No início do ano de 2012, na cidade de São José dos Campos, em São Paulo, foi expedida ordem judicial de reintegração de posse para desocupação de um terreno no bairro do Pinheirinho, pertencente a uma massa falida e ocupado por milhares de pessoas. Após toda uma artimanha jurídica e policial-estatal, a ordem foi cumprida, ocasionando o caos humanitário à população local, o que inclusive gerou repudia de órgãos nacionais e internacionais de proteção e tutela dos direitos humanos. Como vítimas deste caos, estima-se que mais de cinco mil pessoas perderam seus lares, bens e histórias.
Inúmeros juristas, sociólogos, jornalistas filósofos e políticos se manifestaram sobre o tema que até o momento de publicação deste artigo ainda causa repulsa e repercussão na mídia e nos meios sociais, políticos e jurídicos do país.
Mas de todas as manifestações publicadas pela mídia, salta aos olhos o artigo publicado no Jornal “Folha de São Paulo datado de 17.02.2012”, subscrito pelo Senado Eduardo Suplicy e pelo Deputado Federal Ivan Valente, que relatam em breves palavras o desenvolvimento fático e jurídico do caso e lá pelas tantas questionam e provocam as decisões judiciais que ensejaram as atrocidades[1].
Pois bem. A tragédia social talvez sirva de proposta reflexiva para a Ciência do Direito, ao menos para que o estudante e jurista possa relembrar as lições preliminares e que se chamado a participar de um processo decisório relevante como este em debate, não opte por uma decisão equivocada e que comprometa a Ordem Social, Jurídica, Democrática e Republicana. Assim, passemos à análise de alguns pontos interessantes.
Por primeiro, cumpre lembrar que dentre as diversas concepções de direito, didaticamente, opta-se por aquela em que “poder-se-á dizer que o direito positivo é o conjunto de normas estabelecidas pelo poder político que se impõe e regula a vida social de um dado povo em determinada época.” E é certo que: “é mediante normas que o direito pretende obter o equilíbrio social, impedindo a desordem e os delitos, procurando proteger a saúde e a moral pública, resguardando os direitos e a liberdade das pessoas.”[2]
Da concepção apresentada tem-se que “direito é um poder” de tentar este equilíbrio social e que serve para impedir a desordem, ou seja, de manter um controle social. Razão o é que o direito objetivo, como complexo de normas jurídicas que regem o comportamento humano prevê um conjunto de sanções para o seu descumprimento, sendo o direito subjetivo aquele que recebe a autorização normativa para fazer ou não algo conforme os interesses e bens envolvidos.[3]
Não é crivo ou mesmo esperado que o interprete ou aplicador da norma jurídica possuindo “o poder” não apenas de dizer o direito como de aplicá-lo e assim manter a ordem e o Estado de Direito utilize-o de forma subversiva e destoante aplicando uma parte restritiva da norma em descompasso com as demais regras e princípios sistêmicos. Critica-se pois “visão obtusa e centralista” do operador do direito, que não consegue entender que a norma não é válida por si só se não aplicada no contexto sistêmico e social, conforme preleciona a teoria “pós-positivista” ou “neoconstitucionalista”.
Por exemplo, e prosseguindo, o direito objetivo ao reger e tutelar o direito de propriedade o fez e com razão para resguardar a estrutura Estatal e garantir o “progresso” da sociedade. E, com esta vertente, tutelou no âmbito civil, penal, comercial, trabalhista e administrativo o instituto da propriedade, inclusive determinando que o Estado o proteja e zele, possibilitando ao cidadão o direito de garanti-lo contra atrocidades de aberrações à sua liberdade individual e de exercer com plenitude o “seu poder de propriedade” (ainda mais a propriedade imobiliária). Porém, esta regra não é máxima e nunca poderá ser aplicada de forma isolada de um contexto.
Continuando.
De igual sorte que a propriedade configura garantia e direito fundamental (“caput” do art. 5º da Constituição Federal) foi elevado ao mesmo patamar – de garantia e direito fundamental – o direito social da moradia (conforme diversos artigos da Constituição, p.ex. art. 6º e 182), e assim, determinado pelo Legislador Constituinte Originário que “a propriedade deverá atender sua função social” (e não o inverso!), ou seja, que a propriedade imobiliária deve antes guardar sintonia com sua função social e permitir o amplo exercício da moradia e do desenvolvimento humano e societário.
Se a ciência do Direito deve – como imperativo categórico – observar dentre as diversas regras a que está adstrito, a propriedade e sua função social, e de igual sorte, as demais cominações e anseios Constitucionais quanto ao tema, não há que se cogitar de uma norma de direito processual, civil ou penal, sobreviver e se destacar de forma isolada e preponderante como no caso dos institutos da “propriedade” (arts. 1228 e seguintes do Código Civil além daqueles que regem “as ações possessórias” arts. 920 e seguintes do Código de Processo Civil), sob pena de invalidade do direito objetivo e ineficácia do direito subjetivo, o que gera como efeito direito o “caos social”.
E mais. O imperativo constitucional e por sua vez político-nacional é tão exigente e rígido quanto à questão social, que o próprio Código Civil de 2002 ao ser elaborado determinou que o direito privado em seu espelho maior (o Contrato) observe a função social (art. 421 do Código Civil). Ou seja, o direito subjetivo ao ser exercido deve compatibilizar-se com o direito objetivo em sua vertente social e não apenas na esfera privada-individual, como pretende a corrente positivista e privatista do Direito.
Insiste-se que a política e a norma nacional obrigam constantemente e de forma repetitiva que a “propriedade” observe sua “função social” inclusive ao instituir sistemicamente o instituto da desapropriação. Ora, o referido instituto nada mais é do que a possibilidade que o Estado tem de utilizar o Direito (público) para atender os princípios e objetivos fundamentais da República e que norteiam a sociedade, como por exemplo: o da dignidade humana, da promoção do bem de todos, da erradicação da pobreza e da marginalização (art.1° e 3° da Constituição). A propósito este é o discurso reinante para a política da “reforma agrária” (urbana e rural) no país (e para não ficar nas entrelinhas: e o por que o Estado não empregou no caso concreto do Pinheirinho a desapropriação?).
No Estado de Direito, mais precisamente, no caso do Pinheirinho, prevaleceu a “desordem sistêmica e incongruente do Direito”, no qual o título de propriedade prevaleceu de forma isolada sobre os demais ditames, princípios e objetivos, demonstrando que houve falência prévia dos três Poderes da República ao não conseguirem preventivamente equacionar conflitos de interesses: individuais (do proprietário = massa falida) versus coletivos e sociais (da sociedade brasileira e da Carta de 1988). Além de que a equalização esperada deveria ser prévia e ocorrer no curso do processo judicial, afinal, uma das funções do processo é a pacificação do conflito, o bem de todos e não o inverso.
Vale salientar que ocorreu ausência total de sensibilidade jurídica e humanista de todos aqueles que lidaram com o problema, pois, o que se esperava era que o Julgador encontrasse uma forma de equacionar o problema, como por exemplo tentar por meio da negociação com os demais poderes, com o titular do título de propriedade e com a população local uma saída socialmente aceitável, ou então, que se abstivesse de determinar a reintegração até que a “massa falida” conseguisse espaço e condições dignas para alocar todas aquelas famílias.
A propósito, quanto ao título de propriedade (possivelmente uma escritura ou mesmo uma certidão do registro de imóveis) atribuindo à massa falida de uma empresa especulativa no mercado imobiliário o domínio do espaço, recorda-se que o valor intrínseco do documento não pode ser absoluto e suficiente por si, pois, distorções históricas podem ter ocorrido, bem como a utilização do mesmo para fins escusos, incumbindo novamente ao interprete e aplicador da norma a investigação e busca da verdade. Eis então mais uma função para o processo judicial a busca da verdade formal e não apenas mera suposição da aludida “verdade formal”.
Recorda-se para ilustrar a ausência de valor supremo de um documento, mesmo que público a saga do personagem principal do livro “O cemitério de praga”, de Umberto Eco, publicado pela editora Record, no qual o capitão Simonini ganhava a vida como um excelente tabelião falsário e que corroborava os atos e atrocidades de diversos governos Europeus do início do século passado. Ora, com isso resta claro que o teor de um documento não pode ser absoluto já que a forma é questionável (e ninguém melhor que o mestre da Semiótica – Umberto Eco – para nos lembrar de tal fato) e o que dizer do conteúdo![4]
Retomando. Se a forma não pode ser absoluta como proposto – do direito de propriedade “cru e independente” -, então se deve observar criticamente o contexto fático e inserir tais fatos no todo sistêmico constitucional, social e humanitário. E para este exercício hermenêutico, em tese, o operador do direito – Juiz, Promotor, Advogado, Professor e outros – deveria estar atento e realizá-lo sem titubear. Mas não foi o que ocorreu no caso do Pinheirinho.
A interpretação do inciso XXII do art. 5º da Constituição Federal, que trata da propriedade que é imediatamente seguido pelo aclaramento de que sua aplicação e alcance “SEMPRE” deverá se ater ao “valor social da propriedade” (inciso XXIII do mesmo dispositivo constitucional), não foi equalizado de forma ampla e sistêmica, acarretando em uma chaga social, jurídica e política séria e preocupante, e por que não, ocasionando a invalidade de todo o processo decisório de reintegração e por sua vez, das demais decisões tomadas no processo?
Se a propriedade deve observar seu valor social e este sim (propriedade com valor social) com valor de direito fundamental e humano consagrado pela norma jurídica interna, mesmo que sirva à uma liberdade privada, como seria possível compatibilizar os fatos ocorridos no Bairro do Pinheirinho e aqueles determinados pelo Poder Judiciário como fundamentos para a ordem de “reintegração de posse”?
Pois bem, antes de adentrar numa proposta de resposta ao questionamento, relevante relembrar e corroborar que no ato de interpretar a norma o jurista e interprete deve analisar o sistema jurídico que a mesma está inserida que no caso, corresponde a um contexto sistema positivista-dogmático-social, operando a integração e harmonização das normas e institutos, e nunca (e o termo foi empregado propositalmente) de forma isolada, pois se assim agir não conseguirá buscar o sentido e alcance das normas e das expressões, logo, não permitirá com que o Direito alcance sua plenitude que como visto é o “equilíbrio social e a ordem” dentre outros.
A ausência de uma interpretação sistêmica da norma jurídica (sobretudo na ciência jurídica que optou pelo sistema positivo-dogmático-social) gera a ineficácia do provimento jurisdicional, ainda mais quando confrontado com os princípios norteadores do Estado e do próprio sistema que valorizam o Ser Humano e consideram como elemento central os “valores sociais”.
Ora, é certo que pelo exposto escancara-se que a sociedade atual enfrenta criticamente o problema de proteger os direitos do homem, pois, é certo que mecanismos jurídicos e até políticos para fundamentá-los e justificá-los existem e até sobram, como os diversos artigos de lei, princípios e regras aqui trabalhadas e mencionadas. Em suma, o problema atual não é ter instrumentos legais para aplicar, mas sim aplicá-los de forma adequada e coesa.[5]
Diante destas colocações, a resposta para a questão: de como a ordem foi dada e a “reintegração de posse” realizada a todo custo (político, social, econômico e jurídico), é fácil de ser alcançada e vislumbrada. Qual seja, a de que o Poder Privado (fundamentado pelo Direito) é e sempre o foi na modernidade meio de afirmar o processo de alienação imposto pelas minorias em detrimento aos direitos da maioria. Repete-se que a ordem de reintegração de posse que teve como norte a propriedade sem ater-se à sua função social, serviu exclusivamente aos interesses de uma parte no processo – a massa falida de uma empresa – e não aos anseios constitucionais do povo brasileiro e especialmente, dos brasileiros do Pinheirinho.
Para exemplificar e potencializar a questão: poderia o interprete da norma constitucional ler o texto do art. 170 da carta de 1988 e ali encontrar subsídios (in)válidos para sua decisão, e logo concluir que todo o sistema infraconstitucional e que o próprio Estado deve sempre estar alinhado “à atividade econômica”? É lógico que não, e o inverso corresponde a um enorme equivoco! Já que o capítulo constitucional a que nos referimos (Título VII, Capítulo I) prescinde de análise sistêmica e ampla com a parte introdutória do Texto de 1988 (arts. 1º a 4º) e ainda, o interprete necessita observar de forma atenta o caso em si e as particularidades e circunstâncias, sob pena de invalidade da regra de subsunção (do fato à norma).
Ou seja, quer pela função social da propriedade como direito fundamental, quer como fruto da atividade econômica o interprete e aplicador da norma está constrito ao Sistema Jurídico (Social) e “nunca” a um de seus elementos particulares.
Estas inclusive foram as lições de Francesco Ferrara, na obra “como aplicar e interpretar as leis”[6], na qual sabiamente destacou que o jurista deverá considerar os efeitos das normas na totalidade e não a norma “per si”, sendo esta “aplicação consciente do direito, ou a técnica da decisão”. E continua, ao afirmar que: “ao julgar, portanto, o juiz utiliza, e deve utilizar, conhecimentos extrajurídicos que constituem elementos ou pressupostos do raciocínio. (...) tais são os ‘princípios de experiência’, definições ou juízos hipotéticos de conteúdo geral, ganhos por observação de casos particulares, mas elevados a princípios autônomos com validade para o futuro”.
Logo, talvez seja o caso de retornar e revisitar o conceito de Direito entendido pelo positivismo-dogmático (como aqui já mencionado), e reviver algo como a proposta de Miguel Reale em sua teoria tridimensional do Direito, para o qual “o Direito é o composto de fato, valor e norma”[7] (neste mesmo diapasão a corrente neoconstitucionalista ou pós-positivista). Nessa concepção não se pode esperar que o Jurista e aplicador da norma possua apenas uma formação técnica-jurídica (para compreender a faceta da norma), mas também e em paralelo, que o seja um sociólogo (para compreender o fato) e um filósofo (para compreender o fato).
Em idêntico sentido Rizzatto Nunes observa que “é preciso resgatar a magnificência da dignidade humana, que é o fundamento último que dá sustentação ao Direito, através da abertura das mentes que se dedicam ao estudo do Direito, o que passa, necessariamente, por uma avaliação sincera dos métodos da Ciência do Direito, dos institutos jurídicos existentes, das condições sociais reais nas quais o Direito está incluindo, sobre as quais ele influi e das quais recebe influência. Enfim, é preciso pensar abertamente na função social do Direito e no papel social exercido pelos que o operam.”[8]
Historicamente, e não tão longe, o incidente social do bairro do Pinheirinho em São José dos Campos, São Paulo remete à desocupação catastrófica de Canudos, na Bahia, com uso inclusive de forças do exército em mais de quatro incursões, e após o massacre de quase 25 mil pessoas, e como meio de tentar enterrar a história nacional, se construiu uma barragem nas proximidades o que alagou as terras do espaço defendido por Antonio Conselheiro e seus confrades (como narrou Euclides da Cunha na obra “Os Sertões”). Será que teremos algo do gênero no Pinheirinho? Quem sabe um condomínio de casas de alto padrão no espaço?
Deste fato épico nacional, concluí-se que é lamentável e triste que decorridos mais de 100 anos o Estado Brasileiro por intermédio dos seus três Poderes ainda autorize e convalide por meio do Direito as atrocidades aqui descritas em que sempre se fez valer a “liberdade individual” que se confundiu com o “direito à propriedade privada”, já que o direito individual de dispor do seu patrimônio é o sinônimo equivocado de uma sociedade livre, igualitária e segura (juridicamente) sem espaço para um “direito social e coletivo”. O Estado errou e continua a errar.
A sociedade anseia por mudanças, o “Social Constitucional” como mínimo vital precisa passar a valer ou “pare o bonde que quero descer!”
Anexo I
Jornal “Folha de São Paulo, 24/01/2012 - 17h47, http://folha.com/no1038919
Especialista da ONU vê 'violação drástica' de direitos no Pinheirinho
DA BBC BRASIL
O processo de remoção dos moradores da comunidade Pinheirinho, em São José dos Campos (SP), é uma "violação drástica" do princípio básico da moradia adequada, na avaliação de um alto especialista da ONU para o tema.
Em entrevista à BBC Brasil, o arquiteto brasileiro Cláudio Acioly, coordenador do programa das Nações Unidas para o Direito à Habitação e chefe de política habitacional da ONU-Habitat, criticou a condução da operação e afirmou que, segundo a experiência internacional, remoções forçadas "criam mais problemas (que soluções) para a sociedade".
A intervenção policial no Pinheirinho começou na manhã do último domingo.
A polícia usou gás lacrimogêneo e balas de borracha para dispersar protestos dos moradores.
Durante os confrontos, carros foram incendiados e pelo menos três pessoas ficaram feridas.
O especialista questionou a atuação com base no Estatuto das Cidades e na Constituição, que veem "função social" e protegem propriedades menores de 250 m² que permaneçam ocupadas pacificamente por um período de cinco anos ou mais.
Tanto a Secretaria de Segurança Pública quanto o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo discordam da avaliação de Acioly (veja abaixo).
Leia a seguir trechos da entrevista com Acioly, que também já atuou como consultor do Banco Mundial e do PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento).
BBC Brasil - Na sua experiência internacional, quais são os efeitos das remoções forçadas nas cidades onde ocorrem?
Cláudio Acioly - O que a gente vê em outras cidades é que essas remoções criam mais problemas para sociedade e principalmente para as famílias diretamente afetadas. Nessas áreas vivem pessoas que trabalham, pagam aluguel, têm uma renda e vivem aí decentemente, por pura falta de opção. Para onde vai essa população depois do desalojo? Vai alugar casa mais caro em outro lugar, muitas vezes em situação de superpopulação, morando e vivendo uns em cima dos outros. Ou então vai promover ocupações irregulares em outros locais: embaixo da ponte, na rua, de maneira fragmentada. Recentemente encontramos uma figura morando em uma árvore no centro da cidade na Tanzânia.
O senhor crê que houve cuidados no caso do Pinheirinho para evitar isso? Por exemplo, só agora o governo começou a cadastrar as famílias afetadas.
Houve uma série de erros graves no processo. Eu já trabalhei no Brasil com urbanização de favelas e programas de reassentamento em Brasília. A gente tinha como ponto de partida o cadastramento das famílias, a numeração das casas, a documentação dos moradores, havia um banco de dados. E havia uma data a partir da qual quem chegasse não teria direito a uma moradia alternativa. Brasília sempre foi notória pela maneira de realizar seus desalojos e reassentamentos, porque era uma cidade planejada.
Qual é a maneira correta de se fazer remoções?
Eu queria deixar bem claro que a ONU não promove nem defende essas políticas. Nós reconhecemos a realização do direito à habitação adequada, tal qual definem os instrumentos internacionais. Mas se remoção for necessária e inevitável, é preciso seguir o devido processo: informar e comunicar suficiente e antecipadamente a população afetada; promover o envolvimento da comunidade; prover compensação e uma alternativa de habitação que elimine os prejuízos e o impacto físico, econômico e psicológico nas populações; e acompanhar as populações para que as pessoas não sejam colocadas em situação de pobreza por causa da realocação.
O senhor acredita que algum desses pontos foi respeitado no caso brasileiro?
Você não pode simplesmente botar o trator e desrespeitar os direitos adquiridos a partir do princípio da função social da residência. A ocupação do Pinheirinho começou em 2004. Isso significa que cinco anos já se passaram e muitas pessoas que estão ali já estão estabelecidas. Pelo que tenho lido, está havendo uma violação clara do direito à habitação, que inclui o direito de não ser desalojado forçosamente. Está havendo uma violação drástica do princípio de habitação adequada.
Além disso, a ação de desalojo ocorreu no domingo --você não faz uma ação dessas no domingo, tem de haver uma participação da comunidade. Mesmo sendo uma decisão da Justiça, ela tem de ser aplicada de forma humana. O Estado tem um dever para com essas pessoas e deve reconhecer que possuem direitos como cidadãos brasileiros. Pelo que eu vi isto não está acontecendo.
Em abril de 2011, a relatora independente da ONU para o direito à habitação adequada, Raquel Rolnik, criticou formalmente o governo brasileiro pelas evidências que recolheu de "um padrão de falta de transparência, consulta, diálogo, negociação justa e participação das comunidades afetadas" nos processos de remoção relacionados às obras para a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016.
Há organizações, como a Anistia Internacional, e a própria relatora independente da ONU alertando sobre desalojos no Brasil. Nós não temos como dizer que não pode haver reassentamentos. Mas não pode haver uma remoção forçada, em desrespeito ao princípio de que as pessoas não devem sair dali em situação pior que a que estavam. Se a autoridade olímpica acha que é melhor para a cidade e para a população que haja determinadas realocações, e há uma negociação, uma consulta e um entendimento, é uma situação em que todos ganham. Se não, temos um problema sério.
Se os governos agem em desacordo com esses direitos, há maneira de fazê-los prestar contas?
A ONU não tem o poder de apontar o dedo para os governos e dizer o que e que eles têm de fazer. Quando temos um diálogo com o governo brasileiro sobre os seus programas, o que costumamos é relembrar esse princípio e os compromissos assumidos internacionalmente com eles. Além disso, a cada cinco anos os governos precisam fazer sua revisão periódica de políticas de Direitos Humanos no Conselho de Direitos Humanos da ONU, em Genebra. Agora, os países têm que prestar com a sua sociedade civil, porque eles firmaram esses convênios e tratados sobre os direitos dos seus cidadãos.
OUTRO LADO
O juiz assessor da Presidência do Tribunal de Justiça de São Paulo, Rodrigo Capez, acompanhou a reintegração de posse no Pinheirinho no domingo e na segunda-feira.
Segundo ele, apesar de muitos moradores ocuparem o terreno há mais de cinco anos, era impossível considerar judicialmente que eram proprietários por usucapião, porque a empresa reivindicou a posse do local continuamente desde o início da ocupação.
"A juíza Márcia Loureiro estava cumprindo o que a lei determina, que é que o proprietário tem o direito de reaver seu imóvel. Ela não pode, a despeito de que existe um problema social, deixar de cumprir a lei. A resolução do problema social é um encargo do poder Executivo e do Legistativo", disse à BBC Brasil.
Capez afirmou ainda que a operação policial foi planejada com antecedência e que não avisar aos moradores a data exata da reintegração era parte da estratégia para reduzir a resistência. "Foi exatamente a surpresa da operação que minimizou o risco de mortos e de feridos", disse.
De acordo com ele, estava previsto que os moradores fossem obrigados a deixar o local e que retornariam acompanhados pela polícia para recolher seus pertences, que foram marcados pela polícia. "Agora o Executivo, em todos os níveis, tem que atender a demanda da população por abrigo", concluiu.
Procurada pela BBC Brasil, a Secretaria da Segurança Pública de São Paulo disse que o domingo foi escolhido como parte de um planejamento que buscava causar o menor dano possível aos moradores da comunidade.
A Secretaria nega ainda que tenha havido resistência ou choques com a polícia no momento da reintegração. Confrontos teriam sido registrados apenas em um momento posterior à ação.
Anexo II
Reportagem do Jornal “Folha de São Paulo” de 17.02.2012
EDUARDO MATARAZZO SUPLICY E IVAN VALENTE
TENDÊNCIAS/DEBATES
Insensatez no Pinheirinho
Os juízes conheciam o despacho que suspendia a reintegração; é importante que acompanhem as arbitrariedades e vejam as consequências de suas decisões
Testemunhas da reintegração de posse do Pinheirinho e participantes das negociações que a antecederam, vimos relatar a marcha da insensatez das autoridades, responsáveis pela violação dos direitos daquela comunidade.
Em 18 de janeiro, com os deputados Adriano Diogo e Carlos Gianazzi, recorremos ao presidente do Tribunal de Justiça, Ivan Sartori, que nos aconselhou a procurar o juiz de falências Luiz Beethoven Ferreira.
Depois de negociação com o síndico da massa falida, Jorge Uwada, e com os seus advogados, foi feito um requerimento de acordo, no qual o próprio juiz lavrou um despacho suspendendo a reintegração de posse por 15 dias.
A juíza Marcia Loureiro foi informada na hora. Ainda no TJ, o juiz Rodrigo Capez, auxiliar direto do presidente do tribunal -o mesmo que, quatro dias depois, acompanhou a ação da PM no Pinheirinho- comprometeu-se a auxiliar na solução negociada.
Suplicy conversou com a secretária nacional de Habitação, Inez Magalhães, sobre o prazo aberto para a negociação. Ela se prontificou a receber o prefeito Eduardo Cury, de São José dos Campos, para acelerar os planos sobre o possível aproveitamento da área.
O senador também falou com o governador Alckmin, que informou que, se o governo federal e a prefeitura chegassem a um entendimento, o governo estadual providenciaria a infraestrutura necessária.
No dia 19, o prefeito Cury foi à Brasília, falou sobre ciência e tecnologia, mas adiou a reunião que teria sobre o Pinheirinho com a secretária nacional de Habitação. No dia 20, visitou Suplicy para falar sobre os entendimentos.
No domingo, 22, às 6 horas da manhã, em uma operação militar preparada, cerca de 2.000 policiais, junto com a guarda municipal, invadiram a área com armas de fogo, gás lacrimogêneo, helicópteros, tratores e viaturas da Rota.
Retiraram os moradores de suas casas, forçando-os a abandonar o local. A operação da PM se expandiu para as áreas vizinhas. Avisados logo cedo, Suplicy se dirigiu ao Palácio dos Bandeirantes, onde dialogou com o governador, e Ivan Valente foi ao Pinheirinho tentar evitar as arbitrariedades que acabou presenciando.
Inúmeras pessoas foram feridas. Uma mulher levou doze pontos na boca; um homem de 70 anos foi agredido em sua cabeça e está até hoje na UTI; outro, conforme imagem de TV, foi brutalmente agredido por golpes de cassetetes; e centenas de pessoas não conseguiram se organizar para retirar os seus bens, em função da truculência da ação policial.
Por exemplo: foi completamente destruída a casa de uma cozinheira e de seu marido, um motorista de ônibus. Eles mantinham, junto à residência, um restaurante informal, com possuía geladeira, fogão, TV, computador e tudo que o casal tinha comprado ao longo de oito anos, por meio de prestações. Não restou nada.
Às 23 horas daquele mesmo dia, uma família moradora do Campo dos Alemães, contíguo ao Pinheirinho, foi vítima de abusos e violências sexuais, cuja denúncia o senador Suplicy levou ao conhecimento do governador Geraldo Alckmin, que nos garantiu apuração isenta e rigorosa de todos os fatos.
É muito importante, também, que os juízes citados acompanhem a apuração desses episódios para que conheçam melhor as consequências de suas decisões.
É fundamental que os três níveis de governo retomem os entendimentos para resolver as carências de moradia e de direitos sociais daquela comunidade. Esse assunto será objeto de audiência pública no dia 23 de fevereiro na Comissão de Direitos Humanos do Senado.
Uma sociedade democrática não pode tolerar ações como as que aconteceram no Pinheirinho. Lá, para devolver a propriedade de quem ignorava a sua função social, a dignidade de milhares foi ofendida. A solidariedade e as respostas ao que foi feito com essas famílias precisam ser exemplares.
EDUARDO MATARAZZO SUPLICY, 70, professor da FGV, é senador pelo PT-SP e copresidente de honra da Rede Mundial da Renda BásicaIVAN VALENTE, 65, engenheiro mecânico, é deputado federal pelo PSOL-SP
Notas
[1] Vide anexo II a íntegra da reportagem publicado no Jornal “Folha de São Paulo”
[2] Maria Helena Diniz, in compêndio de introdução à ciência do direito, 16ª edição, Saraiva, São Paulo, p. 245. Para André Franco Montoro, em introdução à ciência do direito, 24º edição, Revista dos Tribunais, São Paulo, 1997, a concepção de direito compreende os seguintes elementos: Norma, faculdade justo, ciência e fato social”.
[3] Maria Helena Diniz, idem, p. 246
[4] No caso em tela a suspeita existe: “União investiga origem da escritura de Pinheirinho”, Enviado por Lilian Milena, seg, 06/02/2012 - 16:09, disponível em: http://www.advivo.com.br/materia-artigo/uniao-investiga-origem-da-escritura-de-pinheirinho, acesso em 17.02.2012, às 17h
[5] Norberto Bobbio, A era dos direitos, editora Campus, Rio de Janeiro, 1992, p. 24
[6] Editora Lider, Belo Horizonte, 2003, p. 77-79, com tradução da obra “Tratatto de Diritto Civille Italiano de Roma, 1921, por Joaquim Campos de Miranda
[7] Nesse sentido: http://www.miguelreale.com.br/artigos/varestdir.htm, acesso em 16.0.2012, às 15h
[8] In manual de introdução ao estudo do direito, Saraiva, 6ª edição, São Paulo, 2005, p. 52