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Luhmann e a desaposentação: a reversibilidade da aposentadoria como marco de evolução jurídica

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14/10/2011 às 11:16
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A desaposentação consiste na reversibilidade da aposentadoria, com o escopo de preservar o tempo de contribuição, para que, futuramente, possa ser utilizado em outra aposentadoria, mais vantajosa. Pode dar-se em qualquer regime previdenciário (RGPS ou RPPS), mesmo que importe em mudança de sistema.

Resumo: a desaposentação refere-se à possibilidade da reversibilidade da aposentadoria, no sentido de renunciá-la, com o escopo de conversar o tempo de contribuição, de modo a permitir, no porvir, um benefício previdenciário mais vantajoso. Inúmeras são as polêmicas que cercam o novel instituto, como a ausência de enunciado normativo permissivo, compulsoriedade de devolução dos valores percebidos e quanto à própria possibilidade da desaposentação. Eis, em epítome, os aspectos dogmáticos a serem pesquisados. Independentemente da acolhida da desaposentação no sistema jurídico brasileiro, tal instituto apresenta-se como marco de evolução jurídica, de cunho luhmanniano, na medida em que o improvável tornou-se provável. Eis a faceta sociológica da pesquisa. Deste modo, busca-se, no presente artigo, articular o perfil jurídico da desaposentação, bem como explicitá-la como fator de evolução jurídica.

Palavras-chave: Aposentadoria. Reversibilidade. Desaposentação. Evolução. Luhmann.

Sumário: 1 PROLEGÔMENOS; 2 PANORAMA SOBRE A TEORIA DA EVOLUÇÃO JURÍDICA DE NIKLAS LUHMANN; 3 OS CONTORNOS DA DESAPOSENTAÇÃO PELA DOGMÁTICA JURÍDICA PÁTRIA; 3.1 A correlação existente entre desaposentação e aposentadoria; 3.2 Conceito e pressupostos da desaposentação; 3.3 Acolhimento da desaposentação na doutrina e na jurisprudência; 3.3.1 Plexo de argumentos contrário à desaposentação; 3.3.1.1 Irrenunciabilidade da aposentadoria. Decreto 3.048/99; 3.3.1.2 Direito adquirido e ato jurídico perfeito; 3.3.1.3 Ausência de previsão legal; 3.4 Desaposentação e devolução de valores; 4 ACOPLAMENTO ESTRUTURAL: DESAPOSENTAÇÃO E EVOLUÇÃO JURÍDICA DO DIREITO PREVIDENCIÁRIO; 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS; 6 REFERÊNCIAS; 7 NOTAS


1 PROLEGÔMENOS

É cediço que as estruturas sociais hodiernas são assustadoramente cambiantes: as alterações provocadas por essa Era da Informação, advinda do progresso científico tecnológico, provocam alterações abissais em múltiplos produtos culturais.

Nesse diapasão, descortina-se ante nossos olhos uma figura demasiadamente difusa, que ainda não logrou contornos nítidos: a pós-modernidade. Esta pode ser rotulada sinteticamente como um processo de dramatização das características curiais da modernidade[1], cuja idéia-força é a complexidade; ora, sendo a pós-modernidade a hiperbolização da modernidade, torna-se patente que a pós-modernidade é a complexificação do complexo.

O Direito, às escâncaras, não passa – e não passou – incólume frente a esses torvelinhos da contemporaneidade. Por ora, é intuitivo que também as esferas específicas do saber jurídico encontram-se pérvias a essas múltiplas reviravoltas.

Tal assertiva afigura-se inquestionável ao se analisar o Direito Previdenciário, mormente quando se tem em mente a recentíssima – obviamente, em termos históricos- questão da desaposentação.

A desaposentação, resumidamente, consiste na reversibilidade do ato jurídico da aposentadoria, com o fito de se conversar o tempo de contribuição para que, posteriormente, nova aposentadoria, mais benéfica, seja pleiteada. Contudo, esse novo instituto vem a lume cercado de controvérsias, como, ilustrativamente, a necessidade de devolução à autarquia previdenciária dos valores anteriormente recebidos, a possibilidade de renúncia à aposentadoria, a própria viabilidade do instituto, dentre outras correlatas.

Tal estranheza atinente à desaposentação tem sua razão de ser na medida em que importa num certo menoscabo a uma das mais insignes prestações sociais do paradigma do direito materializado do Estado Social[2], qual seja, a aposentadoria.

À parte desse viés eminentemente dogmático da desaposentação, pode-se vislumbrar o instituto como marco de evolução jurídica, em consonância com os postulados teoréticos formulados pelo sociólogo tedesco Niklas Luhmann[3] (2003).

Para Luhmann, a evolução do direito ocorre quando, no sistema, surgem comunicações inesperadas, ou seja, comunicações que não integram ordinariamente a reprodução autopoiética do Direito. Nesse sentido, a evolução do Direito dar-se-ia pelas seguintes etapas: (i) variação; (ii) seleção; e (iii) restabilização.

Tendo-se por perspectiva esse pequeno panorama sobre a evolução de corte luhmanniana, é intuitivo que a desaposentação insere-se nesta seara evolutiva.

Isso posto, a presente composição científica ostenta três objetivos primordiais: (i) apresentar o perfil jurídico da desaposentação, conforme a dogmática jurídica pátria; (ii) traçar um bosquejo da teoria luhmanniana de evolução social; (iii) e, por fim, realizar um breve acoplamento estrutural[4] entre a desaposentação – dogmaticamente plasmada – e a teoria da evolução jurídica de Niklas Luhmann.

Deste modo, o presente artigo está do seguinte modo estruturado: (i) de intróito, será engendrado um panorama acerca da teoria da evolução jurídica de Luhmann; (ii) empós, serão apresentados os principais aspectos dogmáticos atinentes à desaposentação; (iii) em seguida, ilustrar-se-á, de modo breve, como a desaposentação subsume-se à teoria luhmanniana de evolução jurídica; e (iv) enfim, serão recolhidas, em compartimento próprio, as mais relevantes ilações franqueadas pela pesquisa.

Destarte, o que se busca com essas singelas linhas é evidenciar como a desaposentação reveste-se como evolução jurídica do sistema social.


2 PANORAMA SOBRE A TEORIA DA EVOLUÇÃO JURÍDICA DE NIKLAS LUHMANN

Antes de tudo, deve-se salientar que a teoria da evolução jurídica de Niklas Luhmann associa, indubitavelmente, a evolução ao aumento da complexidade e, por conseguinte, à diferenciação funcional da sociedade.

Feita tal anotação vestibular, Luhmann, com o intento de formular sua teoria da evolução jurídica, busca em Darwin subsídios teóricos para tanto (2002, p. 172). A adoção do conjunto teorético de Darwin não é aleatória, na medida em que tal conjunto não menoscaba a necessária relação de equilíbrio entre diferença/adaptação e sistema/entorno.

Destarte, para Luhmann (2002, p. 205), a evolução normaliza o improvável, ou, consoante a bela síntese de Marcelo Neves (2008, p. 1, grifo nosso), "[...] a evolução manifesta-se com a transformação do improvável em provável". Nesse diapasão, a evolução ocorre quando uma comunicação desviante nasce na estrutura sistêmica.

Contudo, adiante-se desde já, que Luhmann (2002, p. 175) assume duas conclusões a respeito de sua teoria evolutiva: (i) não é possível saber se a teoria da evolução do direito explica a evolução da sociedade; (ii) mas que a sua teoria da evolução é compatível com a sua teoria dos sistemas, cujo núcleo principal é a autopoiese dos sistemas sociais parciais[5].

Por consiguiente, la evolución se efectúa cuando se cumplen diferentes condiciones y cuando éstas se acoplan entre sí de manera condicional (= no necesaria), a saber:

1) La variación de un elemento autopoiético respecto de los patrones de reproducción que habían sido, hasta el momento, vigentes.

2) La selección de la estructura que hace posible que dicha variación se constituya en condición de las siguientes reproducciones.

3) La estabilización del sistema, en el sentido de mantenerlo dinámicamente estable para que sea posible la reproducción autopoiética de esa forma (determinada estructuralmente) que ha experimentado mutación (LUHMANN, 2002, p. 173).

Logo, a variação remete à existente de uma comunicação desviante no sistema; a seleção importa na verificação de estruturas aptas a dar continuidade à reprodução da comunicação desviante; por fim, a restabilização possibilita à comunicação desviante sua reprodução autopoiética no sistema. Assim, a variação refere-se ao elemento; a seleção refere-se à estrutura; e a restabilização refere-se ao sistema (LUHMANN, 2002, p. 173).

Ora, da explanação supra surge uma conclusão impostergável: uma reprodução autopoiética do direito – que ocorre na restabilização – leva a perfazer por uma evolução independente do direito (LUHMANN, 2002, p. 174).

Deve-se, contudo, operar a algumas desmistificações no âmbito da teoria evolutiva jurídica luhmanniana, conforme expõe Marcelo Neves (2008, p. 3-5): (i) o paradigma sistêmico afasta o dogma de uma seleção natural; (ii) o paradigma sistêmico afasta a ideia de "sobrevivência do mais apto" ou de "luta pela vida" – tanto (i) quanto (ii) são eminentemente biológicos; (iii) o paradigma sistêmico afasta a evolução de uma ligação umbilical a indivíduos e a grupos humanos, por ser eminentemente sociobiológica; (iv) o paradigma sistêmico afasta a associação entre evolução e progresso, haja vista que a evolução não pode ser planificada, porque ela simplesmente se dá (LUHMANN, 2002, p. 192) – ou, como bem disse Neves (2008, p. 5), não existe uma teleologia da evolução.

No processo evolutivo do direito, a escrita ocupa um papel de destaque. De acordo com Luhmann (2002, p. 175-183), a escrita impede mutações diuturnas no sistema. Assim, a escrita permite fazerem-se reconhecíveis eventuais desvios. Entrementes, a escrita[6], a partir do momento em alberga a distinção sentido e signo possibilita, outrossim, novas interpretações, que podem, por seu turno, desencadear um processo evolutivo com o surgimento de uma comunicação desviante, que passa a ser acolhida pelas estruturas do sistema e, posteriormente, reproduzida autopoieticamente. Nessa medida, a escrita ostenta um "[...] doble procedimiento de reducción y aumento de complejidad" (LUHMANN, 2002, p. 182, grifo nosso).

"Ante esta situación, la evolución del derecho se tiene que apoyar en la interpretación" (LUHMANN, 2002, p. 199). Todavia, deve salientar-se que o direito existe sem a escrita[7]: esta somente abre novas perspectivas evolutivas.

Luhmann (2002, p. 198-201) finaliza sua exposição a respeito da evolução do direito fixando que a política é, hodiernamente, o principal fator de evolução do direito, em razão do acoplamento estrutural dos subsistemas sociais das modernas sociedades complexas.

Encerrando este compartimento, é interessante apontar a direção da evolução do direito, de matriz luhmanniana, consoante sistematização de Marcelo Neves (2008, p. 18-25), tendo-se por referência toda a profunda obra de Niklas Luhmann:

a)Às sociedades segmentariamente diferenciadas cabe um direito arcaico, caracterizado pela ausência de um procedimento de aplicação jurídica, pela indistinção entre regra e ação, pela indiferenciação entre moral, direito e costumes. Assim, no direito arcaico o impasse evolutivo reside na insuportabilidade e intolerância a uma comunicação de expectativa normativa surpreendente – a variação –, o que prejudica qualquer impulso evolutivo;

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b)O direito das culturas avançadas pré-modernas, atinente a sociedades hierarquicamente diferenciadas, caracteriza-se pela presença de um procedimento de aplicação jurídica, ou seja, um terceiro que, mediante regras institucionalizadas, executa o direito. Contudo, o direito, ainda agarrado a aspectos metafísicos, é visto como imutável, a saber, como verdadeiro. Logo, o impasse evolutivo, como intuitivo, reside na seleção: existe a variação, mas a imutabilidade não permite a adaptação do elemento desviante à estrutura do sistema.

c)Nas sociedades funcionalmente diferenciadas (complexas), o direito é positivo. Destarte, existe um procedimento de aplicação jurídica baseado em um conjunto normativo alterável, uma vez que o direito despojou-se de seus ranços metafísicos. Nesse diapasão, a positividade significa não somente um direito posto através de um procedimento legislativo institucionalizado (decidibilidade), mas também pela sua alterabilidade. Isso posto, o impasse evolutivo do direito positivo reside na restabilização, vez que múltiplas são as variações do sistema e forte é pressão seletiva, o que acaba por sobrecarregar a reprodução autopoiética dos elementos do sistema.


3 OS CONTORNOS DA DESAPOSENTAÇÃO PELA DOGMÁTICA JURÍDICA PÁTRIA

3.1 A correlação existente entre desaposentação e aposentadoria

A compreensão da desaposentação perpassa, inexoravelmente, pelo instituto da aposentadoria. É que, conforme melhor explanado abaixo, a desaposentação é o contrário da aposentadoria, na medida em que a primeira importa no retorno do inativo à condição de ativo, ao passo que a segunda importa na transferência do ativo à inatividade. (Isto é um esquema genérico que, obviamente, pode ceder ante a criatividade da realidade).

Portanto, intuitiva é a correlação entre aposentadoria e desaposentação, razão pela qual se torna justificável a reserva de algumas breves considerações a respeito da aposentadoria, o que se passa a fazer a partir desse momento.

A aposentadoria está prevista positivamente no ordenamento jurídico brasileiro (o que, aliás, não é o caso da desaposentação) no art. 7º da Constituição Federal de 1988, assim redigido: "Art. 7º. São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: [...] XXIV – aposentadoria; [...]" (BRASIL, 2007, p. 16). A regulamentação de tal enunciado normativo encontra-se em sede constitucional – arts. 201 e 202 da Constituição Federal – e em ambiente infraconstitucional – Leis 8.212 e 8.213, ambas de 1991.

A aposentadoria é um benefício que se

[...] constitui em um programa de pagamentos em dinheiro, prestado ao indivíduo e que tem por finalidade minimizar ou eliminar o estado de necessidade social do segurado [...]. O direito à aposentadoria está condicionado à preexistência de um vínculo contributivo ao sistema, como compensação efetiva ou presumida da perda de capacidade laborativa (ALVES, 2010, p. 637).

Assim, materialmente a aposentadoria é um direito subjetivo constitucional social, que se assenta nas características da individualidade, personalidade, pecuniaridade e patrimonialidade, cujo escopo é segurar o trabalhador que se encontra em situação de invalidez, idade avançada ou de perigo para sua integridade[8]. Formalmente, a aposentadoria é um ato jurídico administrativo declaratório, expedido pela Administração Pública, que concede àquele que cumpriu os requisitos legais o direito a perceber uma prestação pecuniária.

Feitas estas fulgazes considerações à aposentadoria, passemos, então, para o núcleo desta pesquisa, a desaposentação.

3.2 Conceito e pressupostos da desaposentação

Antes de fornecermos nossa conceituação para o instituto da desaposentação, faremos uma excursão pelas definições apresentadas por vários estudiosos do tema. Então, vejamo-las.

Segundo escólio de Gelson Amaro de Souza e Bruna Izídio de Castro Santos (2011, p. 88), a "desaposentação consiste no desfazimento da aposentadoria pelo seu titular, na sua renúncia visando ao aproveitamento do tempo de contribuição para a obtenção de um benefício mais vantajoso".

Já para Hamilton Antônio Coelho (2000, p. 1) a desaposentação é "[...] o direito de o aposentado renunciar à jubilação e aproveitar o tempo de serviço para nova aposentadoria".

Confira-se, por sua vez, a formulação de Carlos Alberto Pereira de Castro e João Batista Lazzari (2006, p. 545):

Em contraposição à aposentadoria, que é o direito do segurado à inatividade remunerada, a desaposentação é o direito do segurando ao retorno à atividade remunerada. É o ato de desfazimento da aposentadoria por vontade do titular, para fins de aproveitamento do tempo de filiação em contagem para nova aposentadoria, no mesmo ou em outro regime previdenciário.

Helena Mizushima Wendhausen (2007, p. 26), a seu turno, explica que

A desaposentação retrata a situação de quem, legítima, legal e regularmente estava aposentado com o benefício em manutenção e requereu a renúncia do ato formal concessório, para aproveitamento do tempo de contribuição neste regime previdenciário ou em outro regime previdenciário, produzindo-se os efeitos práticos dali decorrentes.

Por fim, a lição daquele que primeiro captou o fenômeno e que, inclusive, cunhou o neologismo desaposentação, Wladimir Novaes Martinez (2008, p. 36):

[Desaposentação é a] renúncia à aposentação, sem prejuízo do tempo de serviço ou do tempo de contribuição, per se irrenunciáveis, seguida ou não de volta ao trabalho, restituindo-se o que for atuarialmente necessário para manutenção do equilíbrio financeiro dos regimes envolvidos com o aproveitamento do período anterior no mesmo ou em outro regime de previdência social, sempre que a situação do segurado melhorar e isso não causar prejuízo a terceiros.

À luz das várias exposições acima colacionadas, pode-se definir, sinteticamente, a desaposentação como a renúncia[9] à aposentadoria com o propósito de, posteriormente, lograr benefício previdenciário mais vantajoso.

Nesse diapasão, são pressupostos lógicos da desaposentação, conforme sistematização de Wladimir Novaes Martinez (2007, p. 14-20):

a)benefício regular: é imperioso que a aposentadoria renunciada tenha sido obtida de modo legal;

b)manifestação do titular: somente o aposentado ostenta a condição de deflagrar o procedimento tendente à reversão da aposentadoria; logo, inexiste a figura da desaposentação heterônoma;

c)natureza do benefício: para que a desaposentação aconteça, mister que seja renunciável a aposentadoria. No ponto, doutrina[10] e jurisprudência[11] admitem a renunciabilidade da aposentadoria. Assim, o benefício previdenciário da aposentadoria é disponível;

d)formalidade: a renúncia à aposentadoria deve ser formal, ou seja, formulada e endereçada à autarquia previdência por escrito[12];

e)restituição do recebido: a importância do tema reclama uma análise apartada, a ser engendrada infra;

f)motivação específica: o objetivo precípuo da desaposentação é melhorar a situação previdenciária[13], e não piorá-la;

g)permissão legal: a ausência de proibição expressa da desaposentação no arcabouço normativo brasileiro implica na sua permissão implícita;

h)ausência de prejuízo: a desaposentação não pode causar prejuízos para o regime previdenciário no qual se encontra inserido o renunciante, nem a terceiros[14];

i)cômputo do tempo de serviço: o tempo de serviço deverá ser reutilizado no caso de ser pleiteada a aposentadoria mais vantajosa;

j)volta ao passado: com a desaposentação, deve-se restabelecer o status quo anterior à reversibilidade.

Por fim, gize-se que a desaposentação pode dar-se no mesmo regime previdenciário ou importando em mudança de regime. Ou seja: pode-se requerer a desaposentação dentro do Regime Geral de Previdência Social (RGPS) ou no Regime Próprio de Previdência Social (RPPS); ou na mudança de um regime para outro (do RGPS para o RPPS ou do RPPS para o RGPS).

3.3 Acolhimento da desaposentação na doutrina e na jurisprudência

Deveras, a desaposentação logrou aceitabilidade ampla nos meios jurídicos pátrios, dentre os quais a doutrina e jurisprudência.

Doutrinariamente, são favoráveis à desaposentação: Carla Martins Alves (2010, p. 646), Carlos Alberto Pereira de Castro e João Batista Lazzari (2006, p. 546), Wladimir Novaes Martinez (2007, p. 8), Helena Mizushima Wendhausen (2007, p. 27), Gelson Amaro de Souza e Bruna Izídio de Castro Santos (2011, p. 89), Gisele Lemos Kravchychyn (2007, p. 89), Luiz Roberto Luchi Demo (2002, p. 122), Fábio Zambitte Ibrahim (2008, p. 639) e Hamilton Antônio Coelho (2000, p. 1).

Outrossim na jurisprudência, é consensual quanto à possibilidade da desaposentação. Confira-se:

AGRAVO INTERNO. MATÉRIA CONSTITUCIONAL. PREQUESTIONAMENTO. IMPOSSIBILIDADE. APOSENTADORIA. RENÚNCIA. POSSIBILIDADE. PRECEDENTES.

1. Conforme entendimento pacificado, a via especial não se presta à apreciação de alegada ofensa a dispositivo da Constituição Federal, ainda que para fins de prequestionamento, não sendo omisso o julgado que silencia acerca da questão.

2. Decidida a questão sob enfoque da legislação federal aplicável ao caso, inaplicável a regra da reserva de plenário prevista no art. 97 da Constituição da República.

3. Possível a renúncia à aposentadoria, pois direito disponível, ainda que para obtenção de outro benefício, mais vantajoso.

4. Agravo ao qual se nega provimento. (STJ, 6ª Turma, AgRg no REsp 1089445/SC, Rel. Min. Celso Limongi, j. 19.08.2010, DJe 06.09.2010, grifo nosso). (BRASIL, 2011a)

No Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, também a matéria é tranqüila. Assim:

MANDADO DE SEGURANÇA. DESAPOSENTAÇÃO. DESFAZIMENTO DO ATO DE APOSENTADORIA. LIBERAÇÃO DO TEMPO DE SERVIÇO. POSSIBILIDADE. DIREITO DO APOSENTADO.

- A complexidade da questão de direito ventilada não impede que seja discutida em sede de mandado de segurança, contanto que a matéria fática que embase o pedido esteja demonstrada de plano.

- Assegura-se ao servidor[15] o direito à desaposentação, assim compreendida a renúncia à aposentadoria com o objetivo de liberar o tempo de serviço respectivo para obtenção de outro benefício em melhores condições.

- O princípio da legalidade e o ato jurídico perfeito não impedem a desaposentação por inexistir vedação legal e em se tratando de direito patrimonial disponível, devendo os princípios invocados ser interpretados em favor do aposentado e em harmonia com os princípios da liberdade de trabalho e da dignidade da pessoa humana, guardada a devida finalidade dos benefícios previdenciários de proteção aos segurados.

- Sentença confirmada no reexame necessário. (TJMG, 4ª C. Cível, APC 1.0024.10.090147-9/001, Relª. Des. Heloisa Combat, j. 25.08.2011, DJ 08.09.2011, grifo nosso). (MINAS GERAIS, 2011).

Contudo, saliente-se desde já, que existe minoria, no plano doutrinário[16], que não admite a desaposentação. Tal minoria alinha-se, portanto, à autarquia previdenciária, ao expor argumentos obstativos à desaposentação, consoante abaixo demonstrado.

3.3.1 Plexo de argumentos contrário à desaposentação

3.3.1.1 Irrenunciabilidade da aposentadoria. Decreto 3.048/99

Diz o art. 181-B do Decreto 3.048, de 1999, in verbis:

Art. 181-B. As aposentadorias por idade, tempo de contribuição e especial concedidas pela Previdência Social, na forma deste Regulamento, são irreversíveis e irrenunciáveis.

Parágrafo único. O segurado pode desistir do seu pedido de aposentadoria desde que manifeste essa intenção e requeira o arquivamento definitivo do pedido antes do recebimento do primeiro pagamento do benefício, ou de sacar o respectivo Fundo de Garantia do Tempo de Serviço ou Programa de Integração Social, ou até trinta dias da data do processamento do benefício, prevalencedo o que ocorrer primeiro (BRASIL, 1999).

Contudo, é de solar clareza que um reles decreto não pode inovar no ordenamento jurídico: somente a lei, em sentido estrito, tem o condão de fazê-lo. Nesse diapasão, ensina Celso Antônio Bandeira de Mello (2009, p. 340, grifo nosso):

O Texto Constitucional brasileiro, em seu art. 5º, II, expressamente estatui que: ‘Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei’. Note-se que o preceptivo não diz ‘decreto’, ‘regulamento’, ‘portaria’, ‘resolução’ ou quejandos. Exige lei para que o Poder Público possa impor obrigações aos administrados.

Do mesmo modo, posiciona-se José dos Santos Carvalho Filho (2007, p. 49):

Por essa razão, o poder regulamentar não cabe contrariar a lei (contra legem), pena de sofrer invalidação. Seu exercício somente pode dar-se secundum legem, ou seja, em conformidade com o conteúdo da lei e nos limites que esta impuser. Decorre daí que não podem os atos formalizadores [como os decretos] criar direitos ou obrigações, porque tal é vedado num dos postulados fundamentais que norteiam nosso sistema jurídico: ‘ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei’ (art. 5º, II, CF).

Assim, não havendo uma previsão legal expressa que repudie a desaposentação, lógico afigura-se a inaptidão de um decreto para engendrar tal proibição. A função do decreto é, tão-somente, regulamentar, ou seja: "[...] explicitar o teor das leis, preparando sua execução, complementando-as, se for o caso", de modo que "[...] não pode exceder os limites da função executiva, o que significa dizer que não pode substituir a função legislativa formal [...]" (MEDAUAR, 2009, p. 119).

Logo, o art. 181-B, do Decreto 3.048, de 1999 (BRASIL, 1999) deve ser reputado inconstitucional por violar o princípio da legalidade insculpido no art. 5º, II, da Constituição Federal. Portanto, possível afigura-se a desaposentação no universo normativo brasileiro.

3.3.1.2 Direito adquirido e ato jurídico perfeito

Outro argumento recorrentemente vislumbrado pelos opositores da desaposentação refere-se ao direito adquirido e ao ato jurídico perfeito. Nesse diapasão, concedida a aposentadoria, esta se tornaria imodificável, em razão das cláusulas do direito adquirido[17] e do ato jurídico perfeito[18], previstas no art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal (BRASIL, 2007).

Invocar as garantias do direito adquirido e do ato jurídico perfeito como condição obstativa à desaposentação configura perspícua desonestidade intelectual: tais garantias foram erigidas em favor do indivíduo, e não do Estado; portanto, tal argumento não se sustenta por carecer de razão normativa. No mesmo sentido:

Tais institutos [direito adquirido e ato jurídico perfeito] são meios de proteção do cidadão e não podem ser utilizados como justificativa para prejudicá-lo, em proveito do Estado. Cabe ao próprio titular do direito fazer juízo de conveniência em adotar ou não determinada conduta e não ao ente estatal, ou seja, é uma prerrogativa do cidadão-segurado e não do Estado. Portanto não caberia a este impedir tal pretensão utilizando-se de uma garantia constitucional do próprio pretendente (ALVES, 2010, p. 641).

Logo, direito adquirido e ato jurídico perfeito não podem ser invocados com a pretensão de embaraçar a desaposentação.

3.3.1.3 Ausência de previsão legal

Muitos dos acólitos da corrente negadora da desaposentação afirmam que a inexistência de tal previsão, no sistema jurídico, afasta qualquer pretensão à reversibilidade da aposentadoria. Contudo, tal argumento não pode prosperar tendo-se por perspectiva o curial perfil jurídico do princípio da legalidade talhado pela dogmática jurídica doméstica.

Preambularmente, veja-se a lição de José Afonso da Silva (2005, p. 420):

O princípio da legalidade é a nota essencial do Estado de direito. É, também, por conseguinte, um princípio basilar do Estado Democrático de Direito [...] porquanto é da essência do seu conceito subordinar-se à Constituição e fundar-se na legalidade democrática. Sujeita-se ao império da lei, mas da lei que realize o princípio da igualdade e da justiça, não pela sua generalidade, mas pela busca da igualização das condições dos socialmente desiguais. Toda sua atividade fica sujeita à lei, entendida como expressão da vontade geral, que só se materializa num regime de divisão dos poderes em que ela seja o ato formalmente criado pelos órgãos de representação popular de acordo com o processo legislativo estabelecido na Constituição. É nesse sentido que se deve entender a assertiva de que o Estado, ou o Poder Público, ou os administradores não podem exigir qualquer ação, nem impor qualquer abstenção, senão em virtude de lei.

Completando o raciocínio de José Afonso, as palavras de Celso Antônio Bandeira de Mello (2009, p. 105): "Ao contrário dos particulares, os quais podem fazer tudo o que a lei não proíbe, a Administração só pode fazer o que a lei antecipadamente autorize".

Da conjugação de ambas as lições acima colacionadas emerge uma ilação: a ausência de um preceptivo legal expresso que proíba a desaposentação importa numa autorização implícita do ordenamento jurídico brasileiro. Ora, observe que as seguintes premissas (p1 e p2) levam à seguinte conclusão (c): (p1) desconhece-se, simplesmente por inexistir, enunciado normativo que compila a Administração a denegar eventual pretensão à desaposentação; (p2) igualmente, desconhece-se, simplesmente por inexistir, enunciado normativo que proíba os particulares de elaborarem pretensão à desaposentação; (c) logo, podem os particulares requerem a desaposentação, estando a Administração compelida à, uma vez observados os padrões legais circundantes ao caso, realização da desaposentação.

Logo, a ausência de previsão legal da desaposentação é um obséquio à sua permissão, e não à sua proibição.

3.4 Desaposentação e devolução de valores

Admitida a desaposentação no sistema jurídico brasileiro, o repto que se descortina consiste em saber se a renúncia à aposentadoria importa na devolução dos valores anteriormente recebidos ao Poder Público. A questão é, de fato, assaz polêmica.

Podem-se sistematizar, então, três correntes distintas, a saber: (i) a desaposentação implica dever de devolução dos valores percebidos; (ii) a desaposentação implica dever de devolução dos valores percebidos somente quando envolver a mudança de regime previdenciário; (iii) a desaposentação não implica dever de devolução dos valores percebidos. Vejamo-las separadamente.

(i) Para uma parcela doutrinária e jurisprudencial, a desaposentação envolveria o dever de restituição das mensalidades anteriormente percebidas. Tal entendimento lastreia-se no argumento segundo o qual a desaposentação acarretaria um desequilíbrio atuarial no sistema previdenciário, de modo a proporcionar um enriquecimento ilícito do segurado.

Acolhendo tal posição, encontra-se Wladimir Novaes Martinez (2007, p. 17):

Ainda que seja seguro social, pensando-se individualmente, se a Previdência Social aposenta o segurado, ela se serve de reservas técnicas acumuladas individualmente pelos trabalhadores, entre as quais as do titular do direito ao benefício. Na desaposentação, o órgão gestor terá de reaver os valores pagos para estar econômica, financeiramente apta para aposentá-lo adiante ou poder emitir a CTC.

Tal posição parece ser a dominante no âmbito da Justiça Federal. A propósito:

PEDIDO DE UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA. PREVIDENCIÁRIO. DESAPOSENTAÇÃO. EFEITOS EX TUNC. NECESSIDADE DE DEVOLUÇÃO DOS VALORES JÁ RECEBIDOS. DECISÃO RECORRIDA ALINHADA COM A JURISPRUDÊNCIA DESTA TNU. RECURSO CONHECIDO E NÃO PROVIDO.

1. Cabe pedido de uniformização quando demonstrado que o acórdão recorrido contraria jurisprudência dominante do Superior Tribunal de Justiça.

2. A possibilidade de renúncia à aposentadoria deve estar condicionada à devolução dos proventos já recebidos, pela preservação do próprio sistema previdenciário e seus princípios norteadores. Precedentes no PU nº. 2007.83.00.50.5010-3 e nº. 2007.72.55.00.0054-3, ambos desta TNU.

3. Incidente conhecido e não provido. (TNU, PEDILEF 2006.72.55.00.6406-8, Relª. Juíza Federal Rosana Noya Alves Weibel Kaufmann, j. 02.12.2010, DJ 08.07.2011). (BRASIL, 2011b).

(ii) Outra posição afirma que a desaposentação somente desafiaria a devolução no caso específico de mudança de regime previdenciário, pois a situação abrangeria uma migração de valores, deixando o regime abandonado em negativo.

Assim se posiciona Fábio Zambitte Ibrahim[19] (2005, p. 60):

Já a desaposentação visando a mudança de regime causa alguma celeuma e, a princípio, faz algum sentido falar-se em restituição de valores percebidos, pois, se o segurado deixa o regime, levando suas reservas acumuladas para outro regime previdenciário, deveria então ressarcir o regime originário pelos gastos que sustentou, evitando-se prejuízos àqueles que permanecem vinculados ao sistema anterior.

(iii) Enfim, aponta-se a existência de doutrina e jurisprudência majoritárias que negam, em qualquer caso, o dever de devolução dos valores recebidos, uma vez que o segurado contribuiu para o sistema, fazendo jus, portanto, aos benefícios auferidos.

Na doutrina:

É defensável o entendimento de que não há a necessidade da devolução dessas parcelas, pois, não havendo irregularidade na concessão do benefício recebido, não há o que ser restituído. Como paradigma podemos considerar a reversão, prevista na Lei n. 8.112/90, que não prevê a devolução dos proventos percebidos (CASTRO; LAZZARI, 2006, p. 547).

Na jurisprudência:

AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. PREVIDENCIÁRIO. APOSENTADORIA. DIREITO DE RENÚNCIA. CABIMENTO. POSSIBILIDADE DE UTILIZAÇÃO DE CERTIDÃO DE TEMPO DE CONTRIBUIÇÃO PARA NOVA APOSENTADORIA. DEVOLUÇÃO DE VALORES RECEBIDOS NA VIGÊNCIA DO BENEFÍCIO ANTERIOR. EFEITOS EX NUNC. DESNECESSIDADE.

1. O entendimento desta Corte Superior de Justiça é no sentido de se admitir a renúncia à aposentadoria objetivando o aproveitamento do tempo de contribuição e posterior concessão de novo benefício, independentemente do regime previdenciário que se encontra o segurado.

2. O Superior Tribunal de Justiça já decidiu que o ato de renunciar ao benefício tem efeitos ex nunc e não envolve a obrigação de devolução das parcelas recebidas, pois, enquanto aposentado, o segurado fez jus aos proventos.

3. Agravo regimental a que se nega provimento. (STJ, 6ª Turma, AgRg no REsp 1247651/SC, Rel. Min. Haroldo Rodrigues, j. 21.06.2011, DJe 10.08.2011). (BRASIL, 2011c).

Ademais, acresce-se que, ostentando indubitável natureza alimentar, o benefício previdenciário submete-se ao princípio da irrepetibilidade, consoante explana Maria Berenice Dias (2007, p. 455):

Talvez um dos mais salientes princípios que regem o tema dos alimentos seja o da irrepetibilidade. Como se trata de verba que serve para garantir a vida, destina-se à aquisição de bens de consumo para assegurar a sobrevivência. Assim, inimaginável pretender que sejam devolvidos. Esta verdade é tão evidente que até é difícil sustentá-la. Não há como argumentar o óbvio. Provavelmente por esta lógica ser inquestionável é que o legislador não se preocupou sequer em inseri-la na lei. Daí que o princípio da irrepetibilidade é por todos aceito mesmo não constando do ordenamento jurídico.

Logo, a par dos argumentos acima apresentados, manifestamos nossa adesão à corrente segundo a qual a desaposentação não implica o dever de devolução dos valores recebidos.

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Sobre o autor
Renato de Abreu Barcelos

Graduado em Direito pela Universidade de Itaúna. Pós-graduando em Direito pela PUC Minas.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BARCELOS, Renato Abreu. Luhmann e a desaposentação: a reversibilidade da aposentadoria como marco de evolução jurídica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3026, 14 out. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20205. Acesso em: 19 abr. 2024.

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