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A mutação constitucional da inafiançabilidade

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13/10/2011 às 13:02
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6. A Balbúrdia Legal e Jurisprudencial

É claro que o prospecto de admitir no sistema uma prisão ex lege jamais alcançou o consenso. Evidente que, se a prisão cautelar não pode ser a regra geral em um Estado Democrático de Direito, devendo constituir-se em exceção, a inafiançabilidade seria então a exceção da exceção, já que transformava a prisão em regra para certos delitos. A insurreição doutrinária e jurisprudencial contra a inafiançabilidade como obstáculo à obtenção de liberdade provisória em qualquer de suas modalidades foi proposta em variados termos, dentre os quais podem se destacar os seguintes:

1. Fiança e liberdade provisória não se confundem, sendo que apenas a primeira estaria proibida pela Constituição para alguns crimes [24].

2. Quisesse o Poder Constituinte Originário proibir a concessão de liberdade provisória, poderia tê-lo feito nesses termos, pois não precisava mencionar somente a impossibilidade de prestar fiança [25].

3. A proibição total de liberdade provisória não isenta o juiz de demonstrar o periculum libertatis no caso concreto, uma vez que é relativa a presunção de periculosidade contida na inafiançabilidade [26].

4. A impossibilidade de se conceder liberdade provisória a certos réus, derivada da inafiançabilidade, é inconstitucional, eis que retira do juiz a capacidade de aferir a necessidade da prisão em cada caso, ferindo de morte a presunção de inocência. A prisão ex lege extrairia assim da prisão em flagrante uma certidão de culpa antecipada, advindo de uma capitulação legal precária uma custódia que amiúde se delonga por muitos meses [27].

5. A inafiançabilidade avigora indevidamente a prisão em flagrante, quando esta, por ser medida pendente de homologação judicial, mostra-se inapta a deter alguém por mais tempo que o necessário para a jurisdicionalização da custódia [28].

6. A Lei da Tortura e a Lei 11.464 de 2007, que alterou a Lei dos Crimes Hediondos, proibiram expressamente apenas a fiança, olvidando-se de fazer o mesmo com a liberdade provisória sem fiança. Assim, esta ainda seria permitida, diante de inexistente interdição legal [29].

7. A inafiançabilidade acaba dando mais importância à prisão em flagrante do que à sentença penal condenatória, pois se na primeira o juiz não poderia decidir pela soltura do acusado, na segunda poderia permitir-lhe o apelo em liberdade [30].

A despeito do volume de críticas à prisão obrigatória, quase todas bem fundamentadas, o Supremo Tribunal Federal reafirmou por diversas vezes a inafiançabilidade nos termos construídos pelo legislador de 1941, desconsiderando muitas das argumentações expostas acima e ratificando a fiança como ponto principal da liberdade provisória, chegando a ponto de confundi-las, como se vê na seguinte decisão:

Se o crime é inafiançável e preso o acusado em flagrante, o instituto da liberdade provisória não tem como operar. O inciso II do art. 2º da Lei nº 8.072/90, quando impedia a ‘fiança e a liberdade provisória’, de certa forma incidia em redundância vernacular, dado que, sob o prisma constitucional (inciso XLIII do art. 5º da CF/88), tal ressalva era desnecessária. Redundância que foi reparada pelo artigo 1º da Lei nº 11.464/2007, ao retirar o excesso verbal e manter, tão-somente, a vedação do instituto da fiança [31].

A posição majoritária daquela Corte não significou, contudo, a admissão sem maiores indagações pelos tribunais brasileiros da prisão automática. Ao lado de decisões como a acima transcrita, surgiram tantas outras que concediam liberdade provisória sem fiança para crimes constitucionalmente inafiançáveis, reforçando a contradição da Lei 6.416 de 1977, mas ao mesmo tempo buscando reconhecer a extensão dos princípios da presunção de inocência e da excepcionalidade das prisões cautelares. O próprio Supremo Tribunal Federal passou a conceder esporadicamente liberdade provisória para crimes hediondos e afins, como se lê adiante:

A atual jurisprudência desta Corte admite a concessão de liberdade provisória em crimes hediondos ou equiparados, em hipóteses nas quais estejam ausentes os fundamentos previstos no artigo 312 do Código de Processo Penal. Precedentes desta Corte. (...) É legítima a concessão de liberdade provisória ao paciente, em face da ausência de fundamentação idônea para a sua prisão [32].

Evidentemente, essa dicotomia gerou insegurança jurídica e deixou em zona de incerteza um instituto de caráter constitucional. Um grande passo para por termo à controvérsia foi dado pelo Supremo Tribunal Federal, quando as disposições do Estatuto do Desarmamento que vedavam totalmente a liberdade provisória para alguns dos crimes ali previstos foram declaradas inconstitucionais:

Insusceptibilidade de liberdade provisória quanto aos delitos elencados nos arts. 16, 17 e 18. Inconstitucionalidade reconhecida, visto que o texto magno não autoriza a prisão ex lege, em face dos princípios da presunção de inocência e da obrigatoriedade de fundamentação dos mandados de prisão pela autoridade judiciária competente [33].

Por se tratar de ação de controle de constitucionalidade concentrado, julgada pelo Plenário da Corte, era de se esperar que sua ratio decidendi se irradiaria pelos demais pronunciamentos do Guardião da Constituição e dos demais tribunais. Não foi o que ocorreu. O Supremo Tribunal Federal continuou a admitir sem maiores problemas a validade da prisão obrigatória como corolário da inafiançabilidade, como se vê na seguinte decisão abaixo transcrita:

I - A vedação à liberdade provisória para crimes hediondos e assemelhados que provém da própria Constituição, a qual prevê a sua inafiançabilidade (art. 5º, XLIII e XLIV). II - Inconstitucional seria a legislação ordinária que viesse a conceder liberdade provisória a delitos com relação aos quais a Carta Magna veda a concessão de fiança [34].

Em vista disso, a celeuma continuou, e o legislador pouco colaborou para resolvê-la. Isso porque a matéria foi tratada com relativa atecnia em vários diplomas legais editados, que ora obstam a liberdade provisória com ou sem fiança (Lei do Crime Organizado), ora vedam fiança e liberdade provisória tratando-as como institutos não correlacionados (Lei de Drogas), ora mencionam apenas a fiança (Lei da Tortura), e ora nada proíbem quando poderiam fazê-lo (a exemplo da Lei do Racismo, cujos crimes ali dispostos são constitucionalmente inafiançáveis).

Some-se a essa situação de desordem uma particular deficiência para com determinadas hipóteses de inafiançabilidade constitucional, dadas as dúvidas que persistem quanto à tipicidade do crime de terrorismo e da configuração de grupo de extermínio, para fins de classificação de homicídio como crime hediondo. São outros pecados legislativos, agora por omissão, que pouco contribuíram para aclarar a vexata quaestio da proibição de fiança.


7. Mais Problemas Jurisprudenciais: A Prisão Obrigatória e a Motivação das Decisões Judiciais

Se as críticas à inafiançabilidade que tomam por base a presunção de inocência são sempre circundadas com alguma facilidade, já que a mesma Lei Maior que consagrou esta presunção também consagrou as prisões cautelares [35], por outro lado existe um problema de mais difícil resolução dentro da sistemática constitucional: a convivência da inafiançabilidade como forma velada de prisão ex lege com a garantia das motivações das decisões judiciais, previstas no próprio art. 5º, LXI da Constituição da República, bem como no seu art. 93, IX. Afinal, se a razão para manter-se alguém preso cautelarmente já está embutida na própria obstrução legal à fiança, que fundamentação deveria se exigir do magistrado? A questão é tormentosa, pois parece implicar que uma norma constitucional (a inafiançabilidade de certos delitos) acaba por excluir a incidência de outras (arts. 5º, LXI, e 93, IX), mostrando-se desafiadora ao princípio da unidade da Constituição.

Recorrendo novamente à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, tampouco é possível chegar a uma solução para o problema. A Corte já decidiu, sem maiores pudores, que a negação de liberdade provisória para crimes inafiançáveis por disposição constitucional prescinde de motivação judicial:

A proibição de liberdade provisória, nos casos de crimes hediondos e equiparados, decorre da própria inafiançabilidade imposta pela Constituição da República à legislação ordinária (...) Irrelevância da existência, ou não, de fundamentação cautelar para a prisão em flagrante por crimes hediondos ou equiparados (...) Licitude da decisão proferida com fundamento no art. 5º, inc. XLIII, da Constituição da República, e no art. 44 da Lei n. 11.343/06, que a jurisprudência deste Supremo Tribunal considera suficiente para impedir a concessão de liberdade provisória. [36].

Por outro lado, ali também já se externou entendimento frontalmente contrário, findando por demandar do juiz a confirmação em sua decisão da existência de uma periculosidade que, ao menos em teoria, segundo a ótica do próprio Tribunal, já estaria contida na inafiançabilidade:

Liberdade provisória indeferida com fundamento na vedação contida no art. 44 da Lei n. 11.343/06, sem indicação de situação fática vinculada a qualquer das hipóteses do artigo 312 do Código de Processo Penal. Entendimento respaldado na inafiançabilidade do crime de tráfico de entorpecentes, estabelecida no artigo 5º, inciso XLIII da Constituição do Brasil. Afronta escancarada aos princípios da presunção de inocência, do devido processo legal e da dignidade da pessoa humana. (...) A regra consagrada no ordenamento jurídico brasileiro é a liberdade; a prisão, a exceção. A regra cede a ela em situações marcadas pela demonstração cabal da necessidade da segregação ante tempus. Impõe-se porém ao Juiz o dever de explicitar as razões pelas quais alguém deva ser preso ou mantido preso cautelarmente [37].

Obviamente, a complicada harmonização da garantia da motivação das decisões com a prisão instituída pela inafiançabilidade aumentou ainda mais a insegurança jurídica que já reinava nos tribunais. Era imperativa uma reinterpretação da proibição de fiança que pudesse enfim pacificar a questão e conciliar os divergentes interesses impressos no texto constitucional.

8. Ressurreição da Fiança e Mutação Constitucional da Inafiançabilidade

Como visto, o problema da inafiançabilidade na ordem constitucional vigente não se cinge a simplificações de ambos lados, pois fundamentos respeitosos foram delineados por doutrina e jurisprudência para defender tanto a existência de uma periculosidade presumida, já exaustivamente explicada, como para tachar como arbitrário e inoportuno o regresso à prisão automática.

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Muitos dos problemas causados pela inafiançabilidade existiram, em realidade, pela dualidade simplista das medidas cautelares do processo penal brasileiro, consistentes na alternação entre os pólos da decretação da prisão e da concessão de liberdade mediante simples termo de comparecimento, dada a baixa eficácia do instituto da fiança após a entrada em vigor da Lei 6.416 de 1977. Entretanto, as leis não apresentam existência descolada das necessidades e dos valores da sociedade. A deficiente sistematização das medidas cautelares tinha sua ruína anunciada em face da necessidade de constante aperfeiçoamento do processo penal, na sua perene procura pela conservação da eficiência na repressão à criminalidade com o respeito aos direitos fundamentais dos réus.

Foi esse o pano de fundo da transformação da liberdade provisória, com e sem fiança, e, por conseqüência, da inafiançabilidade, levada a cabo com a edição da Lei 12.403 de 2011. Este texto normativo trouxe consigo uma nítida mutação constitucional, o conhecido fenômeno pelo qual uma disposição constitucional passa a exibir um novo sentido, mesmo sem ter sofrido qualquer alteração textual por meio dos procedimentos formais de emenda ou revisão.

A mutação constitucional decorre da própria dinamicidade da ordem jurídica, das mudanças de valores que brotam do meio social e das exigências temporais impostas ao Direito. Ela reconhece que o texto constitucional não pode ser estático nem ignorar a realidade, nem tampouco as inovações que nela se apresentem, reconferindo legitimidade ao próprio ordenamento por meio de novas interpretações. É um processo que pode se verificar até mesmo via inovação legislativa, sempre que a um instituto constitucional possam se atribuir múltiplos sentidos, realizando o legislador uma escolha política por um deles, desde que permaneça dentro dos valores albergados pela própria sistemática constitucional [38].

Tem-se que a Lei 12.403 deu nova vida à fiança, transformando-a numa importante medida cautelar a ser imposta aos acusados, podendo ser prestada em qualquer momento autonomamente, desvinculando-se do âmbito da liberdade pós-flagrância que lhe era anteriormente reservada. O mais importante, porém, é que a fiança deixou de ser o centro gravitacional da liberdade provisória, sendo apenas uma dentre várias outras medidas cautelares que podem ser impostas ao réu no curso do processo. Foram reavaliadas as necessidades do processo penal, com a criação destas novas medidas que tendem a evitar o uso desmedido do encarceramento provisório, facultando-se inclusive a possibilidade do uso de novas tecnologias, como no caso da monitoração eletrônica.

E, com a volta da fiança, reaparece a inafiançabilidade a cobrar novo significado. Tendo a garantia real abandonado o núcleo da estrutura da liberdade provisória, não há mais possibilidade de se argumentar que a simples inafiançabilidade transubstancia proibição total de obtenção de liberdade provisória. Aqui reside a mutação constitucional pela qual passou o instituto, visto que agora ele já não abarca mais a polêmica presunção de nocividade social, restringindo-se apenas à impossibilidade de acesso a uma medida cautelar em particular, sem que se recuse a imposição das demais. O texto constitucional quanto a negação de fiança permaneceu idêntico, mas toda a carga de significado entregue a ela pela ordem infraconstitucional foi modificada, outorgando-lhe novas funções dentro do sistema processual penal.

Reforçando a noção de que a inafiançabilidade não implica mais em suposições abstratas de periculosidade, a nova legislação optou por extirpar do Código algumas hipóteses que se mostravam demasiadamente esdrúxulas aos valores contemporâneos. É o caso da revogação da proibição de fiança a vadios e mendigos e a crimes que provoquem comoção pública. A mendicância sequer existe mais como infração penal, enquanto que o clamor público já vinha sendo desde há muito repudiado pelos tribunais superiores como fundamento para as prisões cautelares. Deixa de existir então qualquer aviso de que certas pessoas, por seu próprio modo de ser, possam ser daninhas à sociedade, afastando o processo penal de uma comunhão profana com direito penal do autor, ao mesmo tempo em que se retira do direito positivo qualquer fator que pudesse servir para autenticar uma prisão preventiva tomando por base apenas a comoção social.

Conciliando os direitos dos acusados com as necessidades de assegurar o bom fluir do processo, tampouco há de subsistir o temor de que um suspeito de cometer crimes de elevada lesividade possa conseguir liberdade provisória com baixo grau de vinculação, bastando que o juiz lhe imponha outros ônus significativos. A sugestão já fora aventada na doutrina há muito tempo [39], mas era de todo impossível sua implementação ante a inexistência de previsão legal de outras medidas cautelares.

Vem a ser esta a renovada importância da inafiançabilidade, na medida em que é possível agora suprimir a desigualdade reinante no processo penal brasileiro desde a feitura da Lei 6.416 de 1977 – até porque o art. 282, II, do Código, em sua nova redação, requer a paridade entre as medidas cautelares impostas e a gravidade da atividade delinquente. Preserva-se assim o status da inafiançabilidade como instituto componente do rol de direitos fundamentais da República, atribuindo-lhe importante função de balizamento para a concessão de medidas cautelares no processo penal. Por serem agora inafiançáveis somente os crimes mencionados na Constituição e outros de similar gravidade previstos em legislação extravagante (com exceção de casos patológicos, como a já citada aposta em corrida de cavalos feita fora de hipódromos), o instituto opera com rigor, exigindo do juiz a imposição de medidas cautelares que efetivamente vinculem o réu ao processo, quando não seja o caso de decretação da prisão.

Vale assinalar ainda que a Lei Federal 12.403 também se propôs a terminar com a prática costumeira no Poder Judiciário de homologação de prisões em flagrantes sempre que estas estivessem formalmente perfeitas. Agora o suspeito ou obterá a liberdade provisória, ou seguirá encarcerado a novo título, o de prisão preventiva, que, como tal, deverá ser fundamentada. Esta é mais uma faceta da mutação constitucional sofrida pela inafiançabilidade, que já não pode implicar uma escusa de motivação para a prisão provisória. Sendo assim, a prisão em flagrante já não permite que se mantenha preso alguém por mais tempo do que o necessário para a apreciação judicial da custódia. Torna-se de fato prisão de temporalidade minúscula, tendo sua extensão sido diminuída a tal ponto que já não pode comportar qualquer juízo de periculum libertatis.

Deste modo, apesar da inafiançabilidade seguir inalterada em termos literais no corpo do texto constitucional, ela agora se afasta definitivamente do teor ideológico que inspirou o texto original do Código de Processo Penal, ao mesmo tempo em que segue não facultando a obtenção de liberdade provisória sem gravames aos acusados. Com o processo de mutação constitucional, permite-se ao instituto buscar uma melhor convivência com a presunção de inocência e com a garantia da fundamentação das decisões judiciais, ao mesmo tempo em que se pode resolver a desigualdade de tratamento dispensado aos crimes de maior potencial ofensivo e às outras infrações penais.

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Sobre o autor
Claudio Watrin de Araujo

Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela PUC-SP, Pós-Graduando em Direito Penal e Processual Penal pela Faculdade Integrada Brasil-Amazônia-PA

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARAUJO, Claudio Watrin. A mutação constitucional da inafiançabilidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3025, 13 out. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20217. Acesso em: 28 mar. 2024.

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