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Abuso de autoridade na apreensão de veículo antes do devido processo legal administrativo

01/03/2012 às 11:33
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O flagrante de indivíduo que dirige sem habilitação não conta com previsão legal para imediata medida administrativa de retenção ou remoção do veículo. O CTB prevê a pena de apreensão, que, em tese, só poderia ser imposta ao fim de processo administrativo.

Prática muito comum nas fiscalizações de trânsito é a decisão prematura dos agentes públicos (policial civil, militar ou rodoviário – estadual ou federal -, guarda ou AFT municipais) no sentido de ser removido o veículo automotor até o depósito quando da constatação de suposta infração de trânsito.

Há acirrada discussão jurídica sobre a referida situação, porquanto o Código de Trânsito Brasileiro foi omisso quanto à forma de se proceder em determinadas hipóteses e, em outras, o texto normativo apresenta discrepâncias ao estabelecer medidas distintas para situações semelhantes, causando confusão ao dar azo à aplicação sem uniformidade por parte dos agentes e autoridades de trânsito.

Antes da explanação, com a devida venia, deve-se esclarecer a respeito da definição de cada um dos institutos previstos no CTB que tratam da possibilidade do cidadão ficar desprovido, por tempo determinado, da posse ou de um dos atributos oriundos do direito real de propriedade (direito de usar), relativos a um veículo automotor.

 O primeiro deles, instituído no inciso IV, do artigo 256, no capítulo XVI, trata-se de uma penalidade denominada “apreensão de veículo[i]”, cuja disciplina é dada pelos quatro parágrafos do artigo 262[ii], destinando-se a parte final do caput desta última norma, para reservar a Resolução do CONTRAN, registrada sob o número 53, do dia 21 de maio do ano de 1998, a regulamentação dos critérios, a fim de se realizar a apreensão e o recolhimento dos veículos aos depósitos oficiais.

Já o segundo instituto jurídico recebeu da nova codificação, em capítulo próprio, a natureza de medida administrativa[iii], servindo, de acordo com o parágrafo 2º, do artigo 269[iv], como complemento para a aplicação de outras penalidades. Neste caso, subdividem-se em duas espécies de medidas, ou seja, a “retenção” e a “remoção” de veículos, estabelecidas, respectivamente, nos incisos I e II do artigo 269.

A retenção do veículo está disciplinada nos cinco incisos do artigo 270, enquanto a remoção tem por sedimentada a sua matéria no artigo 271 e seu parágrafo único[v].

A autoridade de trânsito ou seus agentes retêm o veículo, mantendo-o sob os seus respectivos poderes no local onde ocorreu a inspeção de trânsito, até que um determinado dever legal seja cumprido pelo infrator. Implementada a obrigação, é novamente restituída a posse ao interessado.

Quanto à remoção, resta imposto pelo agente de trânsito ou pela autoridade de trânsito o deslocamento do veículo do local onde se deu a abordagem fiscalizatória para o depósito oficial ou local determinado que possa oferecer segurança.

Em síntese, podemos dizer que a apreensão do veículo é uma sanção, prevista abstratamente no preceito secundário da regra legal que descreve, taxativamente, a conduta selecionada como infração de trânsito, sendo que a partir da realização, in concreto, da mencionada hipótese normativa, seguindo-se o regular processo onde sejam observados os postulados constitucionais e os detalhes técnicos impostos pela legislação de trânsito quanto ao procedimento administrativo, poderá ser aplicada ao acusado a pena em comento, correspondente à restrição, por tempo certo, de sua posse ou direito de uso do veículo utilizado no cometimento da infração de trânsito (artigo 256, inciso IV do CTB).

Também em termos simplistas, cabe-nos afirmar que as medidas administrativas servem para acudir a autoridade de trânsito e os seus agentes quando ocorrer uma situação extraordinária, cuja urgência para se restabelecer a normalidade, evitando-se um acidente, requer uma providência de rápida solução, como o caso da remoção de um veículo imobilizado em meio à rodovia por falta de combustível[vi]. Têm como pressupostos o periculum in mora (o risco de decisão tardia ou perigo em razão da demora) e o fumus boni iuris (a fumaça do bom direito - significa que a decisão em caráter de urgência a ser tomada aparenta ser a melhor alternativa para o direito em razão da verdade constatada prima facie).

Por força da legalidade, os sobreditos institutos jurídicos somente serão aplicados quando existir previsão legal. No sistema adotado pelo Código de Trânsito Brasileiro, tanto a penalidade de apreensão quanto as medidas administrativas de retenção e remoção de veículos, quando corolários da infração, são estabelecidas na segunda parte das normas comtempladas desde o artigo 162 ao artigo 255. Se não há previsão dos mencionados institutos nas normas específicas, é que não cabe nem remoção ou retenção, nem tampouco apreensão do veículo. Pode também ocorrer de se prever a aplicação de penalidade sem medida administrativa, derivando desse hiato o problema constatado no mundo real.

Passemos agora a enfrentar o tema que resulta em debates doutrinários. Na prática, existe uma situação em que o agente de trânsito e a autoridade de trânsito se veem em saias justas, vez que devem proceder de forma a preservar seguro o trânsito, mas não encontram respaldo legal para tanto. Refiro-me ao flagrante estado presenciado pelos citados servidores públicos quando surpreendem um indivíduo conduzindo veículo automotor nas circunstâncias estabelecidas pelo artigo 162, inciso I do CTB[vii], ou seja, dirigindo sem possuir documento de habilitação. A dificuldade se encontra no fato de a norma prever a aplicação da penalidade de apreensão, mas nada mencionar quanto à retenção ou remoção que seriam apropriadas para solucionar a questão, com desfecho coerente para a ocorrência.

Para facilitar a compreensão colocaremos a hipótese em planos práticos: Se o policial militar aborda uma pessoa conduzindo veículo automotor sem ser habilitado, deve, de acordo com a sistemática da lei, autuá-lo por ter cometido uma infração de trânsito. Essa autuação corresponde ao início de um procedimento constituído de diversas fases em que, após ser amplamente conferido ao acusado o direito de se defender, podem ser aplicadas pela Autoridade de Trânsito competente, distintas e cumulativas penalidades, dentre elas a apreensão do veículo que, consoante a resolução CONTRAN nº 53/98, poderá variar de um até trinta dias. Mas essa apreensão, conforme salientado, trata-se de uma pena, e como tal somente pode ser imposta ao final do processo, com a decisão definitiva que não comporte mais nenhum tipo de recurso na instância administrativa. O que a circunstância fática exige é uma medida imediata, a fim de que o condutor infrator seja impedido momentaneamente de continuar dirigindo, o que, caso não se opere, corresponderá à decisão do agente em permitir que ele continue a expor a perigo a segurança no trânsito, eis que, presumidamente, desconhece as normas técnicas para desenvolver tal atividade. Todavia, conforme já dito não há neste caso previsão das medidas administrativas, criando-se, então, o impasse.

Dois são os bens jurídicos em confronto: de um lado da balança temos o princípio da legalidade, postulado de ordem constitucional estabelecido no inciso II do artigo 5º da Constituição da República Federativa do Brasil[viii], que impõe o dever ao administrador de só fazer o que a lei manda sob pena de incorrer em abuso de autoridade, mormente quando ao administrado é permitido se fazer tudo o que a lei não proíbe; do outro lado, temos a segurança no trânsito, que se trata de um preceito previsto no parágrafo 2º do artigo 1º do CTB[ix], visando, em última análise, preservar a vida e a incolumidade humana, os quais, de idêntica maneira, encontram assento no Diploma Constitucional[x].

Buscam-se na aplicação analógica, instituída no artigo 4º da Lei de Introdução as Normas do Direito Brasileiro, o suprimento necessário para preencher a lacuna do Código, invocando-se, para tanto, o seu próprio artigo 270, parágrafo 4º, que se refere à medida administrativa de se reter o veículo até que se apresente um condutor habilitado para lhe ser entregue ou, caso este não se faça presente, deve o agente determinar a remoção do veículo até o depósito. Crítica a esta alternativa: O artigo 4º da Lei de Introdução as Normas do Direito Brasileiro, é norma dirigida ao “juiz”, e não a Autoridade de Trânsito, muito menos ao agente de trânsito quando do seu labor operacional. E, se mesmo ao juiz não é dado o poder de legislar inovando a ordem jurídica, o que se dirá do absurdo de tentar o servidor público a fazê-lo.

Outros utilizam o seguinte argumento para tentar resolver a questão: se há previsão de se apreender o veículo, não há porque ficar discutindo acerca das medidas administrativas. Apreende-se o veículo na forma do artigo 262 e seus parágrafos, evitando-se, com isso, qualquer infortúnio posterior. Crítica: A apreensão do veículo é penalidade e deverá ser imposta depois do devido processo legal administrativo. A aplicação da sanção de forma sumária corresponde a verdadeiro arbítrio por parte do aplicador do direito.

Por fim, uma terceira corrente se posiciona, de forma radical, no sentido de que, se não há previsão de medidas administrativas, não podem ser aplicadas, restando impossibilitada, também, a antecipação da penalidade de apreensão como se remoção fosse. Assim, não restaria alternativa ao agente e a autoridade de trânsito, senão a de entregar novamente o veículo ao condutor não habilitado.


Conclusão:

Realmente, não só quanto a esta infração de trânsito, mas com relação a outras também (artigo 162, incisos I, II e III, artigos 163 e 164 e 230, inciso XX do CTB), parece ter esquecido o legislador de disciplinar as medidas administrativas possíveis, objetivando salvaguardar a segurança no trânsito. Contudo, mesmo que soe em tom injurídico, entendo mais cabível a primeira posição, que sugere a aplicação da analogia. Não contesto os argumentos em contrário quanto à impossibilidade técnica do uso do suprimento analógico e acho que efetivamente deveria ser disciplinada a norma com mais atenção por de lege ferenda, mas permitir que o condutor inabilitado continue dirigindo depois de ser flagrado pelo agente de trânsito cometendo a infração em epígrafe é ainda maior absurdo, deixando a mercê da imprudência a vida de outros seres humanos.

No que concerne à segunda posição, cujo parecer assevera ser possível aplicar a apreensão como se fosse medida administrativa, não há dúvidas de que fere o devido processo legal administrativo, porquanto a penalidade somente pode ser imposta depois de esgotadas todas as formas de defesa do acusado, exalando, o pensamento contrário, uma fragrância de arbitrariedade que chega ao limiar do abuso de autoridade.


Notas

[i] CAPÍTULO XVIDAS PENALIDADES

Art. 256. A autoridade de trânsito, na esfera das competências estabelecidas neste Código e dentro de sua circunscrição, deverá aplicar, às infrações nele previstas, as seguintes penalidades:

I - advertência por escrito;

II - multa;

III - suspensão do direito de dirigir;

IV - apreensão do veículo (grifo nosso);

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V - cassação da Carteira Nacional de Habilitação;

VI - cassação da Permissão para Dirigir;

VII - freqüência obrigatória em curso de reciclagem.

[ii] Art. 262. O veículo apreendido em decorrência de penalidade aplicada será recolhido ao depósito e nele permanecerá sob custódia e responsabilidade do órgão ou entidade apreendedora, com ônus para o seu proprietário, pelo prazo de até trinta dias, conforme critério a ser estabelecido pelo CONTRAN.

§ 1º No caso de infração em que seja aplicável a penalidade de apreensão do veículo, o agente de trânsito deverá, desde logo, adotar a medida administrativa de recolhimento do Certificado de Licenciamento Anual.

§ 2º A restituição dos veículos apreendidos só ocorrerá mediante o prévio pagamento das multas impostas, taxas e despesas com remoção e estada, além de outros encargos previstos na legislação específica.

§ 3º A retirada dos veículos apreendidos é condicionada, ainda, ao reparo de qualquer componente ou equipamento obrigatório que não esteja em perfeito estado de funcionamento.

§ 4º Se o reparo referido no parágrafo anterior demandar providência que não possa ser tomada no depósito, a autoridade responsável pela apreensão liberará o veículo para reparo, mediante autorização, assinando prazo para a sua reapresentação e vistoria.

[iii] CAPÍTULO XVIIDAS MEDIDAS ADMINISTRATIVAS

Art. 269. A autoridade de trânsito ou seus agentes, na esfera das competências estabelecidas neste Código e dentro de sua circunscrição, deverá adotar as seguintes medidas administrativas:

I - retenção do veículo (grifo nosso);

II - remoção do veículo (grifo nosso);

III - recolhimento da Carteira Nacional de Habilitação;

IV - recolhimento da Permissão para Dirigir;

V - recolhimento do Certificado de Registro;

VI - recolhimento do Certificado de Licenciamento Anual;

VII - (VETADO)

VIII - transbordo do excesso de carga;

IX - realização de teste de dosagem de alcoolemia ou perícia de substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica;

X - recolhimento de animais que se encontrem soltos nas vias e na faixa de domínio das vias de circulação, restituindo-os aos seus proprietários, após o pagamento de multas e encargos devidos.

XI - realização de exames de aptidão física, mental, de legislação, de prática de primeiros socorros e de direção veicular.

[iv] Artigo 269, § 2º: As medidas administrativas previstas neste artigo não elidem a aplicação das penalidades impostas por infrações estabelecidas neste Código, possuindo caráter complementar a estas.

[v] Art. 270. O veículo poderá ser retido nos casos expressos neste Código.

§ 1º Quando a irregularidade puder ser sanada no local da infração, o veículo será liberado tão logo seja regularizada a situação.

§ 2º Não sendo possível sanar a falha no local da infração, o veículo poderá ser retirado por condutor regularmente habilitado, mediante recolhimento do Certificado de Licenciamento Anual, contra recibo, assinalando-se ao condutor prazo para sua regularização, para o que se considerará, desde logo, notificado.

§ 3º O Certificado de Licenciamento Anual será devolvido ao condutor no órgão ou entidade aplicadores das medidas administrativas, tão logo o veículo seja apresentado à autoridade devidamente regularizado.

§ 4º Não se apresentando condutor habilitado no local da infração, o veículo será recolhido ao depósito, aplicando-se neste caso o disposto nos parágrafos do art. 262.

§ 5º A critério do agente, não se dará a retenção imediata, quando se tratar de veículo de transporte coletivo transportando passageiros ou veículo transportando produto perigoso ou perecível, desde que ofereça condições de segurança para circulação em via pública.

Art. 271. O veículo será removido, nos casos previstos neste Código, para o depósito fixado pelo órgão ou entidade competente, com circunscrição sobre a via.

Parágrafo único. A restituição dos veículos removidos só ocorrerá mediante o pagamento das multas, taxas e despesas com remoção e estada, além de outros encargos previstos na legislação específica.

[vi] Art. 180. Ter seu veículo imobilizado na via por falta de combustível:

Infração - média;

Penalidade - multa;

Medida administrativa - remoção do veículo (grifo nosso).

[vii] Art. 162. Dirigir veículo:

I - sem possuir Carteira Nacional de Habilitação ou Permissão para Dirigir:

Infração - gravíssima;

Penalidade - multa (três vezes) e apreensão do veículo;

[viii] Artigo 5º, inciso II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;

[ix]Artigo 1º, § 2º do CTB: O trânsito, em condições seguras, é um direito de todos e dever dos órgãos e entidades componentes do Sistema Nacional de Trânsito, a estes cabendo, no âmbito das respectivas competências, adotar as medidas destinadas a assegurar esse direito.

[x] Art. 5º: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

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Sobre o autor
Valdenir João Gulli

Advogado com vasta experiência em Direito de Trânsito. Coordenador da equipe jurídica e administrador do escritório de consultoria jurídica on line multasbr.com.br, especializado em Direito de Trânsito, com sede em Catanduva (SP).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GULLI, Valdenir João. Abuso de autoridade na apreensão de veículo antes do devido processo legal administrativo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3165, 1 mar. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21189. Acesso em: 22 nov. 2024.

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