RESUMO
Este artigo discute a inconstitucionalidade do art. 3º, caput e parágrafo único da Lei 12.382/2011, que "dispõe sobre o valor do salário mínimo em 2011 e a sua política de valorização de longo prazo". Para isso, aborda-se a diferença jurídica entre poder regulamentar e lei, bem como a forma de definição do salário mínimo. Entre os posicionamentos sobre o tema estão incluídos os pareceres do Senado e da AGU, que defendem a constitucionalidade do dispositivo, bem como os argumentos evocados por partidos políticos de oposição ao atual Governo para ingressarem com Ação Direta de Inconstitucionalidade no STF – ADI 4568, de 01.03.2011. Com base em doutrinadores do direito constitucional, administrativo e do trabalho, são discutidos os fundamentos jurídicos que explicitam a inconstitucionalidade do referido dispositivo.
Palavras-chave: poder regulamentar, decreto, lei, princípio da legalidade, salário mínimo.
INTRODUÇÃO
No início deste ano o atual Governo propôs a Lei 12.382/2011, que "dispõe sobre o valor do salário mínimo em 2011 e a sua política de valorização de longo prazo", em princípio, conforme previsão constitucional. O tema não teria tanta repercussão se não fosse a presença do art. 3º e parágrafo único da referida norma, pois de acordo com este dispositivo os reajustes e aumentos do salário mínimo no período de 2012 a 2015 ficariam a cargo do Poder Executivo, a quem caberia editar decreto para aplicar os critérios e parâmetros fixados na lei em comento.
O arranjo jurídico de lei e decreto para reajuste e elevação do salário mínimo no longo prazo é uma questão inusitada na vigência da Constituição de 1988, o que ensejou embates políticos e acadêmicos acalorados sobre o tema. De qualquer modo, a Carta Magna estampa claramente a definição do salário mínimo por meio de lei, sinalizando reserva legal. Por esse motivo, o art. 3º e parágrafo único da referida lei foram alvo de Ação Direta de Inconstitucionalidade por parte de um segmento político.
No presente artigo, a abordagem da problemática consistiu numa discussão inicial a respeito de lei e poder regulamentar, identificando suas principais diferenças, na forma do capítulo 1.
Em seguida, no capítulo 2, buscou-se traçar o fluxo da definição do salário mínimo com base no ordenamento jurídico atual perpassando pelo parecer do Senado e da AGU acerca do art. 3º e parágrafo único da lei em tela. Ao final deste capítulo, foca-se a hermenêutica doutrinária sobre a fixação do salário mínimo e o caminho para a observância do princípio da legalidade e do sistema de check and balance, a fim de manter a constitucionalidade da norma.
1.Lei e Poder Regulamentar: principais diferenças
Inicialmente, cabe clarificar o conceito de decreto e suas características, a fim de possibilitar aprofundamento sobre a inconstitucionalidade do art. 3º, caput e parágrafo único da Lei 12.382/2011, que "dispõe sobre o valor do salário mínimo em 2011 e a sua política de valorização de longo prazo", entre outros temas. Assim, de acordo com Hely Lopes Meirelles, os decretos são inerentes aos Chefes do Poder Executivo e buscam atingir casos genéricos ou específicos, de forma abstrata, cuja manifestação ocorre de modo expresso, explícito ou tácito. Hely Lopes acentua, ainda, que o decreto se apresenta em condição inferior à da lei, razão pela qual com ela não pode conflitar, e, via de regra, é normativo e geral, in verbis:
Decretos, em sentido próprio e restrito, são atos administrativos da competência exclusiva dos Chefes do Executivo, destinados a prover situações gerais ou individuais, abstratamente previstas de modo expresso, explícito ou implícito, pela legislação. Comumente, o decreto é normativo e geral [...] Como ato administrativo, o decreto está sempre em situação inferior à da lei e, por isso mesmo, não a pode contrariar [...]. [01]
Segundo Hely Lopes, o decreto geral pode ser independente ou autônomo e regulamentar ou de execução. No primeiro caso, o decreto trata de tema ainda não regulado em lei específica, enquanto na segunda hipótese clarifica a lei, facilitando sua execução e aplicação. [02]
Nessa mesma linha de raciocínio segue Di Pietro, segundo a qual o "decreto é a forma de que se revestem os atos individuais ou gerais emanados do Chefe do Poder Executivo". Para esta doutrinadora, os decretos gerais podem ser regulamentar ou de execução e independente ou autônomo, estando os primeiros previstos no art. 84, IV, da Constituição Federal e os segundos no art. 84, VI, da Carta Magna. [03]
Tanto Di Pietro quanto Hely Lopes entendem que o decreto geral apresenta caráter normativo equivalente à lei, ressaltando-se que a primeira autora faz uma diferenciação entre ambos os atos a que convém evocar:
Quando comparado à lei, que é ato normativo originário (porque cria direito novo originário de órgão estatal dotado de competência própria derivada da Constituição), o decreto regulamentar é ato normativo derivado (porque não cria direito novo, mas apenas estabelece normas que permitam explicitar a forma de execução da lei). [04]
De acordo com Celso Antônio Bandeira de Mello o decreto é uma forma de manifestação de ato da administração pública, uma espécie de "veículo de expedição de atos", por meio do qual são expedidas normas gerais e regulamentos. In verbis:
Decreto é fórmula pela qual o Chefe do Poder Executivo (federal, estadual, distrital e municipal) expede atos de sua competência privativa (art. 84 da Constituição). Assim, por meio de decreto são expedidas quer normas gerais, como os regulamentos, quer normas individuais, isto é, atos concretos, da alçada dos Chefes de Executivo [...]. [05]
Ao tratar do poder regulamentar, Alexandre de Moraes entende que os regulamentos são atos de caráter normativo provenientes do Poder Executivo, tendo como objetivo a aplicação de leis. Assim, a interpretação dada por este autor ao art. 84, IV, CF/88, é de que o regulamento traduz o conteúdo, enquanto o decreto a forma, a exemplo do posicionamento de Bandeira de Mello, senão vejamos:
Os regulamentos, portanto, são normas expedidas privativamente pelo Presidente da República, cuja finalidade precípua é facilitar a execução das leis, removendo eventuais obstáculos práticos que podem surgir em sua aplicação e se exteriorizam por meio de decreto [...]. [06]
Já as leis se revestem de aspectos muito mais sustentáveis sob o ponto de vista jurídico, político e social, haja vista que a sua concepção provém de entidade com maior amplitude em termos de representatividade da sociedade da qual emana, comparativamente ao decreto. O parlamento é seu ambiente de gestação, no qual ocorrem embates calcados nas mais variadas visões de mundo, de idéias, de projetos de sociedade, etc. A ritualística de elaboração das leis ocorre de forma diferenciada, sendo oportuno trazer à baila pensamento de Celso Antônio Bandeira de Mello quando traça diferenças entre regulamento [07] e lei ao discutir poder regulamentar:
Deveras, as leis provêm de um órgão colegial – o Parlamento – no qual se congregam várias tendências ideológicas, múltiplas facções políticas, diversos segmentos representativos do espectro de interesses que concorrem na vida social, de tal sorte que o Congresso se constitui em verdadeiro cadinho onde se mesclam distintas correntes [...] O próprio processo de elaboração das leis, em contraste com o dos regulamentos, confere às primeiras um grau de controlabilidade, confiabilidade, imparcialidade e qualidade normativa muitas vezes superior ao dos segundos, ensejando, pois, aos administrados um teor de garantia e proteção incomparavelmente maiores. É que as leis se submetem a um trâmite graças ao qual é possível o conhecimento público das disposições que estejam em caminho de ser implantadas. Com isto, evidentemente, há uma fiscalização social, seja por meio da imprensa, de órgãos de classe, ou de quaisquer setores interessados [...] [08]
Na concepção de Bandeira de Mello, o ordenamento jurídico vigente está estruturado no princípio da legalidade, o que está evidenciado no art. 5º, inciso II combinado com o art. 37 da Constituição Federal. Nesse sentido, a competência regulamentar do Poder Executivo prevista no art. 84, inciso IV, CF/88, não tem o condão de criar direitos ou obrigações, estando tal função, por isso, vinculada e dependente de lei específica emanada do Poder Legislativo. Este é também o pensamento de Pontes de Miranda, citado pelo autor, quando afirma categoricamente que o regulamento deve se restringir a auxiliar a lei, não podendo inovar ou modificar direitos, in verbis:
Onde se estabelecem, alteram ou extinguem direitos, não há regulamentos – há abuso do poder regulamentar, invasão de competência legislativa. O regulamento não é mais do que auxiliar das leis, auxiliar que sói pretender, não raro, o lugar delas, mas sem que possa, com tal desenvoltura, justificar-se e lograr que o elevem à categoria de lei. [09]
Nesse contexto, há de se consignar que o Brasil se fundamenta num Estado Democrático de Direito, cujos poderes interdependentes e harmônicos entre si desempenham suas funções a partir estritamente das disposições constitucionais e observando seus princípios, sem sofrerem interferências uns dos outros. Por outro lado, na inter-relação dos poderes, uma das formas de controle recíproco consiste no chamado sistema de freios e contrapesos (check and balance). Com base nessa teoria, grosso modo, cabe ao Executivo exercer predominantemente as atribuições de execução, ao Legislativo a atividade legiferante e ao Judiciário a jurisdição ou solução de conflitos de interesse. Logicamente, em muitas situações, os três poderes desempenham atividades que tipicamente são de outro, e.g., quando o Legislativo apresenta licitação para aquisição de equipamentos, que é ato peculiar ao Executivo. Reforcem-se, essas atividades impróprias têm suas limitações constitucionais. [10]
O doutrinador José Afonso da Silva se mostra também categórico ao demonstrar a limitação do poder regulamentar do Executivo, destacando a inferioridade do ato normativo oriundo deste Poder em relação à lei, uma vez que esta pode inovar a ordem jurídico-formal, enquanto o regulamento tão-somente detalha as regras e procedimentos contidos na lei. In verbis:
O poder regulamentar não é poder legislativo, por conseguinte não pode criar normatividade que inove a ordem jurídica. Seus limites naturais situam-se no âmbito da competência executiva e administrativa, onde se insere. Ultrapassar esses limites importa abuso de poder, usurpação de competências, tornando írrito o regulamento dele proveniente, e sujeitos a sustação pelo Congresso Nacional [...] Lei e regulamento são, ambos, normas jurídicas gerais e abstratas, obrigatórias e relativamente permanentes. A distinção fundamental, hoje aceita pela generalidade dos autores está em que a lei inova a ordem jurídico-formal, seja modificando normas preexistentes, seja regulando matéria ainda não regulada normativamente. Ao passo que o regulamento não contém, originariamente, novidade modificativa da ordem jurídico-formal; limita-se a precisar, pormenorizar, o conteúdo da lei. É, pois, norma jurídica subordinada [...] [11]
Dessa forma, ainda abordando a diferenciação entre decreto e lei, a ritualística desta última é comparativamente mais dinâmica, complexa e com maior quantidade de envolvimento de interlocutores, exercendo o Congresso Nacional o protagonismo que lhe é próprio na forma insculpida na Constituição Federal. De qualquer modo, o próprio Executivo também desempenha papel relevante nesse processo, com base no sistema de pesos e contrapesos (check and balance). É oportuno transcrever abaixo os esclarecimentos de José Afonso da Silva a respeito da ritualística e do papel definido constitucionalmente para cada um dos poderes nesse processo, onde se verifica a importância do Congresso Nacional, considerando-se um Estado Democrático de Direito:
Se ao Legislativo cabe a edição de normas gerais e impessoais, estabelece-se um processo para sua formação em que o Executivo tem participação importante, quer pela iniciativa das leis, quer pela sanção e pelo veto. Mas a iniciativa legislativa do Executivo é contrabalançada pela possibilidade que o Congresso tem de modificar-lhe o projeto por via de emendas e até de rejeitá-lo [...]. [12]
2.Definição do salário mínimo:
2.1.Disposição Constitucional
Feito isso, direcionando a discussão para o objeto deste artigo, cabe assinalar que a política salarial, aí entendida o mecanismo para definir reajustes salariais, consiste num sistema para proteger o ganho do trabalhador, possibilitar a distribuição de riqueza, reduzir o desemprego e fazer contraponto à inflação, no transcorrer do tempo. [13]
Historicamente, os primeiros países a normatizarem o salário mínimo foram a Austrália e Nova Zelândia, em 1894 e 1896, respectivamente. [14] No Brasil, a primeira constituição a tratar especificamente do tema foi a de 1934 no seu art. 121, § 1º, b, tendo seguido menção nas Cartas Magnas seguintes com alguns ajustes ou acréscimos. Em termos de normas infraconstitucionais após a Lei nº 185 de 1936, a CLT foi, sem dúvida, um dos marcos da política salarial, de forma que no seu art. 76 evidencia-se o conceito e finalidade do salário mínimo. [15] Para efeito da presente análise, é interessante registrar que os reajustes e aumentos do salário mínimo eram definidos, antes da Constituição Federal de 1988, pelo Presente da República mediante Decreto e até mesmo por portaria, conforme destaca Martins, in verbis:
O art. 76 da CLT esclarece que salário mínimo é a contraprestação mínima devida e paga diretamente pelo empregador ao trabalhador, inclusive trabalhador rural, por dia normal de serviço. Não poderia haver distinção de sexo. Deveria o salário satisfazer às necessidades normais do trabalhador com alimentação, habitação, vestuário, higiene e transporte. O salário mínimo era fixado por região, normalmente por decretos ou até portarias. (grifos nossos). [16]
Com o advento da Constituição Federal de 1988, o inciso IV do art. 7º [17], entre outras modificações e acréscimos comparativamente às constituições anteriores, menciona que o salário mínimo deve ser fixado por lei. Nesse sentido, é oportuno recorrer a uma ponderação de Martins, in verbis:
A primeira orientação encontrada na atual Constituição é a de que o salário mínimo só pode ser fixado por lei. Não há mais a possibilidade de se estabelecer o salário mínimo mediante decretos ou portarias, como vinha sendo feito até então, estando revogado o art. 116 da CLT [18], que permitia a fixação do salário mínimo por decreto. [19]
Ao comentar direitos sociais relativos aos trabalhadores, José Afonso da Silva destaca entre outros temas, a questão salarial. Na visão deste doutrinador, os pontos mais relevantes a respeito do sistema de salário são a fixação e a proteção. O primeiro aspecto refere-se à definição do salário mínimo com base na lei, segundo dispõe o art. 7º, inciso IV, da Constituição Federal e a proteção caracteriza-se pela irredutibilidade e vedação à sua retenção dolosa, conforme art. 7º, incisos VI e X da Carta Magna. [20]
Na conceituação que faz de salário mínimo o doutrinador Arnaldo Süssekind compartilha do entendimento de que sua fixação deva ocorrer mediante edição de lei, reconhecendo aí a imposição constitucional prevista no art. 7º, IV. Além disso, o autor pondera o papel axial a ser desempenhado pelo Poder Legislativo no sentido de identificar a defasagem salarial do trabalhador e provocar a elaboração de norma para assegurar reajuste e aumentos do salário mínimo, conforme se depreende abaixo:
O salário mínimo será fixado por lei. Antes a lei dispunha sobre os elementos que deveriam ser aferidos para determinação do salário mínimo, atribuindo ao Presidente da República o encargo de aprová-lo por Decreto, depois do pronunciamento do Conselho Nacional de Política Salarial, no qual têm assento representantes de empregadores e de trabalhadores. Agora caberá ao Congresso Nacional fixar o seu valor, tendo em conta os fatores discriminados no próprio inciso constitucional.
[...] deve o Congresso promover a audiência das confederações nacionais de trabalhadores e de empregadores durante os procedimentos para a fixação do salário mínimo. A Lei Maior não prevê periodicidade desses procedimentos, que poderão ser iniciados quando uma das Casas do Congresso entender que o valor real do salário mínimo vigente não mais corresponde à realidade socieconômica brasileira [...] [21]
2.2.Debate inicial acerca do art. 3º e parágrafo único: Lei 12.382/2011
Ocorre que recentemente, por meio da proposta por parte do Poder Executivo da Lei 12.382, de 25.02.2011, que "dispõe sobre o valor do salário mínimo em 2011 e a sua política de valorização de longo prazo", foi consignado um artigo que tem gerado polêmica tanto no meio político, especialmente no Congresso Nacional, quanto na área jurídica, cujo teor é o seguinte:
Art. 3º Os reajustes e aumentos fixados na forma do art. 2º serão estabelecidos pelo Poder Executivo, por meio de decreto, nos termos desta Lei.
Parágrafo único. O decreto do Poder Executivo a que se refere o caput divulgará a cada ano os valores mensal, diário e horário do salário mínimo decorrentes do disposto neste artigo, correspondendo o valor diário a um trinta avos e o valor horário a um duzentos e vinte avos do valor mensal. [22]
É curioso observar que a Lei 12.382 ao transitar na Câmara Federal não teve nenhum questionamento no que tange ao dispositivo supra sob o enfoque constitucional ou mesmo não foi proposta emenda sobre o tema, enquanto no Senado Federal foram apresentadas emendas, as quais não foram acatadas no parecer final, conforme se depreende abaixo:
No tocante às emendas, opinamos pela rejeição de todas.
A emenda nº 1 veicula grave equívoco que vem sendo divulgado sobre o art. 3º da proposição.
Certo é que é expressa, no art. 7º, IV, da Constituição, a determinação de que a fixação do salário mínimo é matéria de reserva legal, insuscetível de ser delegada a sua veiculação por decreto ou qualquer outro ato infralegal.
A doutrina e a jurisprudência são pacíficas nesse sentido.
Entretanto, o que se pretende na proposição em debate não é, absolutamente, delegar ao Poder Executivo a fixação do salário mínimo, mas, tão-somente, determinar que o Presidente da República, mediante ato administrativo, declare, publique, informe esse valor, já fixado segundo os critérios estabelecidos na lei.
O decreto que for editado anualmente estabelecendo o valor do salário mínimo é um ato totalmente vinculado, sem qualquer espaço para a discricionariedade. Apenas aplicará variáveis objetivamente determinadas ao valor do salário mínimo, para explicitar o que foi fixado em lei pelo Congresso Nacional. [23]
Nessa mesma linha de raciocínio segue o Despacho 157/AG/2011 da AGU, no qual o principal fundamento é o de que o Poder Executivo simplesmente segue a matéria tratada na norma (Lei 12.382), sem qualquer poder discricionário para alterar os parâmetros e composições de reajustes (variação do INPC dos 12 meses anteriores) e elevações (crescimento do PIB dos dois últimos anos) do salário mínimo para o período de 2012 a 2015 aprovados pelo Congresso Nacional, in verbis:
3. A matéria foi exaustivamente discutida no Congresso Nacional. O salário mínimo é fixado por lei, como aqui se evidencia, prevendo-se reajustes e aumentos por parte do Poder Executivo. Não há inovação ou invasão de competência, por parte do Executivo, em matéria ordinariamente reservada ao Legislativo. Este último fixa os valores, por lei, e aquele primeiro dá continuidade à aludida fixação, mediante cálculo de reajustes e aumentos. O regulamento apenas cuida do fiel cumprimento da lei. Trata-se de mera recomposição de referências e de expressão, a partir da fixação por lei, núcleo do projeto de que se cuida. Em outras palavras, a lei fixa os critérios que serão utilizados pelos decretos supervenientes, em matéria de salário mínimo. Bem entendido, não haverá por parte do Executivo o exercício de qualquer fórmula de discricionariedade. É que a lei já determina os critérios que serão eventualmente utilizados, no que se refere aos cálculos que deverão ser feitos. [24]
Por outro lado, esse não foi o entendimento de representações partidárias no Congresso Nacional – PPS, PSDB e DEM – as quais ingressaram com Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 4568, de 01.03.2011) do art. 3º, caput e parágrafo, da lei em comento, sob a alegação de incompatibilidade desse dispositivo com o conteúdo do art. 7º, IV, CF/88 (reserva legal), o qual reza que o salário mínimo deve ser fixado com base em lei, cujo significado é de lei formal, exigindo, portanto rito específico para aprovação. Nessa hipótese, prossegue a petição inicial (pág. 4 a 5), ocorre uma espécie de delegação de poderes à Presidente da República, a qual poderá fixar com exclusividade o valor do salário mínimo, de maneira que o Congresso Nacional não poderá interferir sobre a definição do salário mínimo entre os anos de 2012 e 2015, in verbis:
Pois bem, ao utilizar o vocábulo ‘lei’, o dispositivo constitucional retro invocado, a toda evidência, se refere à ‘lei em sentido formal’. Portanto, somente a ‘lei’ – aprovada nos termos do rito estabelecido pela Constituição Federal – ‘pode fixar o valor do salário mínimo’.
Ocorre que art. 3 da Lei 12.382/2011 estabelece que o Poder Executivo poderá estabelecer o valor do salário mínimo, entre os anos de 2012 e 2015, ‘por meio de Decreto da Presidente da República’, o que se mostra incompatível com a reserva legal estabelecida no inciso IV do art. 7 da Lei Maior.
O que se verifica na espécie nada mais é do que uma indisfarçada ‘delegação de poderes’ à Excelentíssima Senhora Presidente da República, para que possa o Poder Executivo deter a prerrogativa de fixar, ‘com exclusividade’, o valor do salário mínimo. Por via de conseqüência, o Congresso Nacional ‘não poderá se manifestar sobre o valor do salário mínimo entre os anos de 2012 e 2015’.
Tal delegação contrasta a mais não poder com a mais elementar concepção de separação dos Poderes, pois se trata de matéria ‘reservada exclusivamente à lei’. A disposição constitucional exige que ‘a lei fixe o valor do salário mínimo’. E fixar, é sem dúvida, definir todos os elementos que compõem certo conceito ou ‘valor’. A mera designação geral de critérios, para o futuro, para posterior determinação do valor em ato normativo infralegal ‘não atende aos requisitos constitucionais estabelecidos’. [25]
Destaca, ainda, a petição inicial (pág. 5 e 6), firmando-se em Alexandre de Moraes, que a Presidente da República só poderia fixar unilateralmente o salário mínimo pela via da Lei delegada, o que não ocorreu, pois a que contempla o artigo ora questionado é de natureza ordinária. Ao concluir, pondera que o Poder Legislativo é o espaço legítimo e democrático para o debate do valor do salário mínimo e de seus reajustes periódicos. [26]
2.3.Inconstitucionalidade do art. 3º e parágrafo único:Lei 12.382/2011
Diante dessa polêmica posta, desde logo se constata incongruência e incompatibilidade do contido no art. art. 3º, caput e parágrafo da lei em comento com a ordem constitucional vigente, dada a diferença da natureza jurídica e da amplitude de cada instituto, a saber, decreto e lei, conforme discussão doutrinária apresentada alhures, independentemente de qualquer posicionamento político-ideológico.
Nesse sentido, em comentários a respeito do art. 7º, inciso IV, da Constituição Federal, Alexandre de Moraes cita um julgado do STF (RTJ 162/877 e STF Pleno – Adin 1.458-DF, Rel. Celso de Mello, Diário da Justiça, Seção I, 20 set.1996, p. 34.531) que explicita a fixação do salário mínimo por intermédio de lei, destacando-se como uma "verdadeira imposição legiferante". Tal jurisprudência reforça o caráter normativo – na modalidade de lei e não de decreto – a assegurar o reajuste e a elevação salarial, de maneira que o Poder Público, aí entendido como o Poder Legislativo na sua função típica – não afastando a possibilidade do Executivo propor lei de reajuste, mas não fixar – coloca-se na obrigação de legislar sob as perspectivas jurídico-social e econômico-financeiro, a fim de assegurar as necessidades básicas do trabalhador, in verbis:
[...] A cláusula constitucional inscrita no art. 7º, IV, da Carta Política – para além da proclamação da garantia social do Salário Mínimo – consubstancia verdadeira imposição legiferante, que, dirigida ao Poder Público, tem por finalidade vinculá-lo a efetivação de uma prestação positiva destinada (a) a satisfazer as necessidades essenciais do trabalhador e de sua família e (b) a preservar, mediante reajustes periódicos, o valor intrínseco dessa remuneração básica [...] O legislativo constituinte brasileiro delineou, no preceito consubstanciado no art. 7º, IV, da Carta Política, um nítido programa social destinado a ser desenvolvido pelo Estado, mediante atividade legislativa vinculada [...]. [27]
Ao prosseguir nos comentários acerca do poder regulamentar do Presidente da República disposto no art. 84, IV, da Carta Magna, Alexandre de Moraes inclina-se para o posicionamento delineado pelo julgado supra e esclarece que o representante maior do Poder Executivo no exercício de suas atribuições não pode definir normas genéricas que criem direitos ou obrigações, senão estaria avançando nas funções que são típicas do Poder Legislativo. In verbis:
O exercício do poder regulamentar do Executivo situa-se na principiologia constitucional da Separação de Poderes (CF, arts. 2º; 60, § 4º, III), pois, salvo em situações de relevância e urgência (medidas provisórias), o Presidente da República não pode estabelecer normas gerais criadoras de direitos ou obrigações, por ser função do Poder Legislativo. Assim, o regulamento não poderá alterar disposição legal, e tampouco criar obrigações diversas das previstas em disposição legislativa. [28]
O doutrinador Uadi Lammêgo Bulos comunga também da idéia de que o salário mínimo deva ser estabelecido por meio de lei (art. 7º, IV, CF/88), que contempla necessariamente a participação do Congresso Nacional, mostrando-se bastante categórico quanto à questão. Do seu posicionamento fica claro o apego ao princípio da legalidade e o reconhecimento da participação do Congresso Nacional como condição sine qua non para validade jurídica da norma, conforme se verifica abaixo:
Não há outra fonte do direito apta para fixar o salário mínimo, senão a lei. Ela é o veículo normativo, com vigência em todo o território nacional, que encerra a participação do Congresso na definição do montante devido à contraprestação de um serviço. [29]
Em continuidade à análise dos comentários de Bulos acerca do art. 7º, IV e 5º, II, ambos da Carta Magna, depreende-se o reforço dado pelo doutrinador ao princípio da legalidade para definição do salário mínimo, opondo-se, com isso, ao uso de decreto – poder regulamentar – e.g., com o propósito de deliberar assunto da espécie, por considerar tal prática uma afronta ao referido princípio. Na verdade, Bulos entende que há matérias na constituição que estão circunscritas à definição mediante lei formal, que é a hipótese em debate, o que ele denomina de princípio da reserva legal, aí considerada como reserva absoluta [30], senão vejamos:
[...] Já o princípio da reserva legal deriva dos comandos previstos na Constituição, os quais determinam o rol de matérias suscetíveis de normatização mediante lei formal. A reserva legal, também chamada de cláusula de reserva da lei, justamente por decorrer de normas constitucionais, pode ser classificada em quatro modalidades: reserva absoluta, reserva relativa, reserva quanto à indelegabilidade da matéria e reserva quanto à natureza da matéria [...] [31]
De forma semelhante, parece ser esse o entendimento da doutrinadora Alice Monteiro de Barros quando afirma que o salário mínimo deve ser estabelecido em lei, na forma insculpida na Constituição, in verbis:
[...] A atual Constituição, no art. 7º, IV, ao arrolar o salário mínimo entre os direitos sociais, conceituou-o como aquele fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender às necessidades vitais básicas do trabalhador e às de sua família, como moradia, alimentação, educação, saúde [...] [32]
Para Süssekind, conforme se comentou anteriormente, a fixação do salário mínimo só deve ocorrer por meio de edição de lei. Seu posicionamento quanto à questão é bastante enfática ao asseverar que "[...] O salário mínimo declarado em lei, obviamente, será reajustado na conformidade dos índices nela indicados, a fim de preservar-lhe o poder aquisitivo". [33]
Em razão do que foi discutido até aqui, fica patenteada a inconstitucionalidade do art. 3º, caput e parágrafo único da lei em comento. Estruturalmente pela ruptura desses dispositivos com o princípio da legalidade, conforme consignado no art. 5º, II, CF/88, na medida em que abre possibilidade de se estabelecer direito sem necessidade de edição de lei, no caso definição de reajuste e aumento do salário mínimo. Por conseguinte, a não observância do princípio da legalidade e do sistema check and balance, ambos explicitados na Constituição de 1988, afastam o Poder Legislativo do exercício de sua função peculiar, o que certamente gera insegurança jurídica e abre precedentes para outras situações carentes de regulamentação, momento em que o Executivo poderia incorporar função que lhe é atípica.
Nesse sentido, as exposições de motivos da referida lei e o parecer da AGU sobre a questão não se mostram sustentáveis juridicamente, uma vez que deixam de observar o princípio da legalidade, que é uma condição estruturante para o funcionamento do Estado Democrático de Direito. Assim, a afirmação de que os critérios insertos na Lei 12.382/2011 serão cumpridos rigorosamente pelo Poder Executivo por decreto na implementação do reajuste e do aumento do salário mínimo e de que não haveria discricionariedade, mostra-se falaciosa, porque afronta o princípio da legalidade – vide art. 7º, IV, CF/88 – excluindo o Congresso Nacional de reposicionar-se sobre parâmetros de reajuste salarial nos anos de 2012 a 2015 e quebra a harmonia dos poderes, baseada no sistema de freios e contra pesos.
Observa-se no posicionamento dos defensores da constitucionalidade do art. 3º, caput e parágrafo único, no caso em estudo o parecer do Senado e da AGU, um viés de pragmatismo e uma visão reducionista a respeito do tema sob a perspectiva jurídica, na medida em que o fundamento apresentado restringe-se a afirmar que o Executivo buscará tão-somente a aplicação de critérios e parâmetros consignados na própria lei aprovada pelo Congresso Nacional. Ora, na prática, o poder regulamente do Executivo passa a se configurar como um "poder legiferante", transcendendo os limites do instituto do decreto e assumindo uma espécie de discricionariedade que não se coaduna com a Constituição, especificamente em relação ao contido no art. 7º, IV.
A realidade é complexa e as mudanças de cunho econômico e social são contínuas, cabendo revisão permanente das definições adotadas, principalmente quando se trata de um direito defendido constitucionalmente, ou seja, o reajuste e elevação do salário mínimo. Nesse sentido, o decreto por sua natureza, como se disse antes, não tem o condão de criar direitos ou obrigações, seu espaço de debate é circunscrito aos técnicos do Executivo, de forma que impô-lo como instrumento para deliberar assunto da matéria em foco implicará flagrante afronta ao exercício de atividade legiferante inerente ao Poder Legislativo. Esta atribuição é inarredável do Congresso Nacional, o qual está incumbido de provocar e de propor reajuste e elevação do salário mínimo, observando-se o cenário sócio-econômico em conjunto com os representantes de trabalhadores e empregadores. Assim, mais uma vez é oportuno evocar Süssekind:
[...] deve o Congresso promover a audiência das confederações nacionais de trabalhadores e de empregadores durante os procedimentos para a fixação do salário mínimo. A Lei Maior não prevê periodicidade desses procedimentos, que poderão ser iniciados quando uma das Casas do Congresso entender que o valor real do salário mínimo vigente não mais corresponde à realidade socieconômica brasileira [...] [34]