Os projetos de lei norte-americanos SOPA (Stop Online Piracy Act) e PIPA (Protect IP Act), que após o protesto dos gigantes da Internet acabaram tendo adiada a sua votação, não guardam qualquer semelhança com os as propostas para regulamentação dos usos e abusos da Internet que tramitam no Brasil.
Atualmente, são discutidos no Congresso Nacional dois projetos de lei concernetes ao mundo virtual: o chamado Marco Civil para o uso da Internet no Brasil (Projeto de Lei 2126/2009, em tramitação na Câmara), e a lei que cria os crimes chamados crimes virtuais (Projeto de Lei 84/1999, na Câmara). No entanto, nenhum destes projetos trata da polêmica proteção dos direitos autorais, e tampouco contém previsão para bloqueio ou censura de sites e provedores em razão do conteúdo.
1. O Marco Civil para o uso da Internet
A poposta para instituição do Marco Civil da Internet foi lançada para a primeira fase de discussão em 2009. Em 2010 foi aberta uma segunda rodada de debates para a contribuição da sociedade. Em 25 de agosto de 2011 o projeto foi finalmente encaminhado pelo Executivo ao congresso Nacional. O projeto “estabelece princípios, garantias, direitos e deveres “ para o uso da rede, sendo que o objetivo principal, como claramente transparece, é a proteção do usuário e a acessibilidade aos meios digitais.
Da leitura dos primeiros artigos, que tratam dos fundamentos, princípios e garantias, encontram-se em destaque, dentre outros, preocupações sociais como os direitos humanos, cidadania, livre iniciativa, defesa do consumidor, pluralidade e participação, ampliação e funcionalidade técnica da rede, acesso à informação e, claro, a proteção da privacidade e da liberdade de expressão/comunicação. A propriedade intelectual e os direitos autorais não foram referidos explicitamente como objeto desta lei, permanecendo matéria exclusiva da já consagrada Lei dos Direitos Autorais, a Lei 9610/98.
Após estabelecer os princípios, direitos e garantias dos usuários, a lei passa a regulamentar os seguintes assuntos: tráfego de dados, guarda de registros de conexão e de acesso a aplicações da Internet, a responsabilidade pelo conteúdo gerado por terceiros, a requisição judicial de registros e, por fim, a atuação do Poder Público para fomentar e ampliar o acessoà rede e aos meios de cultura digital.
A lei determina que os provedores mantenham os registros de conexão, em sigilo, pelo prazo de um ano (art. 11), sendo que os registros de conexão referem-se apenas à hora de início e término da conexão feita pelo usuário. Já quanto ao acesso a aplicações de Internet, definidos pela lei como “conjunto de funcionalidades que podem ser acessadas por meio de um terminal conectado à Internet” (art. 5), a lei proibe expressamente que sejam guardados estes registros.
Assim, por expressa determinação do artigo 12 os acessos feitos por um usuário não podem ser registrados e armazenados pelos administradores de redes. Apenas por determinação judicial é que tais registros poderão ser guardados, desde que o pedido se refira a fatos específicos e durante um período determinado (§ 2º). A lei não é clara a respeito de quem poderá fazer a solicitação destes registros, mas, diferentemente da ordem de interceptação telefônica, a ordem para fornecimento do histórico de acessos não depende da existência de processo ou inquérito para a investigação de crimes. O que se exige aqui são “fundados indícios da ocorrência de um ilícito”, que tanto pode ser um crime quanto um ilícito civil praticado contra um particular, que terá então legitimidade para requerer a quebra do sigilo nos termos do artigo 17.
Já os provedores das aplicações acessadas pelos usuários terão a faculdade de guardar os registros de acesso, sendo que a opção por não guardá-los não implicará qualquer tipo de responsabilidade decorrente do uso indevido das aplicações acessadas (art. 13, § 1º ).
Outo aspecto importantíssimo desta proposta é no tocante à responsabilidade civil dos provedores pelos conteúdos gerados por terceiros. A lei proíbe expressamente a responsabilização dos provedores de conexão, mas não refere os provedores de aplicações. Assim, a discussão jurisprudencial quanto aos primeiros encerraria-se com a promulgação desta lei, contudo, quanto à responsabilização dos hospedeiros de sites, administradores de redes sociais e quaisquer outros serviços eletrônicos que permitam aos particulares criarem seus espaços para manifestação, a polêmica está longe de encerrar. No Brasil, o posicionamento dos Tribunais ainda não é uniforme.
2. O projeto de lei que cria os crimes cometidos por meio eletrônico ou digital
Da mesma forma que o Marco Civil da Internet, o projeto de lei que cria os chamados crimes virtuais (Projeto de Lei 84/1999, em tramitação na Câmara dos Deputados) também traz a previsão de guarda de registros de acesso, mas pelo prazo de três anos. Nas palavras do Senador deputado Aloízo Mercadante, autor da proposta substitutiva do Senado Federal (comentários na página eletrônica do Senado), a responsabilidade pode ser assim definida:
a) Guardar por três anos os chamados "logs de acesso" que nada mais são do que a identificação da hora de conexão e desconexão à Internet. Frise-se que não há qualquer armazenamento obrigatório de informações privadas, como os sites navegados ou qualquer outra.
b) Em caso de requisição judicial, aí sim podem ser armazenadas outras informações, mas apenas com requisição judicial e apenas para os fins daquela investigação.
A guarda de informação sobre sites acessados pelo usuários é informação protegida pela Constituição Brasileira, em seu artigo 5 º, inciso XII. Em ambas as leis que tramitam no Congresso Nacional – tanto a regulamentação civil do uso da Internet quanto a lei que prevê os crimes praticados através da rede – este sigilo é expressamente referido. As informações de acesso somente poderão ser armazenadas e fornecidas pelo provedor mediante ordem judicial fundamentada.
Quanto aos crimes virtuais previstos no Projeto de Lei 84/1999, importante ressaltar que, contrariamente ao que muitos pensam, a lei não se ocupou apenas de criar novos crimes praticados pelos hackers ou crackers, mas também remodelou tipos já existentes e que hoje podem ser praticados através da Internet. Assim, crimes como dano, acesso ou inserção de dados, estelionato e falsificação podem hoje ser praticados por meios cibernéticos, razão pela qual os legisladores entenderam que seria necessário alterar a redação de antigos dispositivos.
Assim, com a promulgação desta lei serão criadas e inseridas no Código Penal as figuras do acesso não autorizado de redes e computadores, obtenção, fornecimento e divulgação indevida de dados ou informações, e a inserção de códigos maliciosos (virus). As penas variam de 1 a 4 anos, o que permite que sejam processados perante os Juizados Especiais Criminais, conforme o rito da Lei 9099/95, podendo o acusado usufruir do benefício da supensão processual (art. 89 da Lei 9099/95).
Além destes, serão alterados, para o fim de incluir os meios digitais, os seguintes crimes: dano (art. 163 do Código Penal), estelionato (art. 171, CP), atentado contra a segurança de serviço de utilidade pública (art. 265 e 266 do CP) e falsificação (art. 297 e 298, CP). Mais detalhes sobre os crimes que podem ser praticados mediante o uso da internet podem ser encontrados na publicação anterior Crimes praticados através da Internet ou nos comentários do Senador Aloizio Mercadante sobre o Projeto de Lei 89/2003.
Como se percebe, nenhum destes dispositivos se refere à violação da propriedade intelectual. Os direitos autorais continuam sendo protegidos apenas pela Lei 9610/98 (conferir artigo sobre a Propriedade Intelectual e os Direitos Autorais) e pelo art. 184 do Código Penal. Esse dispositivo criminaliza a simples violação aos direitos do autor, e, de forma específica, a reprodução, por qualquer meio ou processo, a venda, distribuição e importação, bem como o oferecimento ao público de obras ou produções sem autorização expressa.
Contudo, os crimes somente pode ser praticado por pesssoas físicas. Assim, páginas eletrônicas criadas por pessoas jurídicas somente poderão ser bloqueadas ou retiradas do ar se as pessoas físicas responsáveis forem condenadas e o juiz da ação penal determinar, dentre os efeitos da sentença, a desativação do site.
A única previsão quanto a ordens desta natureza foi o acréscimo feito ao artigo 20, inciso II, da lei dos crimes raciais, a Lei 7716/89. Este diploma já prevê, desde a promulgação do Estatuto Racial (Lei 12.228/2010), a interdição, por ordem judicial, de mensagens preconceituosas publicadas na Internet (art. 20, inciso III, da Lei 7716/89), sendo esta a única previsão deste caráter contida no nosso ordenamento. A proposta de reforma da Lei dos Direitos Autorais também prevê medida semelhante, autorizando a censura prévia dos provedores quando notificados de conteúdos ilegais, mas esta proposta ainda está em discussão no Congresso Nacional.
Além do Código Penal, as condutas praticadas também podem vir a caracterizar crime contra as marcas, patentes e desenho industrial previstos na Lei da Propriedade Industrial (Lei 9279/96), cuja ação penal deve ser iniciada pelo próprio ofendido (art. 199).
3. O acordo internacional contra a falsificação
Por fim, ainda que a polêmica sobre os meios de controle da pirataria, ensejados pela tramitação das leis norte-americanas, não tenham influenciado as propostas referentes ao uso da Internet que tramitam no Congresso, a aprovação e internalização de um acordo internacional teria eficácia no Brasil.
Na prática, sites brasileiros não podem ser atingidos por ordens de autoridades estrangeiras. Com a aprovação das leis anti-pirataria, os brasileiros somente seriam afetados quando da interdição de provedores sediados nos Estados Unidos que hospedam páginas criadas por brasileiros. Ou então através do bloqueio ao acesso dos americanos a sites estrangeiros (brasileiros) suspeitos de disponibilizar reproduções não autorizadas. E, claro, ao interditar sites americanos acessados por cidadãos do mundo inteiro.
Em razão desses limites jurisdicionais, um acordo de escala mundial para o controle da pirataria vem sendo negociado silenciosamente desde 2007. O ACTA (Anti-Counterfeiting Trade Agreement), prevê a adoção de medidas uniformes para coibir a reprodução não autorizada de obras, criações e produtos, protegendo a indústria do entretenimento, a indústria farmacêutica e a fabricação de produtos resguardados por marcas ou patentes. Até o presente, os seguintes países já aderiram: Estados Unidos, Japão, Suíça, Finlândia, França, Irlanda, Itália, Portugal, Romênia, Grécia, Austrália, Canadá, Coreia do Sul, Emirados Árabes Unidos, Jordânia, Marrocos, México, Nova Zelândia e Cingapura.
Assim, se as leis norte-americanas para o controle da pirataria não atingem os brasileiros, a a aprovação e internalização de um acordo internacional deste caráter obrigaria o governo brasileiro a seguir a mesma política restritiva dos demais signatários, principalmente a posição rígida do seu precursor, os Estados Unidos. O Brasil já se manifestou dizendo que não pretende assinar o acordo. Contudo, o acordo prevê a nomeação de um “embaixador” para atuar junto ao governo de cada país em prol da implementação das medidas protetivas (ou restritivas, melhor dizendo), que nada mais é do que um lobista internacional encarregado de “convencer” os governos a aprovar as leis anti-pirataria.
A legislação brasileira, nos moldes em que está atualmente (sem a promulgação do Marco Civil e dos crimes virtuais) já oferece medidas civis e condutas criminais suficientes para a proteção dos direitos autorais e a repressão de obras sem autorização. Os tipos penais já existentes não são os ideias, mas se a prática da pirataria vem ocorrendo não é por falta de base legislativa, mas sim de ações efetivas por parte das autoridades responsáveis, tais como a polícia, o Ministério Público e outras esferas de governo responsáveis pela prevenção.
O que realmente seria uma novidade na legislação é a responsabilização dos provedores, administradores de redes sociais e hospedeiros de blogs pelos conteúdos das páginas alimentadas pelos usuários, no modelo dos projetos americanos. Mas este modelo repressivo vem acompanhado do fantasma da censura, lembrança ainda recente nos países latinos. Ainda, as instâncias judiciais ainda relutam em responsabilizar os provedores.
No Brasil, aliás, qualquer lei ou tratado internacional prevendo interdição ou restrição direitos, tal qual a interdição ou bloqueio de páginas eletrônicas, esbarra no artigo 5º, XIV, da Constituição. A verdade é que desde a Constituição de 1988, tais medidas só podem ser realizadas mediante ordem judicial ou administrativa em que a parte constrangida tenha o direito de se defender previamente, conforme o dispositivo: “Ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal.” Assim, medidas restritivas tomadas arbitrariamente por órgãos do governo, tal como previsto nas propostas SOPA e PIPA, são contrárias à propria estrutura do Estado brasileiro e aos direitos fundamentais enumerados na Constituição de 1988. A supressão ou desrespeito a estes direitos faria ressurgir aquele período da história em que o governo brasileiro sucumbiu ao lobby norte-americano, e, como resultado, seguiram-se o golpe de 1964 e os anos de ditatura militar.
Recentemente, o Comitê gestor da Internet no Brasil posicionou-se em relação ao SOPA, por meio da Resolução CGI.br/RES/2012/003/P, publicada em 05 de março deste ano. Segundo a resolução, o projeto de lei estadunidense contraria diversos princípios adotados pelo comitê brasileiro: liberdade, privacidade e direitos humanos, neutralidade e inimputabilidade da rede, ambiente legal e regulatório.
Algumas pesquisas, como o estudo encomendado pelo governo suíço sobre o impacto econômico dos sites que oferecem downloads gratuito de obras, revelam que a reprodução não autorizada (e, portanto, sem custo e sem retorno financeiro ao autor) nem sempre é maléfica (o resultado da pesquisa foi divulgado em 2010 e encontra-se disponível no endereço: http://www.ejpd.admin.ch/content/dam/data/pressemitteilung/2011/2011-11-30/ber-br-d.pdf). Com efeito, o acesso gratuito a obras, crições e produções de caráter artístico, cultural e científico, contribui para o acesso de todos à cultura e à informação, e acaba tornando artistas e criadores ainda mais conhecidos. Com isso, o retorno acaba vindo de outras fontes, como a venda de ingressos para shows ou outros produtos da indústria do entretenimento. A reprodução não autorizada de obras, definitivamente, não é legal nos termos da lei brasileira, mas a distribuição livre e gratuita pode mudar a forma de pensar e de comercializar a arte e a cultura.