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O proporcional e o razoável: a contribuição pioneira de Rui Barbosa ao estudo brasileiro do diálogo entre o critério da necessidade e o princípio da razoabilidade.

A liberdade de iniciativa econômica e a interdição da liberdade de empresa e de concorrência

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08/10/2011 às 16:34
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2 A CONTRIBUIÇÃO DE RUI BARBOSA AO DIÁLOGO ENTRE O CRITÉRIO DA NECESSIDADE E O PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE

Em uma época (ano-base: 2011) em que os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, portanto, possuem ampla acolhida na doutrina jurídica brasileira, não há no pensamento jurídico pátrio consenso entre as distinções e semelhanças entre ambos os princípios, e existe em catálogo, nas nossas livrarias, mais de duas dezenas de monografias voltadas aos princípios da razoabilidade e/ou da proporcionalidade, convém resgatar o estudo pioneiro de Rui Barbosa de Oliveira [151] (1849-1923) — referido, de forma tradicional, no corpo de textos acadêmicos, didáticos e jornalísticos brasileiros simplesmente por Ruy ou Rui, em vez de Barbosa de Oliveira ou Barbosa —, o mais célebre e influente jurista da Primeira República (1889-1930), ideólogo da Constituição brasileira de 1891 (a nossa primeira Constituição republicana), constitucionalista de papel decisivo para o advento das bases constitucionais do federalismo brasileiro e do início do processo de autonomização do Poder Judiciário pátrio [152].

Originalmente publicada pelo então denominado Ministério da Educação e Saúde [153], as Obras Completas de Rui Barbosa, hoje sob os auspícios da Fundação Casa de Rui Barbosa (à época órgão [154] integrante da Pasta da Educação e Saúde, hoje fundação pública vinculada ao Ministério da Cultura [155]) foram digitalizadas, mediante parceria iniciada em 2007 [156] com o Supremo Tribunal Federal, e hoje se encontram disponíveis na Rede Mundial de Computadores, por meio do site institucional<http://www.casaruibarbosa.gov.br> [157], inteirando-se, na atualidade (ano-base: 2011), 137 (centro e trinta e sete) tomos publicados [158].

No tomo I do volume XL (correspondente ao ano de 1913), consta o trabalho intitulado As cessões de clientela e a interdição de concorrência nas alienações de estabelecimentos comerciais e industriais, sobejamente lastreado na jurisprudência anglo-saxônica do final do século XIX e início do século XX.

No referido memorial forense (§ 278), Rui Barbosa considera justificável a limitação temporal e espacial à liberdade comercial, desde que não seja uma "interdição perpétua e universal" [159], uma vez que, nesse caso, significaria a "abdicação da liberdade e personalidade humana, que o direito não a pode sancionar" [160] (sancionar, nesse contexto, como sinônimo não de punir, mas de chancelar [161]). Esteado em tal premissa, infere (§ 301) a "nulidade jurídica dos contratos de cessão de clientela, ainda mesmo expressos, quando sem limites de tempo e espaço" [162].

Compulsando-se tal memorial alinhavado por Rui, percebe-se o pioneirismo do estadista baiano em se debruçar, na primeira metade da década de 1910 [163], sobre questões jurídicas que se tonariam, mormente a partir de década de 2000, aspecto central do debate jurídico brasileiro, mormente na seara do Direito Constitucional e da Teoria dos Direitos Fundamentais. Mais do que isso: por meio do estudo ruiano, percebe-se a possibilidade de diálogo entre a dimensão da necessidade do princípio tridimensional da proporcionalidade (matriz alemã) e o princípio da razoabilidade (matriz anglo-saxônica).

A concepção dogmática do subprincípio da necessidade majoritariamente abraçada pela doutrina brasileira baseia-se na formulação alemã do princípio tridimensional da proporcionalidade segundo a qual "o exame do princípio parcial da necessidade" [164] — esclarece Anizio Pires Gavião Filho — "é uma questão de comparação entre a medida escolhida ou a ser escolhida e outras medidas alternativas" [165].

Desse modo, averigua-se — prossegue Gavião Filho — "se entre as medidas alternativas não existe uma que, com o mesmo grau de idoneidade para alcançar o fim que a medida escolhida ou a ser escolhida promove, intervenha com intensidade de menor grau em outro ou em outros direitos na colisão" [166], o que implica aferir tanto "a idoneidade equivalente ou maior das medidas alternativas para a promoção do fim imediato" [167] ("medida alternativa, que promove o fim exigido por um direito fundamental igual ou mais, melhor, mais rápido, com mais eficiência e maior segurança" [168]) quanto "a escolha da medida com menor grau de intensidade de intervenção nos direitos fundamentais ou bem jurídicos coletivos constitucionalmente protegidos" [169] (perscruta-se "se não existe, [d]entre as medidas consideradas idôneas, uma que não restrinja posições jurídicas fundamentais prima facie de direitos fundamentais ou bem [sic] jurídicos coletivos constitucionalmente protegidos ou, senão isso, que o faça em grau inferior que todas as outras" [170]).

Para Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins, na seara do subcritério da necessidade (Erforderlichkeit), verifica-se se existe medida alternativa menos gravosa ao "titular do direito que sofre a limitação de seu direito fundamental" [171] e de "eficácia semelhante ao meio escolhido pela autoridade estatal" [172] ("o meio menos gravoso deve ser adequado da mesma forma que o meio mais gravoso escolhido pela autoridade e que todos os demais (possíveis e adequados) meios menos gravosos que o escolhido pela autoridade estatal" [173]).

Humberto Ávila separa em duas etapas a aplicação do critério da necessidade: "em primeiro lugar, o exame da igualdade de adequação dos meios, para verificar se os meios alternativos promovem igualmente o fim" [174], "em segundo lugar, o exame do meio menos restritivo, para examinar se os meios alternativos restringem em menor medida os direitos fundamentais colateralmente afetados" [175].

Em textos doutrinários pátrios relativos ao subprincípio da necessidade [176], acolhe-se, por vezes, a ensinança do constitucionalista português Joaquim José Gomes Canotilho de que a dimensão da necessidade (denominada de "princípio da exigibilidade" [177] pelo Mestre de Coimbra) abrange a exigibilidade material ("o meio deve ser o mais ‘poupado’ possível quanto à limitação dos direitos fundamentais" [178]), a exigibilidade espacial ("aponta para a necessidade de limitar o âmbito da intervenção" [179]), a exigibilidade temporal ("pressupõe a rigorosa delimitação no tempo da medida coativa do poder público" [180]) e a exigibilidade pessoal ("a medida se deve limitar à pessoa ou pessoas cujos interesses devem ser sacrificados" [181]).

Essa formulação de origem germânica do critério da necessidade se aproxima, em essência, do conteúdo do princípio da razoabilidade extraído por Rui Barbosa da jurisprudência dos Estados Unidos e do Reino Unido do século XIX e início do século XX, ao defender a possibilidade de que seja regular e justificável a interdição ilimitada e prevista em contrato da liberdade de comércio ou de indústria, quando unicamente de cunho temporal, ou quando unicamente de caráter espacial, considerando irrazoável (não razoável, sem razão ou irracional [182]) a interdição perpétua e universal de jaez temporal e, ao mesmo tempo, espacial [183](§§ 278, 279, 282 e 284):

[...] No sistema a que chamaríamos continental, por ser o predominante entre as nações do continente europeu, se estabeleceu um critério definido e seguro para a declaração da validade ou nulidade nessas convenções, anulando-se absolutamente as que encerrarem uma interdição de liberdade comercial ou industrial, ilimitada quanto ao território e quanto à durabilidade. O magistrado não pode aceitar como subsistente a proibição, posta ao cedente, de reexercer, no comércio ou na indústria, certo gênero de atividades, senão quando essa proibição tiver limites de lugar ou tempo. [...]

[...] pode-se discutir sobre a subsistência ou insubsistência da interdição, quando ela for ilimitada quanto ao tempo ou quanto ao lugar; mas a sua nulidade é inquestionável, se a estipulação for ilimitada quanto ao lugar e quanto ao tempo. [...]

[...] Em última análise, não se trata senão de reunir numa só palavra a dupla ausência de limites quanto à duração e ao território nas obrigações desta natureza. É unreasonable a interdição, porque irrestrita quanto ao tempo e ao espaço. [...] [184]

Com o fito de robustecer seu entendimento, abeberou-se — rememora-se — em precedentes britânicos e estadunidenses [185] (§§ 278 a 300).

Colheu (§279) da obra de Edmund H. T. Snell intitulada "The Principles of Equity: intended for the use of students and of practitioners" (à época reeditada por Archibald Brown e publicada em Londres pela Editora Stevens & Haynes) [186] precedentes da jurisprudência inglesa a reconhecerem a nulidade de "contratos de interdição geral de um comércio" [187], salvo se "a interdição, sendo limitada, como a de não exercer alguém certo comércio em determinado lugar ou por tempo razoável" [188]. Posto de outro modo: a teor dessa corrente de pensamento, afigura-se válido contrato de interdição de comércio, "se bem que ilimitado quanto ao espaço [Nordenfelt v. Maxim Co., Limited, 1894, A. C. 535 [189]], ou, até, quando ilimitado quanto ao tempo [Haynes v. Doman, 1899, 2 Ch. 13 [190]], supondo-se sempre que seja razoável nas circunstâncias de um e outro caso" [191].

No entanto, o jurista baiano pondera (§ 280) que o critério adotado à época na Inglaterra (primeira metade da década de 1910) deixava de ser meramente de cunho temporal e/ou espacial, à medida que se disseminava naquela jurisprudência o parâmetro da razoabilidade (conjugado com a análise da abrangência territorial da proibição ao exercício do comércio):

Não há negar, porém, que, ultimamente, em Inglaterra, o critério dominante nesta apreciação não está nem no tempo nem no espaço, mas na reasonableness, na razoabilidade, ou não razoabilidade, que a interdição convencionada apresentar. "A pedra de toque, a que primeiro há de recorrer o tribunal, é a da razoabilidade (reasonableness), e, para solver a questão da responsabilidade, é que terá de apreciar a extensão territorial abrangida na interdição." (Americ. and Engl. Encyclop. of Law, v. XXIV, p. 845, not. 6, in fine, e p. 850, n.º 4, in fine.) [...]

[...] Como se vê, em última análise, a questão da razoabilidade se resolve, afinal, justamente na do tempo e espaço, que limitam a interdição. [192]

Nesse contexto, para se aquilatar se determinada interdição na liberdade comercial de âmbito territorial e temporal seria razoável, Rui Barbosa traz a lume (§§ 280 e 285) baliza pretoriana que muito recorda o princípio parcial da necessidade ou da exigibilidade de matriz alemã (a necessidade, na abordagem alemã — lembra Afonso da Silva — verifica se dado "ato estatal que limita um direito fundamental é somente necessário caso a realização do objetivo perseguido não possa ser promovida, com a mesma intensidade, por meio de outro ato que limite, em menor medida, o direito fundamental atingido" [193]) quanto à proibição de excesso (no sentido de que — alumia Paulo Bonavides — "a medida não há de exceder os limites indispensáveis à conservação do fim legítimo que se almeja" [194]):

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Os tribunais (diz Wharton Beall na sua monografia sobre a Restraint of Trade) têm adotado todos a regra estabelecida, no caso Horner v. Graves, pelo juiz Tindal. Essa regra consiste em se verificar se a interdição não vai além do necessário para assegurar proteção razoável aos interesses da parte, a favor de quem se estipulou, sem contrariar os do público em geral: "Wether the restraint is such only to afford a fair protection to the interest of the party in favor of whom it is given, and not so large as to interfere with the interests of the public." (Am. and Engl. Encycl. of Law, codem loco.)

Se a interdição exceder os limites da proteção devida ao cessionário, não pode trazer legítima vantagem a ele nem ao público: será, então, meramente opressiva, e, sendo opressiva, aos olhos da lei não é razoável. "Whatever restraint is larger than the necessary protection of the party can bem of no benefit to either; it can only be oppressive; and, if oppresive, it is in the eye of the law, unreasonable." (Ib., p. 850-51.) (1) [...]

[...] Basta, pois, que não seja razoável, isto é, basta que seja excessiva a extensão do território abarcada na interdição de comerciar, para que o contrato incorra na taxa de não razoável, e, como tal, se haja por vão, caduco, inexistente. [195]

Destarte, Rui Barbosa invoca, sob a rubrica da razoabilidade, traço característico ao critério da necessidade de raiz alemã, isto é, a vedação ao exercício de direito além do indispensável à adequada proteção do interesse do titular do direito.

Em que pese tenha se abeberado na construção jurisprudencial anglo-saxônica em torno do princípio da razoabilidade, Rui Barbosa, fiel à mentalidade jurídica de sua época, ressalva (§ 282) que não se poderia no ordenamento jurídico brasileiro, filiado ao sistema romano-germânico, "confiar aos tribunais o arbítrio de validarem ou anularem contratos, em que forem interessadas liberdades como a do comércio e a da indústria, deixando-os à sua apreciação discricionária, sob um critério absolutamente opinativo" [196] — continua — "como o de serem, ou não, razoáveis esses contratos, seria uma transplantação desastrosa" [197].

Em similar sentido, também como reflexo da visão jurídica da primeira metade do século XX, Miguel Seabra Fagundes repudiara a aplicação, no Brasil e inspirada na experiência forense do Estados Unidos, do controle judicial da razoabilidade dos atos administrativos:

O território jurídico da apreciação da legalidade é muito restrito, em nada podendo obstar a ação eficiente das comissões, desde que contida na órbita legal. Só nas hipóteses de incompetência, desvio de finalidade etc. é que o Judiciário as poderia conter, porém aí, como é claro, em defesa da ordem jurídica.

É descabido, em desabono do que dizemos, o exemplo norte-americano. Nos Estados Unidos, como já tivemos ocasião de observar, o juiz, analisando a razoabilidade dos atos administrativos, exerce jurisdição plena e não de simples legalidade, penetra no mérito do procedimento da Administração, vincula-a ao seu critério administrativo. Aqui nunca se deu nem se pode dar tal ingerência, que entre os americanos decorre da cláusula do due process of law. [198]

Entretanto, da alvorada desses estudos pioneiros de Rui Barbosa e Miguel Seabra Fagundes até os dias hodiernos, o cenário judicial brasileiro se alterou de forma significativa. Hoje já não se discute a possibilidade jurídica do nosso Poder Judiciário aplicar o princípio da razoabilidade, e sim se a jurisprudência do órgão de cúpula da Justiça pátria, de fato, vale-se do princípio da proporcionalidade ou se adstringe a realizar "um apelo à razoabilidade" [199], de modo que a pesquisa de Rui Barbosa sobre a razoabilidade se insere em uma questão jurídica em voga no Direito brasileiro, que é, justamente, a análise comparativa entre os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade e o exame da interação entre as dimensões da razoabilidade e da proporcionalidade.

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Sobre o autor
Hidemberg Alves da Frota

Especialista em Psicanálise e Análise do Contemporâneo (PUCRS).Especialista em Relações Internacionais: Geopolítica e Defesa (UFRGS). Especialista em Psicologia Clínica Existencialista Sartriana (Instituto NUCAFE/UNIFATECPR). Especialista em Direito Público: Constitucional, Administrativo e Tributário (PUCRS). Especialista em Ciências Humanas: Sociologia, História e Filosofia (PUCRS). Especialista em Direitos Humanos (Curso CEI/Faculdade CERS). Especialista em Direito Internacional e Direitos Humanos (PUC Minas). Especialista em Direito Público (Escola Paulista de Direito - EDP). Especialista em Direito Penal e Criminologia (PUCRS). Especialista em Direitos Humanos e Questão Social (PUCPR). Especialista em Psicologia Positiva: Ciência do Bem-Estar e Autorrealização (PUCRS). Especialista em Direito e Processo do Trabalho (PUCRS). Especialista em Direito Tributário (PUC Minas). Agente Técnico-Jurídico (carreira jurídica de nível superior do Ministério Público do Estado do Amazonas - MP/AM). Autor da obra “O Princípio Tridimensional da Proporcionalidade no Direito Administrativo” (Rio de Janeiro: GZ, 2009). Participou das obras colegiadas “Derecho Municipal Comparado” (Caracas: Liber, 2009), “Doutrinas Essenciais: Direito Penal” (São Paulo: RT, 2010), “Direito Administrativo: Transformações e Tendências” (São Paulo: Almedina, 2014) e “Dicionário de Saúde e Segurança do Trabalhador” (Novo Hamburgo: Proteção, 2018).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FROTA, Hidemberg Alves. O proporcional e o razoável: a contribuição pioneira de Rui Barbosa ao estudo brasileiro do diálogo entre o critério da necessidade e o princípio da razoabilidade.: A liberdade de iniciativa econômica e a interdição da liberdade de empresa e de concorrência. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3020, 8 out. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20138. Acesso em: 29 mar. 2024.

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