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O dano moral social decorrente da ineficiência do serviço de saúde pública

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4.2 As novas espécies de dano

Os movimentos sociais das últimas décadas foram marcados pela luta por novos direitos nos mais diversos setores: saúde, segurança, educação, meio ambiente, qualidade de vida, habitação, transportes, etc., pois as configurações processuais tradicionais se mostraram incapazes de abranger e dar resposta satisfatória aos novos litígios que acabavam excluídos da proteção estatal (BESSA, 2007).

Esses direitos, conhecidos como direitos de terceira geração, são produto “da reflexão sobre temas referentes ao desenvolvimento, à paz, ao meio ambiente, à comunicação e ao patrimônio comum da comunidade” (BONAVIDES, 2003, p.523).

A dimensão do dano a um determinado bem jurídico tem relevância não só pelo fato de integrar o rol dos pressupostos que dão direito à reparação, mas também pela ampliação que tem produzido na seara da responsabilidade civil. Esta, na moderna concepção doutrinária não tem mais como núcleo a noção de ato ilícito, mas sim a de dano injusto.

Neste sentido, a jurisprudência brasileira tem se deparado com pelo menos três novas modalidades de dano: dano decorrente da perda de uma chance, dano moral coletivo e dano social. Este último, de grande relevância para esta pesquisa, será tratado a seguir.


4.3 Do dano social

O dano social guarda estreita relação com o dano coletivo, mas muito embora alguns considerem as expressões como sinônimas, uma boa parte da doutrina faz relevantes distinções entre as espécies.

O dano coletivo está adstrito aos direitos coletivos stricto sensu, que pertencem a grupo determinado de pessoas, enquanto o dano social se refere à lesão aos direitos difusos, concernentes à sociedade.

É uma modalidade de dano que prioriza a lesão globalmente produzida, pois, “o ressarcimento dos danos individuais, ainda que coletivamente defendido, não atinge a esfera da necessária reparação do ilícito cometido na perspectiva social” (CAPPELLETTI apud SOUTO MAIOR, 2007).

Um dos motivos que fundamentam o dano moral coletivo, e também o social, é a sua desvinculação à dor psíquica, pois além desta, outras espécies de abalo no conjunto de valores de uma coletividade também clamam por reparação.

O conceito de dano social propriamente dito foi construído com maestria pelo professor Antônio Junqueira de Azevedo, que o conceituou como “lesões à sociedade, no seu nível de vida, tanto por rebaixamento de seu patrimônio moral – principalmente a respeito da segurança – quanto por diminuição na qualidade de vida(AZEVEDO in FILOMENO et al, 2004, p. 376).

A idéia de dano social, como categoria jurídica, além de ser aplicada às condutas socialmente reprováveis, surge também com a finalidade de indenizar situações até então não indenizáveis e, neste contexto, a responsabilidade civil assume o papel de proteção à coletividade e à sua dignidade como valores fundamentais.


4.3.2 Do dano moral social

A socialização do Direito, fruto das profundas transformações sociais tem produzido reflexos na teoria do dano moral, dando origem a novas subespécies, quais sejam: dano moral coletivo e dano moral social.

Muito embora os conceitos de dano moral coletivo e dano moral social guardem estreita relação entre si, os institutos não se confundem, pois o primeiro atinge um grupo de indivíduos (sujeitos determinados ou determináveis) atingidos por um mesmo fato comum, ao passo que, o segundo, atinge a sociedade com um todo (sujeitos indeterminados).

O dano moral social não é formado pela soma de interesses individuais, mas por um dano autônomo que afeta a comunidade como um todo. Neste sentido, os danos são suportados por todo o corpo social, e não por cada pessoa, individualmente.

A ofensa aos direitos difusos causam lesão aos valores morais do corpo social e dá origem ao dano moral social. Muito embora a coletividade não possua personalidade jurídica própria, por outro lado, possui valores morais que merecem proteção jurídica do Estado.

Quanto à ampliação do conceito de abalo moral, leciona Ramos (1998, p. 83):

[...] vê-se que a coletividade é passível de ser indenizada pelo abalo moral, o qual, por sua vez, não necessita ser a dor subjetiva ou estado anímico negativo, que caracterizariam o dano moral na pessoa física, podendo ser o desprestígio do serviço público, do nome social, a boa imagem de nossas leis ou mesmo o desconforto da moral pública, que existe no meio social. (grifo nosso)

Esse entendimento é reforçado por Costa (2009, p. 35), ao traçar um paralelo entre o dano moral social e o dano moral à pessoa jurídica:

[...] se a concepção de dano extrapatrimonial estivesse apenas e tão somente vinculada à ideia subjetiva de dor e sofrimento, não se poderia aceitar a causação dessa modalidade de dano à pessoa jurídica (violação objetiva do direito ao nome, consideração e reputação social), ‘quando já é consagrada a sua admissão em diversos ordenamentos jurídicos estrangeiros, bem como hoje, de forma pacífica, no Direito brasileiro’. [...] o dano moral ou extrapatrimonial consubstancia-se na violação do direito da dignidade humana, vertente individual ou coletiva.

Muito embora o dano moral cause, na maioria das vezes, sofrimento à(s) vítima(s), este pode não ocorrer, conforme ensina Azevedo (in FILOMENO et al, 2004, p. 371):

Em geral, esse dano moral será um dano de sofrimento, daí se falar em “pretium doloris”, mas algumas vezes haverá também o dano moral que foge a essa caracterização, porque se trata de dano – e basta pensar nas pessoas jurídicas, ou nas pessoas físicas que não tem condições de discernimento, ou ainda nos nascituros – que representa algum prejuízo não avaliável pecuniariamente de modo exato.

O caráter indivisível dos valores protegidos pelos direitos difusos é um dos principais fundamentos do dano moral social, pois, conforme ensina Moreira (apud BITTAR FILHO, 2005):

Em muitos casos, o interesse em jogo, comum a uma pluralidade indeterminada (e praticamente indeterminável) de pessoas, não comporta decomposição num feixe de interesses individuais que se justapusessem como entidades singulares, embora análogas. Há, por assim dizer, uma comunhão indivisível de que participam todos os possíveis interessados, sem que se possa discernir, sequer idealmente, onde acaba a ‘quota’ de um e onde começa a de outro. Por isso mesmo, instaura-se entre os destinos dos interessados tão firme união, que a satisfação de um só implica de modo necessário a satisfação de todos; e, reciprocamente, a lesão de um só constitui, ipso facto, lesão da inteira coletividade.

Verifica-se, portanto, a existência de relevante tendência jurídica que busca a real efetivação dos direitos sociais, bem como coibir sua violação, porquanto, parte-se da seguinte premissa: as ações preventivas no plano coletivo podem promover, também, a prevenção de danos individuais.


4.3.3 O dano moral social como um novo enfoque para a responsabilidade civil

Até a metade do século XX a segurança (relativa à vida e integridade física e psíquica), era considerada como cláusula contratual. No entanto, não é este o entendimento que predomina atualmente diante da autonomia da obrigação de segurança, que não se encontra mais vinculada à existência de contrato.

A segurança, conforme Azevedo, constitui um valor para qualquer sociedade. Quanto mais segurança, melhor a sociedade, quanto menos, pior (AZEVEDO, in FILOMENO et al, 2004, p. 375).

Assim, “o dano social, aliado à idéia de responsabilidade pressuposta, representa um novo e importante dimensionamento que deve ser dado à teoria geral da responsabilidade civil” (SILVA, 2008).

O Poder Judiciário, na prerrogativa de efetivar os dispositivos constitucionais, deve fazer valer o direito à saúde e designar ao mesmo todo seu caráter de direito fundamental, dando ao direito sanitário seu referido valor dentro da Lei Maior de 1988. Para tanto, a caracterização do dano moral social decorrente da ineficiência da prestação do serviço de saúde pública seria cabível para coibir as condutas socialmente reprováveis.


5 O DANO MORAL SOCIAL DECORRENTE DA INEFICIÊNCIA DO SERVIÇO DE SAÚDE PÚBLICA

Os níveis de saúde da população expressam a organização social e econômica de um país. No Brasil, a saúde só foi garantida constitucionalmente como direito universal de cidadania e dever do Estado a partir de 1988.

Segundo o Artigo 196 da Constituição Federal, esse direito é garantido mediante políticas sociais e econômicas que visam à redução do risco de doenças e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

Todos os indivíduos têm direito ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para promoção, proteção e recuperação da saúde, bem como à redução do risco de doença e outros agravos. No entanto, não é isto o que ocorre no dia-a-dia daqueles que buscam atendimento nos locais destinados a fornecê-lo.

A ineficiência na prestação dos serviços de saúde afronta o princípio da dignidade da pessoa humana, pois “a saúde tem características holísticas e não estáticas, assim, o risco está sempre onipresente” (HUMENHUK, 2004).


5.1 A saúde pública no Brasil: retrato do caos

A palavra “saúde”, ao contrário do entendimento de muitos, não significa apenas ausência de doença, mas, carrega consigo um conceito multidimensional que engloba as condições – objetivas e subjetivas – que proporcionam uma vida digna à população. Para que esse direito se efetive é necessário que o Estado implemente políticas públicas capazes de garantir o que prevê a lei.

A saúde integra o rol dos bens intangíveis mais preciosos do ser humano, consubstanciada em característica indissociável do direito à vida, razão pela qual deve receber a tutela protetiva estatal. Portanto, “a atenção à saúde constitui um direito de todo cidadão e um dever do Estado, devendo estar plenamente integrada às políticas públicas governamentais” (ORDACGY, 2008).

O Brasil é um país marcado por profundas desigualdades sociais e, neste sentido, promover a isonomia e garantir a aplicabilidade dos direitos fundamentais constitui-se em desafio a ser assumido pelas políticas públicas.

No entanto, a situação em que se encontra a saúde pública no Brasil é uma realidade chocante. Num país que possui uma das maiores cargas tributárias do mundo, a sociedade padece em razão da falta de recursos e do precário atendimento prestado à população.

Segundo Gomes (2009):

Tais prestações de serviços, por sua ineficiência, falta de recursos e até mesmo de boa vontade dos agentes públicos, ocasionam diversos tipos de transtornos aos usuários, dentre os quais se pode mencionar a demora nos atendimentos, falta de medicamentos, inexistência de leitos para internamentos ambulatoriais e principalmente em unidades de terapia intensiva. As consequências, como não poderiam ser diferentes, são drásticas. O cidadão sofre com doenças que muitas vezes poderiam ser sanadas mediante a utilização dos medicamentos adequados; as filas em postos de atendimentos e em hospitais públicos são absurdas, sendo que não há mais nenhuma surpresa em ouvir ou ler um noticiário que informa sobre a morte de mais um paciente em fila, na espera de atendimento médico; da mesma forma, muitos sofrem demasiada e desnecessariamente à espera de um leito hospitalar; outros morrem aguardando a vaga no leito de uma unidade de tratamento intensivo.

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Em relação à triste realidade da saúde pública brasileira, destaca Schwartz (apud HUMENHUK, 2004):

Mesmo que o direito à saúde necessite dos meios materiais necessários para sua efetivação, a Constituição Federal, através de inúmeros artigos que tratam da matéria, determina que os Poderes Públicos têm responsabilidade na área da saúde, e que nenhum dos entes federados componentes da República Brasileira pode eximir-se de tal obrigação. (...) A saúde não pode estar condicionada a discursos vagos, promessas políticas e ideologias cambaleantes. A condição primordial para o desenvolvimento de qualquer regime democrático é a vida do ser humano, que não pode ser colocada em segundo plano por distorções ideológicas que têm como grande objetivo disfarçar os reais e egoísticos interesses implícitos em ditas falas.

Os dispositivos constitucionais são explícitos ao estabelecer os parâmetros para a efetivação do direito à saúde, no entanto, não vem sendo observados e respeitados pelo Estado que, ao não atuar de forma efetiva, faz com que a saúde seja mais um dos problemas enfrentados pela população (HUMENHUK, 2004).

Surge então, neste contexto, uma importante questão: a responsabilidade do Estado pelo caos da saúde pública e pelos danos causados aos cidadãos, em razão da ineficiência na prestação dos serviços de saúde, que são de suma importância para efetivar os direitos previstos e garantidos pela Constituição Federal, especialmente, a dignidade da pessoa humana.


5.2 O princípio da dignidade da pessoa humana e as condutas socialmente reprováveis

A dignidade humana é um valor inerente ao indivíduo como pessoa, pois possui caráter supremo, de valia moral, ética e espiritual intangível.

Acerca deste princípio, afirma Otero:

    [...] dotado de uma natureza sagrada e de direitos inalienáveis, afirma-se como valor irrenunciável e cimeiro de todo o modelo constitucional, servindo de fundamento do próprio sistema jurídico: O Homem e a sua dignidade são a razão de ser da sociedade, do Estado e do Direito (OTERO, apud MELO, 2007).

    Para Piovesan “o ser humano é um ser essencialmente moral, dotado de unicidade existencial e dignidade como um valor intrínseco à condição humana”. E, acerca deste valor, a mesma autora acrescenta que o mesmo é “intrínseco à condição humana e não um valor extrínseco, a depender da minha condição social, econômica, religiosa, nacional ou qualquer outro critério (PIOVESAN, 2009).

    O artigo 22, da Declaração Universal dos direitos do homem prevê o seguinte:

    Artigo XXII. Todo o homem, como membro da sociedade, tem direito à segurança social e à realização, pelo esforço nacional, pela cooperação internacional e de acordo com a organização e recursos de cada Estado, dos direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento de sua personalidade (FRANÇA, 1948).

    Segundo Canezin, “o Direito exerce um papel decisivo na concretização da dignidade da pessoa humana, principalmente quando assegurada a nível constitucional, como em nosso país e, por estar vinculada à condição humana de cada indivíduo”. No entanto, o fato do ser humano viver em sociedade “não se pode descartar a dimensão social desta mesma dignidade” (CANEZIN, 2007).

    Quanto à relação entre a dignidade humana e o dano moral, Direito e Cavalieri Filho acrescentam que:

    A Constituição deu ao dano moral uma nova feição e maior dimensão, porque a dignidade humana nada mais é do que a base de todos os valores morais, a essência de todos os direitos personalíssimos. O direito à honra, à imagem, ao nome, à intimidade, à privacidade ou a qualquer outro direito da personalidade, todos estão englobados no direito à dignidade, verdadeiro fundamento e essência de cada preceito constitucional relativo aos direitos da pessoa humana (DIREITO; CAVALIERI FILHO, 2004, p. 101).

    Desse modo, “a responsabilidade civil passa a ter um sentido instrumental, de tutela e de garantia dos direitos fundamentais, e um propósito ético, de solidariedade e de justiça social” (PINTO, 2008, p.24).

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    Sobre a autora
    Karline dos Santos Nascimento Paié

    Funcionária pública. Licenciada em Pedagogia. Bacharel em Direito. Pós-graduanda em Direito Civil e Processual Civil. Bacharelanda em Administração Pública.

    Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

    PAIÉ, Karline Santos Nascimento. O dano moral social decorrente da ineficiência do serviço de saúde pública . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3066, 23 nov. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20485. Acesso em: 26 abr. 2024.

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