Artigo Destaque dos editores

O proporcional e o razoável: a contribuição pioneira de Rui Barbosa ao estudo brasileiro do diálogo entre o critério da necessidade e o princípio da razoabilidade.

A liberdade de iniciativa econômica e a interdição da liberdade de empresa e de concorrência

Exibindo página 3 de 5
08/10/2011 às 16:34
Leia nesta página:

3 A PROIBIÇÃO DE LIMITAÇÕES GEOGRÁFICAS À FIXAÇÃO DE DROGARIAS E FARMÁCIAS, À LUZ DA JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Rui Barbosa, ao repelir as interdições perpétuas e universais da liberdade de empresa e de concorrência de cunho simultaneamente temporal e espacial (previstas, in casu, em contratos de alienação de estabelecimentos comerciais e industriais), denota-se em harmonia com o princípio constitucional da liberdade de iniciativa econômica.

Consectária do princípio fundamental da livre iniciativa (art. 1º, inciso IV, in fine c/c art. 170, caput, todos da Constituição Federal de 1988) [200] — o qual, por sua vez, decorre da própria liberdade humana [201](art. 5º, caput, da CF/88) —, a liberdade de iniciativa econômica (também chamada de liberdade econômica [202]) encastoa-se no art. 170, parágrafo único, da CF/88 ("É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei" [203]) [204], e abrange (a) a liberdade de empresa (desdobrada nas liberdades de contrato — art. 421 do Código Civil de 2002 —, de indústria e de comércio), (b) a liberdade de concorrência [205], a igualmente denominada livre concorrência [206](art. 170, inciso IV, da CF/88), e (c) "a proteção da propriedade privada" [207] (art. 5º, caput e incisos XXII e XXIX, c/c art. 170, inciso II, todos da CF/88).

A fim de que seja legítima — pontua José Afonso da Silva —, a liberdade de iniciativa econômica deve promover a existência digna de todos, consoante os preceitos da justiça social [208], em decorrência — infere-se — do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III, da CF/88). Nesse sentido, cumpre ao Estado prevenir e reprimir condutas dos setores público e privado a sufocarem o lícito funcionamento de empresas (atividade desempenhada por intermédio de empresários e empresárias em nome individual, bem assim de sociedades empresárias [209]), sobretudo quando se obsta ou dificulta a existência e "a expansão das pequenas iniciativas econômicas" [210].

Corolária da liberdade de iniciativa econômica, a liberdade de concorrência, explica Eros Roberto Grau, abarca (a) o direito de "conquistar a clientela, desde que não [seja] através de concorrência desleal" [211], (b) a "proibição de formas de atuação que deteriam a concorrência" [212] e (c) a "neutralidade do Estado diante do fenômeno concorrencial, em igualdade de condições dos concorrentes" [213]. Na óptica de João Bosco Leopoldino da Fonseca, a liberdade de concorrência, no contexto do capitalismo contemporâneo, consiste em meio para se atingir o "equilíbrio entre os grandes grupos e um direito de estar no mercado também para as pequenas empresas" [214].

Almejando salvaguardar a livre iniciativa, o ordenamento jurídico pátrio proíbe tanto a concorrência feita com abuso de poder (plasmada na infração da ordem econômica — objeto do ramo jurídico conhecido por Direito Antitruste [215] ou Direito Concorrencial [216], que possui como principal diploma legislativo a Lei n. 8.884, de 11 de junho de 1994, a Lei Antitruste —, a afetar "as estruturas do livre mercado" [217], por meio da dominação dos mercados [218], da eliminação da concorrência [219] e do aumento arbitrário dos lucros [220] — dicção do art. 173, § 4º, da CF/88 [221]) quanto a concorrência desleal (a concorrência desleal prejudica somente o interesse "do empresário diretamente vitimado pela prática irregular" [222], ao passo que a infração de ordem econômica, ao lesionar as bases do economia de mercado, alcança "universo muito maior de interesses juridicamente relevantes" [223]), a qual se subdivide, ensina Fábio Ulhoa Coelho, em concorrência desleal específica ("sancionada civil e penalmente" [224], concernente à "violação de segredo de empresa" e à "indução de consumidor em erro" [225]) e genérica ("sancionada apenas no âmbito civil" [226]).

Veda-se não apenas a concorrência ilícita (bifurcada — repisa-se — na infração da ordem econômica e na concorrência desleal) como também a interveniência de órgãos e entidades estatais na ordem econômica, se afrontosa ao princípio da impessoalidade (art. 37, caput, da CF/88), ou seja, é defesa a intervenção do Estado no domínio econômico, caso essa atuação se volte, salienta Walber de Moura Agra, ao "favorecimento de uma empresa ou de uma atividade em detrimento de outra" [227] (a menção ao princípio da impessoalidade, nesse contexto, foi achega nossa ao pensamento de Agra).

Na seara das infrações da ordem econômica, existe a concentração e a colusão. Enquanto na concentração "empresas passam a submeter-se à mesma direção econômica com ou sem perda de autonomia jurídica" [228], na colusão horizontal há acordos (orais inclusive) somente entre "empresários situados no mesmo estágio de produção e circulação econômica (por exemplo, industriais concorrentes em situação concertada)" [229], e na colusão vertical existem acordos entre "empresários situados em estágios diferentes da produção e circulação econômica (por exemplo: fornecedor e distribuidores em atuação concertada)" [230].

Caracterizam, pois, a colusão horizontal as circunstâncias versadas por Rui Barbosa, concernentes às interdições contratuais perpétuas e universais à liberdade de concorrência entre sociedades empresárias que atuam no mesmo estágio de produção e circulação econômica. Por outro lado, a ordem econômica também é alvejada quando tal interdição, em vez de estipulada em contrato, é realizada por diploma legislativo.

É o que demonstra a jurisprudência da Corte Suprema brasileira. Explica-se: o Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal, em sede do Recurso Extraordinário n. 193749/SP (Relator para o acórdão, Ministro Maurício Corrêa), aos 4 de junho de 1998, considerou inconstitucional norma legal municipal (art. 1º da Lei n. 10.991, de 13 de junho de 1991, do Município de São Paulo — SP [231]) a impor limitação geográfica (fixação de distância mínima) para o estabelecimento de farmácias e drogarias [232], ao reputar tal ato legislativo ofensivo ao princípio da livre iniciativa e deletério à ordem consumerista.

Em outras palavras, no referido decisum, o Pretório Excelso, vencido o voto do Ministro-Relator Carlos Velloso em face da divergência aberta (ainda quando o processo tramitava na Segunda Turma) pelo voto do Ministro Maurício Corrêa, esplendeu que tal restrição geográfica "induz à concentração capitalista, em detrimento do consumidor, e implica cerceamento do exercício do princípio constitucional da livra concorrência, que é uma manifestação da liberdade de iniciativa econômica privada" [233].

O voto condutor, pronunciado pelo Ministro Maurício Corrêa, ao vislumbrar tal diploma legislativo paulistano como meio de fomento à concentração capitalista, ressaltou que a medida legislativa sub examine, ao tolher a livre concorrência, garante, no perímetro em que fora interditada a criação de nova farmácia ou drogaria, o lucro do estabelecimento situado em tal área, ao mesmo tempo que empecilha o acesso do consumidor local a melhores preços:

[...] A limitação geográfica imposta à instalação de drogarias somente conduz à assertiva de concentração capitalista, assegurando, no perímetro, o lucro da farmácia já estabelecida. Dificulta o exercício da livre concorrência, que é uma manifestação do princípio da liberdade de iniciativa econômica privada garantida pela Carta Federal quando estatui que "a lei reprimirá o abuso de poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros". (art. 173, § 4º)." [234]

O Ministro Nelson Jobim destacou a incompetência dos Municípios para editarem leis que invadam a seara das infrações da ordem econômica (além de consubstanciar matéria disciplinada em diploma legislativo federal, a mencionada Lei n. 8.884/1994, Capítulo II, arts. 20 a 21, trata-se de questão pertinente ao Direito Econômico, competência legislativa não municipal e concorrente da União, dos Estados e do Distrito Federal — art. 24, inciso I, da CF/88), e, a par disso, rutilou que a norma municipal em liça fere a livre concorrência e o livre mercado:

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

[...] Na verdade, a livre concorrência é assegurada sem a reserva de espaços públicos, mas o exercício legítimo da livre concorrência é fiscalizado a partir das regras da Lei nº 8.884, que disciplina as infrações à ordem econômica, que são as operações que possam fazer as partes, ou seja, os comerciantes, no sentido de estabelecimento de oligopólios e cartéis.

Veja V. Exa. que o art. 20 define essa infração dizendo:

"Art. 20. Constituem infração da ordem econômica, independentemente de culpa, os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados:

........................................

II - dominar mercado relevante de bens ou serviços;"

Creio que a legislação municipal extrapolou a sua área de abrangência. Não diz respeito a uso de solo urbano, nem a zoneamento, que é da competência efetiva do Município, mas às regras que pretendem disciplinar, na área urbana, o exercício de uma atividade a partir de pressupostos da concorrência.

Essa norma fere o dispositivo constitucional da livre concorrência, e nossas preocupações em relação a um sistema de livre mercado, que seja legítimo, estão exatamente nos instrumentos de proteção da concorrência, traduzidos basicamente no Código de Defesa do Consumidor e na legislação que coíbe os abusos da ordem econômica. [235]

Mesmo entendimento foi reiterado pelo Pleno do Pretório Excelso no Recurso Extraordinário n. 199517/SP (Relator, Ministro Maurício Corrêa), também julgado aos 4 de junho de 1998 e assim sumulado:

EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. ARTIGO 1º DA LEI Nº 6.545/91, DO MUNICÍPIO DE CAMPINAS. LIMITAÇÃO GEOGRÁFICA À INSTALAÇÃO DE DROGARIAS. INCONSTITUCIONALIDADE. 1. A limitação geográfica à instalação de drogarias cerceia o exercício da livre concorrência, que é uma manifestação do princípio constitucional da liberdade de iniciativa econômica privada (CF/88, artigo 170, inciso IV e § único c/c o artigo 173, § 4º). 2. O desenvolvimento do poder econômico privado, fundado especialmente na concentração de empresas, é fator de limitação à própria iniciativa privada à medida que impede ou dificulta a expansão das pequenas iniciativas econômicas. 3. Inconstitucionalidade do artigo 1º da Lei nº 6.545/91, do Município de Campinas, declarada pelo Plenário desta Corte. Recurso extraordinário conhecido, porém não provido. [236]

O paradigmático precedente do Recurso Extraordinário n. 193749/SP restou invocado pelo Ministro-Relator Gilmar Mendes à fl. 153 [237] dos autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 2327/SP, ao proferir o voto condutor daquele julgamento. Ao ementar tal acórdão, consignou-se que o delineamento de "distância mínima para a instalação de novas farmácias e drogarias" [238] ofende o "princípio constitucional da livre concorrência" [239].

Porém, no caso da alienação de estabelecimento empresarial, o alienante — registra Fabio Ulhoa Coelho — "não pode restabelecer-se na mesma praça, concorrendo com o adquirente, no prazo de 5 anos seguintes ao negócio" [240], salvo autorização expressa, na exata inteligência do art. 1.147 do Código Civil de 2002. Observe-se que não se trata de interdição perpétua, porém temporária. Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery vislumbram tal interdição temporária à refixação de estabelecimento empresarial como consequência do princípio da boa-fé objetiva:

É decorrência da cláusula geral de boa-fé objetiva (CC 422), expressão da função social do contrato e da base do negócio jurídico (CC 421), a circunstância que impede o alienante do estabelecimento de exercer concorrência ao adquirente, prevalecendo-se de sua anterior atividade empresária no referido estabelecimento. A venda de farmácia, por exemplo, faz com que todo o estabelecimento empresarial (ponto, aviamento, clientela etc.) seja transferido ao adquirente, de modo que o vendedor não pode abrir comércio semelhante ao adquirente, tomando-lhe a clientela, o aviamento etc. Isto porque quem vende estabelecimento tem o dever de agir (boa-fé objetiva) de conformidade com o que o comprador dele espera: entrega completa do estabelecimento empresarial, com o dever de não lhe fazer concorrência. A norma do CC 1147 caput está em conformidade com as do CC 421 e 422. [...] [241]

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Hidemberg Alves da Frota

Especialista em Psicanálise e Análise do Contemporâneo (PUCRS).Especialista em Relações Internacionais: Geopolítica e Defesa (UFRGS). Especialista em Psicologia Clínica Existencialista Sartriana (Instituto NUCAFE/UNIFATECPR). Especialista em Direito Público: Constitucional, Administrativo e Tributário (PUCRS). Especialista em Ciências Humanas: Sociologia, História e Filosofia (PUCRS). Especialista em Direitos Humanos (Curso CEI/Faculdade CERS). Especialista em Direito Internacional e Direitos Humanos (PUC Minas). Especialista em Direito Público (Escola Paulista de Direito - EDP). Especialista em Direito Penal e Criminologia (PUCRS). Especialista em Direitos Humanos e Questão Social (PUCPR). Especialista em Psicologia Positiva: Ciência do Bem-Estar e Autorrealização (PUCRS). Especialista em Direito e Processo do Trabalho (PUCRS). Especialista em Direito Tributário (PUC Minas). Agente Técnico-Jurídico (carreira jurídica de nível superior do Ministério Público do Estado do Amazonas - MP/AM). Autor da obra “O Princípio Tridimensional da Proporcionalidade no Direito Administrativo” (Rio de Janeiro: GZ, 2009). Participou das obras colegiadas “Derecho Municipal Comparado” (Caracas: Liber, 2009), “Doutrinas Essenciais: Direito Penal” (São Paulo: RT, 2010), “Direito Administrativo: Transformações e Tendências” (São Paulo: Almedina, 2014) e “Dicionário de Saúde e Segurança do Trabalhador” (Novo Hamburgo: Proteção, 2018).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FROTA, Hidemberg Alves. O proporcional e o razoável: a contribuição pioneira de Rui Barbosa ao estudo brasileiro do diálogo entre o critério da necessidade e o princípio da razoabilidade.: A liberdade de iniciativa econômica e a interdição da liberdade de empresa e de concorrência. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3020, 8 out. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20138. Acesso em: 26 abr. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos