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Crimes inafiançáveis: uma interpretação da Lei nº 12.403/11 à luz da jurisprudência do STF

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06/07/2011 às 07:33
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A excelsa Corte pátria sempre considerou constitucional a vedação de liberdade provisória feita pela legislação infraconstitucional.

A Lei 12.403/2011 alterou vários dispositivos do Código de Processo Penal (CPP) relativos à prisão processual, fiança e liberdade provisória, criando - já não era sem tempo - um cardápio de outras medidas cautelares diversas da prisão.

O objetivo deste ensaio é interpretar como ficará o tratamento dos denominados "crimes inafiançáveis" diante da novel legislação, análise que será feita à luz da atual jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF).

Já numa primeira plaina, é possível verificar que o legislador reformista, modo correto e salutar, acabou com a divergência, até então existente na jurisprudência e na doutrina, relativa à necessidade de fundamentação da decisão que homologa, ou não, o auto de prisão em flagrante, para fins de manutenção da custódia cautelar ou concessão da liberdade provisória.

Doravante, o juiz, ao receber referido auto, após verificar se realmente ele trata de uma legítima situação de flagrante e se foram preenchidas as formalidades legais, terá que fundamentar as razões pelas quais mantém preso o flagrado ou por qual motivo concederá a liberdade provisória, com ou sem fiança. [01]

Pois bem, diante dessa nova disposição legal, alguns setores da doutrina pátria - notadamente aquele formado pelos adeptos do que já se chamou de "garantismo hiperbólico monocolar" [02], em virtude do seu marcante viés liberal e individualista, mas que também já foi chamado de "garantismo à brasileira", [03] apressaram-se em dizer que "a prisão em flagrante deixou de ser uma prisão cautelar", visto que ela "sempre terá que ser convertida em prisão preventiva".

Tal conclusão, todavia, não procede inteiramente, na medida em que:

A um, a prisão em flagrante, muito embora a sua inarredável gênese de ato administrativo, jamais deixará de ser uma prisão cautelar, menos porque o legislador assim denomina o ato, [04] e mais pela sua própria natureza, visto que, por primeiro, acautela o bem jurídico em ofensa ou recém ofendido e, por segundo, ainda que de modo reflexo, acautela o material probatório, estando, pois, intimamente ligada à efetividade do processo penal, tal como a prisão preventiva;

A dois, conquanto seja verdade que, via de regra, a partir da Lei12.403/2011, a manutenção da prisão, quando houver flagrante, dar-se-á, por conversão, somente nos casos em que presentes os pressupostos e os requisitos legais da prisão preventiva, não se pode relegar ao olvido que, excepcionalmente, nas hipóteses delitivas que versarem sobre crimes inafiançáveis, a manutenção da prisão dar-se-á por força do próprio flagrante, conforme ampla e majoritária jurisprudência do STF.

Com efeito, ainda que passível de crítica, não há malabarismo retórico ou sofisma exegético capaz de negar que a pretensão do constituinte originário, ao proclamar a existência de crimes inafiançáveis, foi a de proibição de qualquer forma de restituição da liberdade aos flagrados na prática destes delitos, seja com fiança, seja sem fiança, ou, agora, seja mediante qualquer alternativa cautelar à prisão, sendo que a referência à expressão inafiançabilidade, feita na época, partia da equivocada suposição de que a vedação da concessão de fiança a tais crimes equivaleria à proibição da concessão de liberdade provisória. [05]

Reconhecendo essa vontade do constituinte e fiel ao seu papel principal - que não é o de legislador negativo, mas de garante da supremacia da Constituição Federal (CF) -, a excelsa Corte pátria sempre considerou constitucional a vedação de liberdade provisória feita pela legislação infraconstitucional, obviamente sempre que esta guardou obediência aos postulados constitucionais. Tanto assim que, em 2003, o STF editou a Súmula 697, reconhecendo, contrario sensu, a constitucionalidade da vedação à liberdade provisória aos flagrados na prática de crimes hediondos. [06]

Somente em 2008, diante de um caso peculiar e excepcional, [07] em que um jovem foi surpreendido com um cigarro de maconha, quando os policiais - sem ordem judicial, por suspeitarem de tráfico, em virtude de notícias de "populares que não quiseram se identificar" - resolveram fazer uma busca na sua casa, encontrando mais drogas, o Min. Eros Grau, que até então se alinhava à jurisprudência anterior, [08] abriu divergência, passando a reconhecer a inconstitucionalidade da vedação da liberdade provisória aos crimes inafiançáveis, determinando a soltura em todos os casos em que os juízes, filiando-se ao posicionamento que ele mesmo já havia adotado, mantinham presos o flagrados, tão-somente por força da inafiançabilidade, vindo nesse passo (equivocado, dada vênia), ao ponto de soltar um piloto de avião, participante de organização criminosa, preso em flagrante com 48 kg de cocaína trazidas da Bolívia! [09]

Sucede que, atualmente, com a aposentadoria do Min. Eros Grau, apenas os Ministros Cezar Peluzo, [10] Gilmar Mendes [11] e Celso de Mello esposam dessa linha de entendimento, cujos fundamentos estão sintetizados na ementa da qual se extraiu o seguinte excerto:

"HABEAS CORPUS" - PRISÃO EM FLAGRANTE MANTIDA COM FUNDAMENTO NA GRAVIDADE OBJETIVA DO DELITO - CARÁTER EXTRAORDINÁRIO DA PRIVAÇÃO CAUTELAR DA LIBERDADE INDIVIDUAL - UTILIZAÇÃO, PELO MAGISTRADO, NO INDEFERIMENTO DO PEDIDO DE LIBERDADE PROVISÓRIA, DE CRITÉRIOS INCOMPATÍVEIS COM A JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL - SITUAÇÃO DE INJUSTO CONSTRANGIMENTO CONFIGURADA (...) A PRISÃO CAUTELAR CONSTITUI MEDIDA DE NATUREZA EXCEPCIONAL. - A privação cautelar da liberdade individual reveste-se de caráter excepcional, somente devendo ser decretada ou mantida em situações de absoluta necessidade. A prisão cautelar, para legitimar-se em face de nosso sistema jurídico, impõe - além da satisfação dos pressupostos a que se refere o art. 312 do CPP (prova da existência material do crime e presença de indícios suficientes de autoria) - que se evidenciem, com fundamento em base empírica idônea, razões justificadoras da imprescindibilidade dessa extraordinária medida cautelar de privação da liberdade do indiciado ou do réu. - A questão da decretabilidade ou manutenção da prisão cautelar. Possibilidade excepcional, desde que satisfeitos os requisitos mencionados no art. 312 do CPP. Necessidade da verificação concreta, em cada caso, da imprescindibilidade da adoção dessa medida extraordinária. Precedentes. A MANUTENÇÃO DA PRISÃO EM FLAGRANTE - ENQUANTO MEDIDA DE NATUREZA CAUTELAR - NÃO PODE SER UTILIZADA COMO INSTRUMENTO DE PUNIÇÃO ANTECIPADA DO INDICIADO OU DO RÉU. - A prisão cautelar não pode - e não deve - ser utilizada, pelo Poder Público, como instrumento de punição antecipada daquele a quem se imputou a prática do delito, pois, no sistema jurídico brasileiro, fundado em bases democráticas, prevalece o princípio da liberdade, incompatível com punições sem processo e inconciliável com condenações sem defesa prévia. A prisão cautelar - que não deve ser confundida com a prisão penal - não objetiva infligir punição àquele que sofre a sua decretação, mas destina-se, considerada a função cautelar que lhe é inerente, a atuar em benefício da atividade estatal desenvolvida no processo penal. A GRAVIDADE EM ABSTRATO DO CRIME NÃO CONSTITUI FATOR DE LEGITIMAÇÃO DA PRIVAÇÃO CAUTELAR DA LIBERDADE. - A natureza da infração penal não constitui, só por si, fundamento justificador da decretação da prisão cautelar daquele que sofre a persecução criminal instaurada pelo Estado. Precedentes. A PRISÃO CAUTELAR NÃO PODE APOIAR-SE EM JUÍZOS MERAMENTE CONJECTURAIS. - A mera suposição, fundada em simples conjecturas, não pode autorizar a decretação da prisão cautelar de qualquer pessoa. - A decisão que ordena a privação cautelar da liberdade não se legitima quando desacompanhada de fatos concretos que lhe justifiquem a necessidade, não podendo apoiar-se, por isso mesmo, na avaliação puramente subjetiva do magistrado de que a pessoa investigada ou processada, se em liberdade, poderá delinqüir, ou interferir na instrução probatória, ou evadir-se do distrito da culpa, ou, então, prevalecer-se de sua particular condição social, funcional ou econômico-financeira. - Presunções arbitrárias, construídas a partir de juízos meramente conjecturais, porque formuladas à margem do sistema jurídico, não podem prevalecer sobre o princípio da liberdade, cuja precedência constitucional lhe confere posição eminente no domínio do processo penal. AUSÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO, NO CASO, DA NECESSIDADE CONCRETA DE MANTER-SE A PRISÃO EM FLAGRANTE DO PACIENTE. - Sem que se caracterize situação de real necessidade, não se legitima a privação cautelar da liberdade individual do indiciado ou do réu. Ausentes razões de necessidade, revela-se incabível, ante a sua excepcionalidade, a decretação ou a subsistência da prisão cautelar. O POSTULADO CONSTITUCIONAL DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA IMPEDE QUE O ESTADO TRATE, COMO SE CULPADO FOSSE, AQUELE QUE AINDA NÃO SOFREU CONDENAÇÃO PENAL IRRECORRÍVEL. - A prerrogativa jurídica da liberdade - que possui extração constitucional (CF, art. 5º, LXI e LXV) - não pode ser ofendida por interpretações doutrinárias ou jurisprudenciais que, fundadas em preocupante discurso de conteúdo autoritário, culminam por consagrar, paradoxalmente, em detrimento de direitos e garantias fundamentais proclamados pela Constituição da República, a ideologia da lei e da ordem. - Mesmo que se trate de pessoa acusada da suposta prática de crime hediondo, e até que sobrevenha sentença penal condenatória irrecorrível, não se revela possível - por efeito de insuperável vedação constitucional (CF, art. 5º, LVII) - presumir-lhe a culpabilidade. No sistema jurídico brasileiro, não se admite, por evidente incompatibilidade com o texto da Constituição, presunção de culpa em sede processual penal. Inexiste, em conseqüência, no modelo que consagra o processo penal democrático, a possibilidade jurídico-constitucional de culpa por mera suspeita ou por simples presunção. - Ninguém pode ser tratado como culpado, qualquer que seja a natureza do ilícito penal cuja prática lhe tenha sido atribuída, sem que exista, a esse respeito, decisão judicial condenatória transitada em julgado. O princípio constitucional da presunção de inocência, em nosso sistema jurídico, consagra, além de outras relevantes conseqüências, uma regra de tratamento que impede o Poder Público de agir e de se comportar, em relação ao suspeito, ao indiciado, ao denunciado ou ao réu, como se estes já houvessem sido condenados, definitivamente, por sentença do Poder Judiciário. Precedentes." (HC 98862, Relator(a):  Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 23/06/2009, DJe-200 DIVULG 22-10-2009 PUBLIC 23-10-2009 EMENT VOL-02379-06 PP-01138)

A despeito dos ponderáveis e sempre respeitáveis argumentos do decano da Suprema Corte, a realidade é que a maioria dos seus pares pensa de modo diverso, filiando-se ao entendimento de que a proibição de liberdade provisória, nos casos de crimes hediondos e equiparados, decorre da própria inafiançabilidade imposta pela Constituição.

Nesse sentido, no sítio daquela Corte encontram-se precedentes relatados pelos Ministros Dias Toffoli, [12] Ellen Gracie, [13] Joaquim Barbosa, [14] Ricardo Lewandowski, [15] Luiz Fux [16] e Ayres Britto, [17] os quais seguem orientação que pode ser sintetizada na seguinte ementa de lavra da Min. Cármen Lúcia:

"HABEAS CORPUS. CONSTITUCIONAL. PROCESSO PENAL. PRISÃO EM FLAGRANTE POR TRÁFICO DE DROGAS. LIBERDADE PROVISÓRIA: INADMISSIBILIDADE. ORDEM DENEGADA. 1. A proibição de liberdade provisória, nos casos de crimes hediondos e equiparados, decorre da própria inafiançabilidade imposta pela Constituição da República à legislação ordinária (Constituição da República, art. 5º, inc. XLIII): Precedentes. O art. 2º, inc. II, da Lei n. 8.072/90 atendeu ao comando constitucional, ao considerar inafiançáveis os crimes de tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos. Inconstitucional seria a legislação ordinária que dispusesse diversamente, tendo como afiançáveis delitos que a Constituição da República determina sejam inafiançáveis. Desnecessidade de se reconhecer a inconstitucionalidade da Lei n. 11.464/07, que, ao retirar a expressão ‘e liberdade provisória’ do art. 2º, inc. II, da Lei n. 8.072/90, limitou-se a uma alteração textual. A proibição da liberdade provisória decorre da vedação da fiança, não da expressão suprimida, a qual, segundo a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, constituía redundância. Mera alteração textual, sem modificação da norma proibitiva de concessão da liberdade provisória aos crimes hediondos e equiparados, que continua vedada aos presos em flagrante por quaisquer daqueles delitos. 2. A Lei n. 11.464/07 não poderia alcançar o delito de tráfico de drogas, cuja disciplina já constava de lei especial (Lei n. 11.343/06, art. 44, caput), aplicável à espécie vertente. 3. Irrelevância da existência, ou não, de fundamentação cautelar para a prisão em flagrante por crimes hediondos ou equiparados: Precedentes. 4. É firme a jurisprudência deste Supremo Tribunal Federal no sentido de que as condições subjetivas favoráveis do Paciente, tais como emprego lícito, residência fixa e família constituída, não obstam a segregação cautelar. Precedentes. 5. Ordem denegada."(HC 103715, Relator(a):  Min. CÁRMEN LÚCIA, Primeira Turma, julgado em 23/11/2010, DJe-055 DIVULG 23-03-2011 PUBLIC 24-03-2011 EMENT VOL-02488-01 PP-00065)

O Min. Marco Aurélio, por sua vez, tem-se filiado ao entendimento da maioria, negando liminares baseadas no entendimento minoritário, sendo, todavia, sempre muito zeloso com a vedação de excesso de prazo na formação da culpa, nos termos da Súmula 691, [18] dando, ademais, indicativos de que seguirá a orientação da minoria, isso quando o Pleno julgar a divergência instalada, uma vez que foi ele quem reconheceu a repercussão geral. [19]

Como se vê, portanto, a maioria absoluta dos Ministros do STF filia-se ao entendimento que pode ser fundamentado nas seguintes assertivas:

Na hipótese de flagrante de crimes hediondos e equiparados, a proibição da liberdade provisória deriva logicamente do preceito constitucional do art. 5º, XLIII, da CF, que impõe a inafiançabilidade das referidas infrações penais, pois seria ilógico que, vedada a liberdade provisória mediante fiança, fosse ela admissível sem fiança, impondo-se, a respeito, a comezinha lição de hermenêutica no sentido de que o intérprete deve rejeitar sumariamente as exegeses que conduzem ao absurdo.

Portanto, na hipótese de flagrante de crimes hediondos e equiparados, é irrelevante a discussão acerca da existência, ou não, de fundamentação da decisão nos pressupostos da prisão preventiva.

Inconstitucional seria a legislação ordinária que dispusesse diversamente, tendo como passíveis de liberdade provisória delitos que a CF determina sejam inafiançáveis.

A Lei 11.464/07, ao retirar a expressão ‘e liberdade provisória’ do art. 2º, inc. II, da Lei 8.072/90, limitou-se a uma alteração textual, pois constituía redundância a "proibição da liberdade provisória e fiança". Logo, a Lei 12.403/2011 ao estabelecer, na nova redação do art. 323 do CPP, que são inafiançáveis os crimes de racismo; tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, terrorismo e nos definidos como crimes hediondos; bem como nos crimes cometidos por grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático, não precisaria dizer que eles são insuscetíveis de liberdade provisória, pois incorreria em nova redundância.

Ainda, seguindo a mesma linha de raciocínio feita pelo STF com relação à Lei 11.464/07, é possível sustentar-se que a Lei 12.403/2011 não pode alcançar delitos cuja disciplina conste em lei especial, tal como o de tráfico de drogas (art. 44 da Lei 11.343/06), visto que a legislação especial atende o comando do inciso LXVI do artigo 5º da CF, segundo "ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança".

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Dito isso, tem-se que a partir da Lei 12.403/2011, ao analisar uma situação de prisão em flagrante pela prática de crime inafiançável, o juiz, se reconhecer a legalidade do auto, deverá negar a liberdade provisória, fundamentando a sua decisão na Constituição e na lei especial, se for o caso, mantendo a prisão por força do flagrante, isso porque estarão presentes os pressupostos de todas as prisões cautelares:

fumus comissi delicti: A prisão em flagrante implica em inversão do ônus da prova, pois gera certeza visual de autoria e materialidade, conforme se lê em qualquer manual de processo penal [20] e na jurisprudência, inclusive do STF [21]; Portanto, na hipótese de flagrante de crime inafiançável, os corolários do princípio da presunção de não-culpabilidade - que não é absoluto, como de resto nenhum outro é - terão a sua força quebrantada. [22]

Periculum libertatis: Há uma presunção constitucional de periculosidade da conduta protagonizada pelo agente que é flagrado praticando crime hediondo ou equiparado. A Constituição parte de um juízo apriorístico (objetivo) de periculosidade de todo aquele que é surpreendido na prática de delito hediondo, independentemente da presença dos pressupostos cautelares do art. 312 do CPP. [23]

Obviamente, até mesmo em virtude da divergência jurisprudencial e doutrinária, nada impede, pelo contrário, tudo recomenda, que diante de peculiar gravidade no caso concreto, o juiz utilize reforço de argumentação, mantendo a prisão pelo pressuposto cautelar da ordem pública, visando assegurar a credibilidade das instituições públicas, em especial do Poder Judiciário, dando visibilidade e transparência às políticas públicas de persecução criminal, conforme admitem inúmeros precedentes do STF, inclusive na sua composição plena. [24]

Sem embargo, por outro lado, as particularidades do caso concreto também poderão tornar extremamente iníquas as regras do constituinte e do legislador, a elas devendo o julgador sobrepor o postulado da proporcionalidade, concedendo a liberdade. Como exemplo, podemos citar caso em que atuamos, concordando, antes mesmo da Lei 11.343/06, com a liberdade em caso de tráfico "minorado", quando uma moça, primária e sem antecedentes, com trabalho e residência fixos, foi flagrada levando cigarros de maconha para o namorado preso. Mas, mesmo nesses casos tópicos, a vedação da liberdade provisória aos crimes inafiançáveis continuará sendo reconhecida como constitucional em abstrato, e a concessão da liberdade, por ser excepcional, desafiará adequada fundamentação. [25]

Assim, pelo fio do exposto, conclui-se que o flagrante continua sendo uma espécie de prisão cautelar e continuará prendendo "por si só" nos casos de crimes inafiançáveis, sendo que a nova redação do artigo 321do CPP [26] carecerá de "interpretação conforme a Constituição", ou seja, "o juiz deverá conceder a liberdade provisória", salvo se o crime dela for insuscetível.

Esse breve ensaio, fulcrado exclusivamente na análise dos precedentes da excelsa Corte, fará parte de artigo coletivo a ser publicado na Revista do Ministério Público do RS, em que certamente receberá o devido aporte da doutrina constitucionalista brasileira e alienígena.

Por ora, apenas apontou-se que, como instância final no tocante à matéria Constitucional, a jurisprudência do STF já se posicionou a respeito da vedação de liberdade provisória nos crimes inafiançáveis, sendo possível, a partir dela, extrair-se uma adequada interpretação da Lei 12.403/2011, pois, como é de comezinho saber jurídico: "Não se pode interpretar a Constituição conforme a lei ordinária. O contrário é que se faz."

Entende-se que a utilização desse escólio jurisprudencial, já sedimentado na Suprema Corte, ampliará o grau de coerência e harmonia da jurisdição, reduzindo o sortilégio e o excessivo decisionismo que permeiam os órgãos inferiores do judiciário, tornando a atividade jurisdicional mais equânime e adequada aos anseios de pacificação social.

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Sobre o autor
Charles Emil Machado Martins

Promotor de Justiça, Professor de Direito Processual Penal na FESMP-RS e UNISINOS.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINS, Charles Emil Machado. Crimes inafiançáveis: uma interpretação da Lei nº 12.403/11 à luz da jurisprudência do STF. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2926, 6 jul. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19476. Acesso em: 22 dez. 2024.

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