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A mutação constitucional da inafiançabilidade

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13/10/2011 às 13:02
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Com a Lei nº 12.403/2011, a inafiançabilidade deixa de ser uma presunção de periculosidade para constituir tão somente o não cabimento de uma particular medida cautelar para alguns delitos.

SUMÁRIO: 1. A Dignidade Constitucional da Inafiançabilidade. 2. A Inafiançabilidade no Código de Processo Penal de 1941. 3. Uma Presunção de Periculosidade Mais Forte Que a Presunção de Inocência. 4. A Putrefação da Fiança.5. A Inafiançabilidade Não é Igual a Ela Mesma: Divisão de uma Proibição Conforme a Fonte. 6. A Balbúrdia Legal e Jurisprudencial. 7. Mais Problemas Jurisprudenciais: A Prisão Obrigatória e a Motivação das Decisões Judiciais. 8. Ressurreição da Fiança e Mutação Constitucional da Inafiançabilidade. 9. Considerações Finais. Referências Bibliográficas


1. A Dignidade Constitucional da Inafiançabilidade

A inafiançabilidade tem sido indubitavelmente um dos institutos mais ignorados do direito brasileiro. Os doutrinadores do direito processual penal já há muito tempo a tratam com um certo desdém, e os constitucionalistas tampouco a veem com grande estima, sendo que alguns dos manuais mais completos não lhe dispensam qualquer atenção.

Tamanho descaso para com um instituto incluído no rol de direitos fundamentais da Constituição da República é irredimível, mormente se levado em consideração a grande discrepância jurisprudencial quanto à sua correta aplicação. É imperativo recordar que o Poder Constituinte Originário relacionou como inafiançáveis nada menos do que seis diferentes categorias de delitos – racismo, tortura, tráfico ilícito de entorpecentes, crimes hediondos, terrorismo e ação de grupos armados contra a ordem constitucional e o Estado Democrático – o que por si só já justificaria um estudo mais focado sobre o tema.

Outrossim, trata-se de um instituto assaz relevante dentro do sistema constitucional de imunidades parlamentares, na medida em que o art. 53, § 2º da Lei Maior somente autoriza a prisão de Deputados e Senadores na existência de situação de flagrância de crimes para os quais a fiança seja inacessível. Como as Leis Orgânicas da Magistratura e do Ministério Público também contam com disposições semelhantes, a inafiançabilidade repercute igualmente sobre as prerrogativas dos integrantes destas carreiras.

Além disso, convém registrar que as variadas interpretações que os tribunais tem conferido à matéria afetam sobejamente direitos e garantias fundamentais, a exemplo da liberdade dos cidadãos, da restritividade das prisões cautelares e da obrigação de motivação das decisões judiciais. Não se pode deixar de tomar em consideração o fato de que muitos réus permaneciam detidos por período prolongado unicamente porque consta do auto de prisão em flagrante menção a delito inafiançável, o que levava alguns juízes a manterem a custódia de forma quase maquinal.

Finalmente, vê-se que a própria observância do devido processo legal pode exibir íntima relação com a interdição da caução, tendo em vista que o Código de Processo Penal distingue o rito procedimental para delitos praticados por servidor público, a depender da afiançabilidade ou não das infrações imputadas.

O tema demonstra ao mesmo tempo grande atualidade, diante do novo fôlego dado à fiança criminal com a recente sanção da Lei 12.403 de 2011, evento que demanda novas reflexões sobre esta medida cautelar e sobre as situações de sua inacessibilidade. Para melhor compreender a inserção da questão dentro do todo maior que é o processo penal constitucional, faz-se necessária uma breve reconstrução temporal da inafiançabilidade, expondo-a inicialmente nos moldes em que ela foi erigida pelo legislador de 1941, para em seguida acompanhar a contradição inserida na sistemática codificada, referendada pela Constituição de 1988, com a supervalorização da liberdade provisória sem fiança.

Feito este introito histórico, não sem antes dar uma rápida mirada nas posições adotadas pelo Supremo Tribunal Federal sobre o tópico, se demonstrará como o instituto ora em análise passou por um processo de mutação constitucional, levado a cabo com as modificações promovidas pela Lei 12.403. Com isto, a inafiançabilidade enfim pode se desvencilhar dos significados que antes lhe eram conferidos para revestir-se de um novo perfil, mais adequado a um processo penal equilibrado e preservador dos valores constitucionais em sua inteireza.


2. A Inafiançabilidade no Código de Processo Penal de 1941

O Código de Processo Penal de 1941 nasceu comprometido com as ideologias totalitárias que grassavam pelos Estados na primeira metade do Século XX. Para realizar essa constatação, é suficiente observar que ele foi editado sob a égide da ditadura de Getúlio Vargas, tendo como principal referencial teórico a legislação processual penal da Itália fascista. Suas bases são decididamente autoritárias, nutridas por um espírito inquisitivo, atributos facilmente perceptíveis na disciplina original do subsistema das medidas cautelares, que se reportava à liberdade como provisória quando, em um Estado Democrático de Direito, na realidade provisória deveria ser a prisão.

É inegável que o Código, quando de sua promulgação, comungava com uma certa presunção de culpa do acusado. A simples assunção do status de réu bastava para que seu encarceramento fosse reputado necessário, pois desta condição se inferia uma nocividade ao convívio social que deveria ser neutralizada pela ação do Estado. Prova maior disso era a redação primitiva do art. 312 do Código, que dispunha sobre a decretação obrigatória de prisão preventiva para todos aqueles que respondessem por crimes sancionados com tempo de reclusão igual ou superior a dez anos. Foi um dispositivo que inspirou críticas mesmo à época de sua confecção [01], já que subtraía do juiz a capacidade de avaliar em cada caso se o incriminado de fato oferecia ou não risco à sociedade.

O mesmo contexto que consagrou a prisão preventiva obrigatória fez brotar a questão da inafiançabilidade. É de se lembrar que, a princípio, entendia-se que a liberdade provisória, com ou sem fiança, era apenas sucedânea da prisão em flagrante, ou seja, era medida cautelar (e a fiança uma contracautela, a depender da doutrina consultada) admitida em regra quando o suspeito era surpreendido durante ou logo após o ato delinquente. E a caução, nestes tempos, figurava no cerne da estrutura da liberdade provisória, o que implicava dizer que os tipos morfológicos desta eram formatados de acordo com a exigência, dispensa ou negação da fiança.

Destarte, a liberdade provisória assumia diversas feições, estabelecidas gradativamente conforme a magnitude da infração. Em um primeiro degrau da escala, o réu podia livrar-se solto, "independentemente de fiança", nos dizeres da antiga redação do art. 321 do Código de Processo Penal, caso respondesse por prática de delitos não punidos com privação da liberdade, ou com penas máximas não superiores a três meses. Não havia maior preocupação das autoridades em tomar do acusado o compromisso de comparecimento nos subsequentes atos do inquérito policial e da instrução criminal, pois a ação delituosa se afigurava de uma lesividade tão baixa que o Estado não manifestava maior interesse na atividade repressiva [02].

Em um degrau seguinte, a liberdade provisória era concedida nos termos do art. 310 do Código, mediante termo de comparecimento aos atos do processo. Essa forma de obter a liberdade excepcionalmente prescindia de fiança [03], se justificando pela aparente presença de uma causa excludente de antijuridicidade. A conduta portanto não encerrava em si qualquer danosidade social, o que tornava descabida a reclamação de quaisquer compromissos mais gravosos ao réu [04].

Logo em seguida, achavam-se os delitos afiançáveis, nos quais a liberdade provisória só se franqueava mediante a prestação de garantia real, tendo esta o duplo propósito de assegurar o pagamento das eventuais custas do processo e de substituir a prisão, vinculando o acusado à persecutio criminis. E por fim, já no último estágio da linha graduada, estavam os delitos inafiançáveis, apenados com reclusão, para os quais não poderia o réu obter nenhum tipo de liberdade provisória [05], o que se traduzia na manutenção da prisão em flagrante até o final do processo. A inafiançabilidade era portanto uma forma de manter no cárcere todos os acusados do cometimento de crimes graves, com lastro na simples suposição de que sua liberdade afetaria negativamente a ordem social.

Semelhante lógica reaparecia em outras hipóteses de proibição da fiança, que do mesmo modo supunham que certas categorias de pessoas eram inerentemente ameaçadoras à harmonia da sociedade. Era o caso de vadios e mendigos, que, no entender do legislador de 1941, violavam um dever social de trabalhar, entregando-se à ociosidade de maneira tal que não poderia haver a certeza de que eles não fugiriam [06] – um verdadeiro "resquício autoritário das Ordenações Filipinas que mandavam prender aquele que não vivia com o senhor ou com amo" [07]. O juízo de periculosidade quanto aos ociosos era tão presente que, mesmo com a caracterização formal da vadiagem como contravenção, dispensava-se sentença condenatória para comprová-la, podendo ela ser evidenciada nos autos de outras maneiras. Da mesma sorte, proibia-se a prestação de fiança aos que já tivessem contra si condenação penal. A legislação neste ponto era tão severa que sequer aludia à reincidência, contentando-se com a existência de pronunciamento judicial desfavorável anterior [08].


3. Uma Presunção de Periculosidade Mais Forte Que a Presunção de Inocência

A necessidade de se conservar na cadeia quem ainda não fora declarado culpado pelas autoridades competentes tem seus alicerces fincados na prisão para salvaguarda da ordem pública. A inafiançabilidade, entendida como óbice à restituição da liberdade a indivíduos supostamente prejudiciais ao convívio harmônico da sociedade, existia de modo análogo à prisão preventiva obrigatória, porém com uma diferença substancial. É que ela não se limitava às infrações punidas de modo particularmente rigoroso, como exigia a redação original do art. 312 do Código, o que a fazia alcançar um conjunto muito maior de delitos, operando sempre que se verificasse o estado de flagrância.

Como é de conhecimento geral, uma prisão provisória, por não ter conteúdo de declaração de culpabilidade e não decorrer de cognição sumária, precisa demonstrar os requisitos de qualquer restrição cautelar da liberdade no processo penal, quais sejam, o fumus commissi delicti e o periculum libertatis. E a inafiançabilidade, como modalidade isomorfa à prisão para garantia da ordem pública, também apresentava, à sua maneira, estes requisitos. O fumus commissi delicti se constatava pelo fato da fiança ser primariamente substitutiva da prisão em flagrante [09], que oferece a certeza visual da prática delitiva. Logo, a própria situação de flagrância já oferecia os indícios de autoria necessários à determinação da prisão cautelar. Já o periculum libertatis advinha da própria manifestação do legislador, que entendia que certas transgressões agrediam de forma tão intensa o bem jurídico tutelado pela norma penal que seus eventuais perpetradores não poderiam permanecer livres durante o transcorrer do processo. Essa presunção de periculosidade, é preciso que se diga, não foi criação do legislador brasileiro, já que prisões obrigatórias são comuns em países de vários continentes [10].

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Mesmo nos Estados Unidos já se admitiu a prisão automática de certos acusados, não obstante o fato da Constituição daquele país coibir a estipulação de fianças muito altas, no intuito de inibir o subterfúgio utilizado por alguns juízes de fixar valores exorbitantes, obstaculizando o retorno do réu ao meio social. A Suprema Corte daquele país julgou admissível a inafiançabilidade como forma de prisão imperativa no caso United States vs. Salerno [11], no qual decidiu-se que o Estado tem uma legítima pretensão de regramento da vida em sociedade, podendo tomar as providências cabíveis para que suspeitos de cometer crimes graves não readquiram sua liberdade. Tratou-se de juízo inteiramente calcado na teoria econômica da regulação, que impele o governo a agir sempre que se perceba a existência de um risco de grande vulto à sociedade – de modo que crimes entendidos como especialmente sórdidos costumeiramente levam os governos a reagirem com a prisão cautelar dos suspeitos [12].

Deste modo, esquivando-se de qualquer arguição de afronta à presunção de inocência, sempre se recorre ao argumento de prevenção de riscos sérios à sociedade para justificar a segregação, às custas, claro, dos direitos do incriminado. United States vs. Salerno transcende o direito norte-americano por constituir um marco da manipulação retórica, pois tece loas ao direito à liberdade dos réus, para em seguida subordiná-lo abertamente aos interesses da coletividade. É uma decisão que valida as prisões cautelares ao não lhes conferir caráter punitivo, ao passo que as corrobora como "possível solução" para os alarmantes problemas de segurança pública. Mutatis mutandis, o mesmo discurso existe e é premente em virtualmente todos os Estados modernos, levando à aplicação desmedida das prisões cautelares e criando uma aura justificadora e salvacionista em torno delas. No Brasil, aliás, algumas decisões dão a entender que não só a prisão preventiva não ataca a presunção de inocência, como ela pode até ser benéfica ao réu, por conta da detração [13]...

É oportuno assinalar que, não obstante os esforços promovidos pela doutrina para atestar a ampla dimensão do estado de inocência, presunções que funcionam contra o réu não são tão incomuns quanto se poderia imaginar, sendo corriqueiramente aceitas pelas leis e pelos tribunais desde sempre, implícita ou explicitamente. Basta lembrar que o Código Penal agasalhou disposições sobre periculosidade inerente a certas pessoas consideradas de "desajustamento social de suma gravidade" [14] – o que quer que seja que isso signifique – até a reforma da Parte Geral de 1984, e que a Lei de Contravenções Penais segue ostentando disposições parecidas em seu art. 14, embora hoje se tenha claro que se trata de norma manifestamente incompatível com a Lei Maior. Outrossim, a teoria da actio libera in causa não deixa de ser uma maneira de presumir dolo ou culpa [15], e o flagrante presumido do art. 302, IV, do Código de Processo Penal carrega já em seu nome o espírito de um raciocínio que opera contra o suposto delinquente. Sobre o tema, é de se notar que há entendimento de que a compleição do elemento subjetivo do crime, da contrariedade à norma e da própria imputabilidade penal nada mais são do que presunções [16], todas agindo em desfavor do acusado. Ocorre que, ao se admitir com tanta segurança semelhantes concepções, subtrai-se do réu o seu direito à jurisdição, da feita que contra ele nada se provou nem se alegou: presumiu-se [17].

O próprio Supremo Tribunal Federal, passando ao largo da polêmica e aceitando que contra o réu podem existir conjecturas que lhe sejam adversas, referendou a noção da inafiançabilidade como um juízo de periculosidade feito de antemão pelo legislador, como se lê a seguir:

O título prisional em que o flagrante consiste opera por si mesmo; isto é, independentemente da presença dos requisitos do art. 312 do CPP. Há uma presunção constitucional de periculosidade da conduta protagonizada pelo agente que é flagrado praticando crime hediondo ou equiparado. A Constituição parte de um juízo apriorístico (objetivo) de periculosidade de todo aquele que é surpreendido na prática de delito hediondo, o que já não comporta nenhuma discussão [18].

Por conseguinte, as críticas da inafiançabilidade como necessidade prevista por lei de encarceramento, ao se limitarem ao discurso de que, em matéria de direito processual penal, nenhuma presunção pode sobrepor-se à de inocência, acabaram esbarrando na tese rotineira e cansativamente aventada de que a preservação da segurança pública requer a limitação ou pura supressão das garantias de certos indivíduos, entendimento indissociável da estrutura original do Código de Processo Penal de 1941.


4. A Putrefação da Fiança

A Lei 6.416 de 1977 paradoxalmente se propôs a regulamentar a fiança, conseguindo no entanto aniquilar seu uso prático. Ela alterou os critérios para definição de um crime inafiançável e ainda proibiu o acesso à fiança para delitos que provocassem repercussão social, ao mesmo tempo em que criou uma nova e abrangente possibilidade de concessão de liberdade provisória sem fiança: sempre que não estivessem presentes os requisitos da prisão preventiva.

Com isso, a liberdade provisória sem fiança, dantes de âmbito limitado, passou a estender-se para uma ampla gama de delitos, sendo admissível sempre que o juiz não vislumbrasse os requisitos do art. 312 do Código de Processo Penal (então já refratário à decretação obrigatória de prisão preventiva). No louvável propósito de se diminuir o número de prisões cautelares, criou-se uma situação de desigualdade, pois, para crimes mais sérios, conceder-se-ia liberdade provisória sem fiança, mediante simples comprometimento em fazer-se presente durante os atos do processo. Já para crimes punidos de forma mais branda, continuou-se exigindo, além deste mesmo compromisso, a garantia real. Proibir a fiança passou a equivaler a dispensá-la, uma vez que o acusado de cometer um crime inafiançável poderia fazer jus à liberdade restituída com menor grau de vinculação. Assim, dois degraus da escala da liberdade provisória, inicialmente distantes um do outro – a vedação da fiança e a sua dispensa – tornaram-se idênticos na prática.

Estando a liberdade provisória sem maiores ônus por demais acessível, a fiança perdeu importância no subsistema de medidas cautelares, e, com ela, como era de se supor, também a inafiançabilidade foi relegada ao ostracismo. Essa situação perdurou até 1988, quando houve a promulgação de um novo texto constitucional que, a despeito de jogar novas luzes, decerto benéficas, sobre o processo penal, viria agravar ainda mais a incerteza quanto ao tema aqui estudado.


5. A Inafiançabilidade Não é Igual a Ela Mesma: Divisão de uma Proibição Conforme a Fonte

Mesmo carecendo de maior utilidade, a fiança seguiu firme no coração teórico da liberdade provisória. Basta notar que sempre que o legislador pretendia demonstrar severidade para com uma infração penal, recorria ao expediente da vedação da fiança, pensando-a ainda como uma intensa restrição processual. Assim, pulularam normas que tornavam inafiançáveis práticas tão díspares como os crimes contra o sistema financeiro e as apostas em corridas de cavalo feitas fora do hipódromo [19]. Por outro lado, sempre que o legislador quis demonstrar um rigor atenuado, o fez com a dispensa da fiança, como se observa na Lei 9.099 de 1995 e no art. 301 do Código de Trânsito Brasileiro.

Com a promulgação da atual Constituição da República em 1988, reforçou-se a dualidade do modelo nacional de liberdade provisória, construída a partir da exigência ou não de fiança, como se lê em seu art. 5º, LXVI. No entanto, no mesmo artigo 5º da Constituição foram criadas novas situações de inafiançabilidade, que foram entendidas, principalmente no Supremo Tribunal Federal, como formas repristinadas de prisão preventiva obrigatória para garantia da ordem pública. A mesma Constituição de 1988 que tão claramente prestigiava a presunção de inocência previa também uma certa culpabilidade adiantada para os acusados de delitos catalogados como inafiançáveis [20], retomando o sentido primeiro do instituto – que incrivelmente passou a conviver ao lado da vacuidade criada pela Lei 6.416 de 1977.

Passaram a existir então duas distintas classes de crimes inafiançáveis. Na primeira delas, os crimes inafiançáveis por disposição do Código de Processo Penal, não se obstava a concessão de liberdade provisória sem fiança, em conformidade com as alterações introduzidas na legislação ordinária em 1977. Já na segunda categoria, a dos crimes inafiançáveis previstos na Constituição da República, resgatava-se o significado primitivo de prisão inarredável. Criou-se no Brasil a situação estapafúrdia na qual um instituto não era igual a ele mesmo, exigindo que se buscassem distintas fundamentações para o que era em essência a mesma coisa, ou seja, a inacessibilidade da fiança, a depender da fonte da proibição.

Os crimes constitucionalmente inafiançáveis, estando ainda embebidos na noção de uma periculosidade ínsita a certas condutas, sequer deixaram margem para discussões sobre um possível temperamento do comando, dado os repetidos pronunciamentos do Supremo Tribunal Federal no sentido de que para estes casos era inviável a obtenção de liberdade sem fiança, como se lê em voto do Ministro Sepúlveda Pertence frequentemente citado naquela Corte:

A proibição legal de concessão da liberdade provisória seria inócua, se a afastasse o juízo da não ocorrência, no caso concreto, dos motivos autorizadores da prisão preventiva (...) De outro lado, a proibição da liberdade provisória, nessa hipótese, deriva logicamente do preceito constitucional que impõe a inafiançabilidade nas referidas infrações penais (...) seria ilógico que, vedada pelo art. 5º, LXII, da Constituição, a liberdade provisória mediante fiança nos crimes hediondos, fosse ela admissível nos casos legais de liberdade provisória sem fiança [21].

O maior rigor para com os crimes constitucionalmente inafiançáveis poderia justificar-se talvez como um efeito de sua categorização como direitos fundamentais coletivos, que devem inspirar o intérprete à maximização de sua efetividade. Não deve causar espanto a colocação de comandos de severidade penal como direitos fundamentais, visto que, com a superação do paradigma do Estado liberal, este deixou de ser visto como um mero ceifador de liberdades para começar a assumir compromissos para com os seus cidadãos, exigíveis na forma de atitudes positivas. A razão de fundo destes direitos fundamentais penalizadores aparece explicada em seguida, tomando como exemplo a inafiançabilidade do racismo:

E por que não há qualquer paradoxo na localização topológica desta disposição constitucional? Justamente porque o Direito Penal não mais pode ser visto sob uma obsoleta compreensão que nele identifica um braço armado do Estado cujo único efeito consiste na redução do espaço de liberdade individual dos cidadãos. Há muito agrega-se-lhe outra função (...) A proteção normativa ao bem jurídico visa ao pleno desfrute – ou a um maior ou mais intenso desfrute – do direito fundamental ameaçado pela ação que se lhe faça lesiva. Significa dizer: quando o desfrute do direito fundamental – no caso, o de não ser discriminado por razão de raça – encontra-se sensivelmente ameaçado por uma ação que se lhe faça contrária, a redução do espaço de liberdade individual (do agressor) é ponderada (compensada) pelo alargamento do espaço de liberdade individual do titular do direito fundamental potencialmente atingido (o agredido) [22].

A questão era que ao admitir-se liberdade provisória sem fiança para acusados de crimes gravíssimos, estaria sendo esvaziado o instituto constitucional da inafiançabilidade, conforme célebre lição da doutrina [23]. Seria a transmutação de um direito fundamental coletivo em um direito fundamental individual do incriminado: em vez de um comando de rigidez, um benefício processual penal, eis que um acusado de um crime de maior potencial ofensivo não apenas poderia obter liberdade provisória, como poderia fazê-lo submetendo-se a menor grau de vinculação. Já dos acusados de outras infrações poder-se-ia reclamar caução, trasladando o desequilíbrio processual dos crimes inafiançáveis por disposição do Código àqueles instituídos por cláusula pétrea do texto constitucional.

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Sobre o autor
Claudio Watrin de Araujo

Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela PUC-SP, Pós-Graduando em Direito Penal e Processual Penal pela Faculdade Integrada Brasil-Amazônia-PA

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARAUJO, Claudio Watrin. A mutação constitucional da inafiançabilidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3025, 13 out. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20217. Acesso em: 5 nov. 2024.

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