram adequadamente ou não os exploraram com a exigível profundidade", o Corregedor Nacional de Justiça, Ministro GILSON DIPP, decidiu "expor e reiterar à exaustão" o assunto. [06]

Não se pretende, aqui, fazer uma análise exauriente sobre todos os fundamentos utilizados pelo Ministro GILSON DIPP, visto que estaríamos fugindo do objetivo da presente exposição. Diante da percuciente exposição e clareza dos argumentos utilizados, basta uma leitura da referida decisão para que se possa ter um bom entendimento sobre a questão.

De todo modo, a referida decisão consagra duas importantes premissas sobre o assunto, necessariamente ligadas entre si, quais sejam:

A possibilidade do cancelamento administrativo das matrículas irregulares, que já era previsto na Lei n. 6.739/79, mas não era admitido por ampla corrente jurisprudencial e doutrinária;

Diante do regime jurídico constitucional dos bens públicos (art. 20 e parágrafos da Constituição, para a União, e art. 26, para os Estados), cabe ao particular a prova de seu domínio, pelo que a falta ou incompleta demonstração desse fato implica na recusa formal e substancial ao reconhecimento da legitimidade do domínio particular.

A consagração do entendimento de que é possível cancelar administrativamente as matrículas irregulares representa um marco para defesa das terras públicas e para o combate a grilagem. Com efeito, é fato público e notório que o acesso ao Judiciário é sempre demorado e custoso, sendo necessário um mecanismo mais célere e adequado para tutela dos bens públicos indevidamente registrados em nome de particulares, o que ocorre com a atividade meramente administrativa dos Cartórios e Corregedoria, ao procederem o cancelamento de matrículas criadas com amparo em título nulo de pleno direito.

Sobre a possibilidade de se cancelar administrativamente matrículas irregulares é que nos dedicaremos com maior profundidade, com vistas a ratificar o entendimento firmado pelo Conselho Nacional de Justiça sobre o assunto.


3. Da competência do Juízo administrativo para cancelar matrículas irregulares.

ATHOS GUSMÃO CARNEIRO (1996, pp. 18-20) faz uma clara distinção entre a atividade jurisdicional e a atividade administrativa. Ressaltando que "a distinção não será certamente encontrada pelo critério subjetivo ou orgânico (de quem praticou o ato), pois os juízes também praticam atos administrativos", [07] o referido autor apresenta o seguinte esquema de distinções entre as duas atividades estatais:

Ato Jurisdicional

Ato Administrativo

A atividade jurisdicional depende de "iniciativa da parte interessada", mediante o ajuizamento de "ação" (ubi non est actio ibi non est jurisdictio).

A atividade administrativa normalmente não depende de requerimento do interessado, agindo, portanto, "de ofício".

A "aplicação da lei" a uma pretensão é o "objetivo", em si mesmo, da atividade jurisdicional; é a razão de ser da jurisdição.

A administração, conquanto deva agir em conformidade com a lei, aplicando a lei, tem por "objetivo" a promoção do "bem comum".

A atividade jurisdicional pressupõe como causa um litígio, uma "lide" (ainda que virtual), para cuja eliminação é aplicada a lei.

A atividade administrativa visa satisfazer necessidades individuais e coletivas, não tendo por pressuposto a existência de uma lide entre partes.

A atividade jurisdicional reveste-se (segundo Chiovenda) normalmente do caráter de atividade de "substituição".

A atividade administrativa é "atividade primária" ou originária.

A jurisdição atua sempre "processualmente", sob as regras da dualidade de partes e do contraditório, para apreciar conflitos "alheios" (o juiz julga in re aliena).

A administração geralmente age informalmente, embora deva organizar procedimentos, com ritos previstos em lei, para prover acerca de certos assuntos em que a própria administração é parte interessada (prover in re sua).

O ato jurisdicional de composição da lide (sentença de mérito) adquire a "autoridade de coisa julgada", ou seja, seus efeitos tornam-se imutáveis.

As decisões administrativas podem apenas precluir no âmbito da administração (não admitem recurso administrativo), mas estão sujeitas, sem exceção, quanto à sua legalidade, ao reexame pelo Judiciário.

Observe-se que o procedimento de cancelamento de matrículas amparadas em títulos nulos de pleno direito reveste-se de todos os traços de uma atividade meramente administrativa, conforme exposição acima transcrita:

1º Não depende de requerimento do interessado, podendo o Juiz agir "de ofício";

2º Tem por objetivo a promoção do bem comum, caracterizado pela preservação do patrimônio público;

3º Visa satisfazer necessidades individuais e coletivas, extirpando do sistema o registro irregular, sem que necessariamente exista uma lide entre partes;

4º Pode ser considerada uma atividade primária, pois o Juiz, ao cancelar registro ou matrícula irregulares, não atua como substituto das partes (terceiro imparcial);

5º Possui procedimento que, embora simplificado, seu rito está expressamente previsto em lei (Leis ns. 6.015/73 e 6.739/79);

6º A decisão administrativa está sujeita ao reexame pelo Judiciário, inclusive a própria legislação de regência prevê a hipótese de ação anulatória para desconstituir o ato administrativo de cancelamento do registro (art. 3º da Lei n. 6.739/79).

De fato, a possibilidade de se cancelar administrativamente matrículas irregulares está expressamente prevista na Lei n. 6.739/79, que assim dispõe:

Art. 1º - A requerimento de pessoa jurídica de direito público ao corregedor-geral da justiça, são declarados inexistentes e cancelados a matrícula e o registro de imóvel rural vinculado a título nulo de pleno direito, ou feitos em desacordo com os artigos 221 e segs. da Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, alterada pela Lei nº 6.216, de 30 de junho de 1975.

§ 1º - Editado e cumprido o ato, que deve ser fundamentado em provas irrefutáveis, proceder-se-á, no qüinqüídio subseqüente, à notificação pessoal:

a) da pessoa cujo nome constava na matrícula ou no registro cancelados;

b) do titular do direito real, inscrito ou registrado, do imóvel vinculado ao registro cancelado.

§ 2º - Havendo outros registros, em cadeia com o registro cancelado, os titulares de domínio do imóvel e quem tenha sobre o bem direitos reais inscritos ou registrados serão também notificados, na forma prevista neste artigo.

§ 3º - Inviável a notificação prevista neste artigo ou porque o destinatário não tenha sido encontrado, far-se-á por edital:

a) afixado na sede da comarca ou do Tribunal de Justiça respectivos; e

b) publicado uma vez na imprensa oficial e três vezes, e com destaque, em jornal de grande circulação da sede da comarca, ou, se não houver, da capital do Estado ou do Território.

§ 4º - O edital será afixado e publicado no prazo de 30 (trinta) dias, contados da data em que for cumprido o ato do corregedor-geral.

Art. 2º - A retificação de registro sempre será feita por serventuário competente, mediante despacho judicial, como dispõe o art. 213 da Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, alterada pela Lei nº 6.216, de 30 de junho de 1975, e, quando feito em livro impróprio, será procedida por determinação do corregedor-geral, na forma do art. 1º.

Art. 3º - A parte interessada, se inconformada com o provimento, poderá ingressar com ação anulatória, perante o juiz competente, contra a pessoa jurídica de direito público que requereu o cancelamento, ação que não sustará os efeitos deste, admitido o registro da citação, nos termos do art. 167, I, da Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, alterada pela Lei nº 6.216, de 30 de junho de 1975.

Parágrafo único. Da decisão proferida, caberá apelação e, quando contrária ao requerente do cancelamento, ficará sujeita ao duplo grau de jurisdição. (grifos nossos).

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De fato, tratando-se de nulidade de pleno direito, cabe ao Juízo declará-la de ofício, independentemente de qualquer ação judicial. O efeito próprio do reconhecimento da nulidade do título é o cancelamento da matrícula e registro que dele se originou, o que se dará na própria esfera administrativa, resguardado as vias judiciais para aqueles que forem prejudicados com o cancelamento.

Nesse sentido, aliás, já dispunha a Lei Geral de Registros Públicos (Lei n. 6.015/73), [08] consoante se observa in litteris:

"Art. 214 - As nulidades de pleno direito do registro, uma vez provadas, invalidam-no, independentemente de ação direta. (Renumerado do art. 215 com nova redação pela Lei nº 6.216, de 1975).

§ 1º A nulidade será decretada depois de ouvidos os atingidos. (Incluído pela Lei nº 10.931, de 2004)

§ 2º Da decisão tomada no caso do § 1º caberá apelação ou agravo conforme o caso. (Incluído pela Lei nº 10.931, de 2004)

§ 3º Se o juiz entender que a superveniência de novos registros poderá causar danos de difícil reparação poderá determinar de ofício, a qualquer momento, ainda que sem oitiva das partes, o bloqueio da matrícula do imóvel. (Incluído pela Lei nº 10.931, de 2004)

§ 4º Bloqueada a matrícula, o oficial não poderá mais nela praticar qualquer ato, salvo com autorização judicial, permitindo-se, todavia, aos interessados a prenotação de seus títulos, que ficarão com o prazo prorrogado até a solução do bloqueio. (Incluído pela Lei nº 10.931, de 2004)

§ 5º A nulidade não será decretada se atingir terceiro de boa-fé que já tiver preenchido as condições de usucapião do imóvel. (Incluído pela Lei nº 10.931, de 2004)"

A referida Lei de Registros Públicos, por sua vez, estabelece que o cancelamento dar-se-á nas seguintes hipóteses:

"Art. 250 - Far-se-á o cancelamento: (incluído pela Lei nº 6.216, de 1975)

I - em cumprimento de decisão judicial transitada em julgado;

II - a requerimento unânime das partes que tenham participado do ato registrado, se capazes, com as firmas reconhecidas por tabelião;

III - A requerimento do interessado, instruído com documento hábil.

IV - a requerimento da Fazenda Pública, instruído com certidão de conclusão de processo administrativo que declarou, na forma da lei, a rescisão do título de domínio ou de concessão de direito real de uso de imóvel rural, expedido para fins de regularização fundiária, e a reversão do imóvel ao patrimônio público. (Incluído pela Lei nº 11.952, de 2009)"(destaques nossos).

O inciso I do art. 250 faz menção a cumprimento de "decisão judicial". Como visto acima, decisão judicial pode decorrer de uma atividade jurisdicional, mas também pode ser decorrente de uma atividade administrativa. Logo, é perfeitamente possível o cancelamento do registro com base em decisão de juiz em processo administrativo.

Compartilhando desse entendimento, AFONSO FRANCISCO CARAMURU expõe o seguinte:

Da mesma forma, a expressão "decisão judicial", pela sua amplitude, abarca não só as manifestações jurisdicionais do juiz, como também as exaradas nos procedimentos administrativos, em que o juízo corregedor permanente, controlador da legalidade dos atos do registrador, agindo como mero administrador, e, portanto, inclusive sponte sua e ex officio, também determina o cancelamento de algum ato de registro que, na sua atividade fiscalizadora, demonstra ser espúrio ou ilegal.

(...)

Verificando o juiz responsável pela fiscalização dos atos registrários que há irregularidades e erronias, poderá determinar o cancelamento do mesmo, mediante decisão exarada em devido processo legal, que não abrange os autores do título causal, pois não se cuida deste em sede de cancelamento, como já se disse, sendo tal decisum, ainda que não exarado em procedimento contencioso jurisdicional, título hábil, também, para dar fulcro a um cancelamento. [09]

Ademais, observe-se que o inciso IV do art. 250 da Lei n. 6.015/73, incluído pela recente Lei nº 11.952/2009, autoriza que o cancelamento seja feito "a requerimento da Fazenda Pública, instruído com certidão de conclusão de processo administrativo que declarou, na forma da lei, a rescisão do título de domínio ou de concessão de direito real de uso de imóvel rural, expedido para fins de regularização fundiária, e a reversão do imóvel ao patrimônio público" (grifos nossos), prestigiando, assim, mais uma vez, o processo administrativo como instrumento apto à prática de tal ato.

A despeito da legislação transcrita acima, a possibilidade de se cancelar administrativamente matrículas irregulares encontra (ou encontrava) resistência na mais abalizada doutrina [10] e em diversos precedentes judiciais. A principal tese sustentada por essa corrente é a de que o cancelamento administrativo violaria o contraditório e ampla defesa assegurados pela Carta Magna (art. 5º, LV, da CF/88).

Contudo, com a devida vênia àqueles que sustentam essa tese, a assertiva não prospera. Ora, o próprio art. 5º, LV, da CF/88 prevê que "aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;" (grifos nossos).

Logo, sustentar que o cancelamento administrativo do registro irregular implica em violação ao contraditório e ampla defesa é o mesmo que afirmar que em processo administrativo tais garantias não são respeitadas, o que a toda evidência não procede. Se isto realmente acontecesse, teríamos que admitir que exista um garantia constitucional destituída de eficácia, o que vai de encontro a toda uma teoria de interpretação e aplicação dos direitos fundamentais, em especial ao princípio da máxima efetividade, pelo qual, à norma constitucional, especialmente a que define direitos e garantias fundamentais, deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe dê. [11]

Também entendendo que o cancelamento administrativo não implica em ofensa aos postulados do contraditório e da ampla defesa, AFONSO FRANCISCO CARAMURU leciona o seguinte:

A expressão "independentemente de ação direta" é a própria admissão do cancelamento administrativo ou correcional, na medida em que prescinde a existência de uma demanda deduzida em juízo a ser conhecida pelo órgão jurisdicional para que se tenha o cancelamento.

O juízo a quem se atribui o controle da legalidade dos atos de registro, atribuição que, hodiernamente, decorre de mandamento constitucional, pode e deve, diante do conhecimento de nulidade do ato de registro, promover-lhe o cancelamento, ex officio ou mediante prévia oitiva do oficial de registro e do órgão do Ministério Público, em procedimento administrativo, sem que, para tanto, tenha de se instaurar um processo jurisdicional.

Em virtude disto, não há que se falar, nesta hipótese, em prévia audiência dos participantes do título causal ou de eventuais interessados em virtude deste título causal, porquanto não se tem, em tais casos, senão análise do próprio ato do registro, no qual os participantes do título causal não fizeram parte, nem podem fazê-lo.

Eis o motivo pelo qual se tem sistematicamente afastado a alegação de que a não intervenção das partes no título causal em tais procedimentos administrativos viola o princípio do contraditório e da ampla defesa. (grifos nossos). [12]

De fato, ao contrário do que se sustenta, da leitura da legislação supra citada, verifica-se que existe um procedimento administrativo próprio para anulação do registro de imóvel rural vinculado a título nulo de pleno direito, onde inclusive é assegurada a ampla defesa e contraditório da pessoa cujo nome constava na matrícula ou no registro cancelados (art. 1º, § 1º, "a" da Lei n. 6.739/79), prevendo até mesmo a participação do titular do direito real, inscrito ou registrado, do imóvel vinculado ao registro cancelado (art. 1º, § 1º, "b").

Ainda, prevê a citada Lei n. 6.739/79 que, havendo outros registros, em cadeia com o registro cancelado, os titulares de domínio do imóvel e quem tenham sobre o bem direitos reais inscritos ou registrados serão também notificados (art. 1º, § 2).

Além da oportunidade do contraditório aos titulares do domínio do imóvel e terceiros interessados, observa-se, ainda, que a Lei de Registros Públicos assegura aos prejudicados o direito de interpor recurso (agravo ou apelação) contra a decisão que determina o cancelamento da matrícula ou registro irregular (art. 214, § 2º).

Se isso não fosse o bastante para se assegurar o direito a ampla defesa e contraditório na forma prevista pelo art. 5º, LV, da CF/88, veja que a própria Lei n. 6.739/79 prevê a possibilidade do ajuizamento de ação anulatória para desconstituir o ato administrativo de cancelamento do registro (art. 3º da Lei n. 6.739/79), resguardando, portanto, o reexame da matéria pelo Poder Judiciário. Ou seja, o sistema faz uma escolha daquele que deverá provocar o Judiciário, que será o suposto prejudicado com o ato administrativo de cancelamento do registro.

Assim não poderia deixar de ser, pois conforme foi exposto acima, uma das características da atividade administrativa é a inexistência de uma lide entre partes. Ou seja, pode ocorrer uma situação em que, mesmo tendo o órgão público ou o particular conhecimento da nulidade de pleno direito de um título ou registro, ainda assim não existirá o interesse em propor uma ação judicial para obter esse reconhecimento, em razão do domínio do imóvel não lhe pertencer, mesmo que o título e o registro respectivo sejam cancelados.

Para melhor entendimento da questão, vale mencionar um exemplo prático o qual nos deparamos:

Uma das atribuições do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA é analisar a regularidade da aquisição de terras rurais por estrangeiros, conforme prescrições contidas na Lei nº 5.709/71 e no Decreto nº 74.965/74.

Uma vez reconhecida a irregularidade dessa aquisição, cabe ao INCRA comunicar à Corregedoria a nulidade de pleno direito da transação, conforme prevê o art. 15 da Lei nº 5.709/71, [13] para fins de responsabilização dos oficiais de cartório que praticaram o ato e, também, para que aquele órgão proceda ao cancelamento das escrituras públicas de compra e venda e respectivos registros, nos termos do art. 1º da Lei n. 6.739/79.

Ora, numa situação como esta, o INCRA sequer tem interesse de agir (art. 6º do CPC) para propor ação judicial de anulação de registro de matrícula de terras particulares. Ao INCRA somente compete o dever de comunicar à Corregedoria-Geral de Justiça a aquisição irregular de imóvel rural pelo estrangeiro, nos termos do 1º da Lei n. 6.739/79 c/c art. 15 da Lei nº 5.709/71, a fim de que este órgão tome as providências administrativas cabíveis para desfazer o ato administrativo nulo e responsabilizar os agentes que o praticaram.

Ao prevalecer o entendimento de que somente através da jurisdição será possível o cancelamento, o registro nulo se perpetuará, uma vez que o INCRA não tem interesse de agir em ajuizar ação para anular o ato de aquisição irregular de imóvel particular, o que acabará por conturbar, ainda mais, a cadeia dominial do imóvel em questão, prejudicando terceiros de boa fé que venham a adquiri-lo.

Nesse contexto, não se pode perder de vista que o cancelamento "torna-se poderoso instrumento e mecanismo de sanação do sistema e, por via de conseqüência, veículo dos mais eficazes e ágeis para a regularização fundiária" (CARAMURU, op.cit., p. 254).Por esse motivo, "o ordenamento jurídico está a exigir uma ação decisiva dos órgãos controladores da legalidade, a fim de conferir credibilidade a um real sistema que esteja em consonância com a principiologia legal." [14]

Portanto, verifica-se que existe toda uma lógica do sistema registral ao prever a competência do juízo administrativo para, por meio da Corregedoria-Geral de Justiça, cancelar registros de títulos nulos de pleno direito, não havendo, por sua vez, qualquer justificativa plausível para recusa de aplicação de tais normas especiais (Leis ns. 6.015/73 e 6.739/79).

Tal lógica resulta, como se disse, do regime jurídico-constitucional da administração das terras públicas federais ou estaduais que, conforme foi bem ressaltado pelo Ministro GILSON DIPP, impõe "ao administrador tomar todas as iniciativas suficientes e necessárias para a proteção dos bens públicos", [15]tal como a adoção das medidas de ordem administrativas destinadas a cancelar registros vinculados a títulos nulos de pleno direito.

De fato, sob essa perspectiva constitucional, considerando que compete ao Poder Judiciário o controle da legalidade dos atos de registro (art. 236, § 1°, da CF/88), pode e deve o juiz, diante do reconhecimento da nulidade do ato do registro, promover-lhe o cancelamento, em procedimento administrativo próprio, sem que seja necessário instaurar um processo jurisdicional.

Nesse sentido, frise-se que a idéia moderna de legalidade repudia essa visão estreita da atividade administrativa, calcada apenas na análise da legislação infraconstitucional, devendo, também, se ater aos valores que informam o ordenamento jurídico como um todo, em especial àqueles previstos nas disposições constitucionais.

Evoluiu-se para se considerar a Administração Pública vinculada não apenas à lei, mas a todo um bloco de legalidade, que incorpora os valores, princípios e objetivos jurídicos maiores da sociedade, com diversas Constituições (por exemplo, a alemã e a espanhola) passando a submeter a Administração Pública expressamente à `lei e ao Direito', o que também se infere implicitamente da nossa Constituição e expressamente da Lei de Processo Administrativo Federal (art. 2º, Parágrafo Único, I). A esta formulação dá-se o nome de Princípio da Juridicidade ou da legalidade em sentido amplo. Note-se que esta formulação é uma via de mão dupla: serve tanto para restringir a ação da Administração Pública não apenas pela lei, mas também pelos valores e princípios constitucionais, como para permitir a sua atuação quando, mesmo diante da ausência de lei infraconstitucional específica, os valores da Constituição (lei constitucional) impuserem a sua atuação (grifos nossos). [16]

Registre-se, por fim, que embora sem a mesma magnitude dos fundamentos adotados no Pedido de Providências - PP n. 0001943-67.2009.2.0.0000, existem precedentes anteriores do Superior Tribunal de Justiça que abonam a tese da competência do Juízo administrativo para cancelar registros imobiliários irregulares, cujas ementas se transcreve a seguir:

CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. CANCELAMENTO DE REGISTRO IMOBILIÁRIO. NATUREZA ADMINISTRATIVA. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ESTADUAL.

1 - Consoante entendimento pacificado desta Corte, não existindo lide, compete ao Juízo de Direito corregedor processar e julgar o pedido de cancelamento de registros imobiliários, não importando se este foi formulado por ente federal, porquanto a questão é de natureza meramente administrativa. Precedentes.

2 - Conflito conhecido para declarar a competência do Juízo da Vara de Feitos Criminais, Júri, Menores, Fazenda Pública e Registros Públicos de Bom Jesus da Lapa/BA, o suscitado."

(CC 31.046/BA, Rel. Ministro FERNANDO GONÇALVES, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 11/06/2003, DJ 30/06/2003 p. 126)

RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA – CANCELAMENTO DE REGISTRO IRREGULAR DE IMÓVEL RURAL – CORREGEDORIA DE JUSTIÇA – REQUERIMENTO DO INCRA - AUSÊNCIA – ILEGALIDADE OU ABUSO DE PODER.

O cancelamento de registro irregular de imóvel rural procedido pela Comissão de Correição da Corregedoria do Tribunal de Justiça do Estado do Amazonas, instituída a requerimento do INCRA com supedâneo na Lei n.º 6.739/90, não constitui ilegalidade ou abuso de poder.

Destarte, merece ser mantida a decisão que denegou o mandado de segurança.

Recurso ordinário improvido."

(RMS 17.436/AM, Rel. Ministro CASTRO FILHO, TERCEIRA TURMA, julgado em 29/06/2004, DJ 09/08/2004 p. 267)

REGISTRO PUBLICO. IRREGULARIDADE. E CANCELAVEL A INSCRIÇÃO, INDEPENDENTEMENTE DE AÇÃO DIRETA. LEI NUM. 6.015/73, ART. 214.

SUMULA 474/STF. SEGURANÇA DENEGADA. RECURSO ORDINARIO NÃO PROVIDO.

(RMS 6.549/SP, Rel. Ministro NILSON NAVES, TERCEIRA TURMA, julgado em 25/02/1997, DJ 14/04/1997 p. 12734)

Portanto, por todos os ângulos que se vislumbre, seja analisando a legislação infraconstitucional ou constitucional, seja considerando o entendimento doutrinário e jurisprudencial existente, o cancelamento administrativo de registros amparados em títulos nulos de pleno direito não só é possível, como também é prestigiado pelo ordenamento jurídico pátrio.

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Sobre o autor
Daniel Martins Felzemburg

Procurador Federal, atualmente exercendo a chefia da Procuradoria Federal Especializada do INCRA no Estado do Tocantins. Graduado em Direito pela Universidade Salvador – UNIFACS (2003). Especialista em Direito Processual Civil pelas Faculdades Jorge Amado (2005), em Salvador-BA. Sócio honorário da Academia Brasileira de Direito Processual Civil desde 2006. Pós-graduando Lato Sensu em Direito Público pela Universidade de Brasília - UNB

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FELZEMBURG, Daniel Martins. Conselho Nacional de Justiça admite o cancelamento administrativo de matrículas irregulares de imóveis.: Um grande passo para defesa das terras públicas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2658, 11 out. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17585. Acesso em: 22 dez. 2024.

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