Algumas atividades profissionais desgastam mais as pessoas ou as colocam em maior risco, fazendo com que elas, quando comparadas às demais, tenham menor tempo de vida útil ou permaneçam de modo mais fragilizado diante das peculiaridades de suas atividades. Nesses casos, o Direito prevê que tais profissionais possam se aposentar com menor tempo de serviço, pois do contrário, passariam tempo maior sujeitos a situações de perigo ou desgaste, o que seria injusto.
A Constituição Federal, por exemplo, em seu art. 40, § 4º, II, com redação dada pela EC 47, prevê a chamada aposentadoria especial às atividades de risco, ou seja, àquelas cujo exercício pode representar algum perigo à integridade física do agente público e de seus familiares.
Desde a EC nº 20/98, a Constituição já garantia aposentadoria especial para atividades exercidas em condições que prejudicassem a saúde ou a integridade física. No entanto tal regra sofreu importante alteração por força da EC 47, de molde a abranger também os deficientes físicos e os que exercem atividades de risco.
Parece não haver dúvida que a magistratura exerce atividade de risco, em razão do trabalho perigoso exercido pelos juízes ao distribuir a justiça e contrariar interesses ilegais. Em passado recentíssimo podemos elencar ao menos três magistrados mortos em razão do exercício da judicatura e outros tantos convivendo com condições de ameaças ou pressões que acabam afetando o seu bem estar psicológico. [1] [2] [3] [4]
Infelizmente tornaram-se corriqueiras as notícias de juízes ameaçados por todo o Brasil, muitos deles vítimas de atentados e outros praticamente presos em suas residências ou no próprio Fórum, não podendo ter uma vida normal. [5] [6] [7] [8] [9] [10] [11] [12] [13]
Até por conta dessa situação decorrente da natureza de risco da atividade jurisdicional, que normalmente aborrece criminosos e grupos organizados, o próprio Conselho Nacional de Justiça constatou em levantamento que 150 juízes se encontram ameaçados no país,[14] o que motivou o órgão a estudar um sistema especial visando estabelecer diretrizes e medidas de segurança institucional e pessoal dos magistrados e seus familiares.[15]
Resta induvidoso, assim, que lei complementar deve incluir a magistratura como atividade de risco, sujeitando os seus membros a regras previdenciárias especiais, conforme determina o mencionado art. 40, § 4º, II, da Constituição Federal. Ao lado de outras atividades igualmente perigosas, como as dos policiais e membros do Ministério Público, por exemplo, os magistrados devem contar com normas previdenciárias específicas, de molde a mitigar os efeitos nocivos dos riscos sofridos ao longo da carreira.
Em tese, lei complementar pode, para tais servidores, diminuir o tempo de contribuição, alterar o limite de idade ou, até mesmo, prever a concessão de aposentadoria com base unicamente no tempo de contribuição, independentemente da idade. A norma prevista no art. 40, § 4º, da Constituição Federal não faz qualquer restrição, deixando campo livre para o legislador infraconstitucional:
“É vedada a adoção de requisitos e critérios diferenciados para a concessão de aposentadoria aos abrangidos pelo regime de que trata este artigo, ressalvados, nos termos definidos em leis complementares, os casos de servidores: (...) II – que exerçam atividades de risco.”
Ainda, a título exemplificativo, as leis atualmente existentes que prevêem aposentadoria especial para policiais estabelecem tempo de contribuição de 30 anos. Nesse exato sentido é o disposto na Lei Complementar Federal nº 51/85, que cuida do assunto nos seguintes termos:
“Art. 1º - O funcionário policial será aposentado: I - voluntariamente, com proventos integrais, após 30 (trinta) anos de serviço, desde que conte, pelo menos 20 (vinte) anos de exercício em cargo de natureza estritamente policial.”
Assim, visando fazer cumprir o comando constitucional quanto aos juízes, foi apresentado ao parlamento o Projeto de Lei Complementar nº 122/2011, de autoria do Deputado Federal João Campos, que dispõe serem atividades de risco as exercidas pelos membros da Magistratura e Ministério Público, cujos requisitos são idênticos aos da lei acima mencionada quanto aos policiais.
O Supremo Tribunal Federal, chamado a se manifestar a respeito do caso específico dos policiais, por meio da ADI nº 3.817/DF, entendeu que a referida lei – LC 51/85 – foi recepcionada pela Constituição Federal, podendo os servidores policiais se aposentar com base na regra diferenciada. Dessa forma, norma anterior à EC 47/2005 que, de algum modo estabeleça determinada atividade como de risco, está em consonância com o novo texto constitucional.
É de se indagar: os magistrados possuem lei complementar dispondo sobre regra especial de aposentadoria? A resposta nos parece ser positiva, tendo em vista o art. 74 da Lei Complementar nº 35/79 – Lei Orgânica da Magistratura – LOMAN:
“Art. 74 - A aposentadoria dos magistrados vitalícios será compulsória, aos setenta anos de idade ou por invalidez comprovada, e facultativo, após trinta anos de serviço público, com vencimentos integrais, ressalvado o disposto nos arts. 50 e 56.”
Não obstante a existência expressa da regra, após a EC 20/98 entendeu-se restar inaplicável o art. 74 da LOMAN, por ser incompatível com a nova disciplina constitucional.[16] Convém repetir que a EC 20/98 não previa aposentadoria especial em razão do risco, circunstância só inserida na Constituição Federal com a EC 47/05.
De qualquer forma, nos parece que o sentido da aposentadoria especial para os magistrados prevista no art. 74 da LOMAN, era justamente o fato de que essa atividade precisava de regramento diferenciado, especialmente por estar submetida a riscos, tanto que o art. 33, V, do mesmo diploma legal concede porte de arma de defesa pessoal aos magistrados:
“Art. 33 - São prerrogativas do magistrado: (...) V – portar arma de defesa pessoal.”
Ora, se determinados servidores têm reconhecido por lei o direito de portar arma, há uma admissão legislativa de que a atividade respectiva representa algum risco, tanto que necessitam de um instrumento especial de proteção.
Portanto, a LOMAN, embora não mencione expressamente ser a magistratura uma atividade de risco, ao conferir regra diferenciada de aposentadoria e conceder porte de arma aos magistrados, acaba por considerar essa atividade como sendo de tal natureza. Ainda que a lei complementar assim não estabelecesse, a própria natureza das coisas não pode ser desprezada pelo intérprete. Não vemos como se poderia afastar, assim, o raciocínio de que juiz exerce atividade de risco.
Tendo como parâmetro o dispositivo constitucional que permite regramento especial para as atividades de risco, vê-se, em verdade, que mesmo antes dessa previsão constitucional expressa, a LOMAN já caminhava nesse sentido quando: a) previu aposentadoria especial com proventos integrais, após 30 anos de serviço público (art. 74 caput); b) concedeu porte de arma de defesa pessoal aos magistrados (art. 33, V).
É oportuno, assim, que façamos o seguinte questionamento: o art. 74 da LOMAN ainda está em vigência? Como dito, após a EC 20/98 a chamada aposentadoria especial dos magistrados não mais encontrou suporte na Constituição. Lembremos uma vez mais que a EC 20/98 não previu como condição especial de aposentadoria a atividade de risco, circunstância só agregada ao texto constitucional posteriormente. Ocorre, todavia, que a EC 47/2005 expressamente contemplou como aposentadoria especial as atividades de risco, revolvendo o assunto e nos fazendo refletir se o art. 74, caput, combinado com o art. 33, V, da LOMAN, voltou a ter sua vigência.
Estaríamos aí diante de uma espécie de efeito repristinatório tácito? Embora tal regra sempre tenha sido inaplicável no nosso sistema por conta da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (art. 2º, § 3º), podemos verificar que isso na atualidade já pode ser considerado plenamente possível em face do que se infere do art. 11, § 2º da Lei 9.868/99, ao tratar da ação direta de inconstitucionalidade:
“Art. 11. Concedida a medida cautelar, o Supremo Tribunal Federal fará publicar em seção especial do Diário Oficial da União e do Diário da Justiça da União a parte dispositiva da decisão, no prazo de dez dias, devendo solicitar as informações à autoridade da qual tiver emanado o ato, observando-se, no que couber, o procedimento estabelecido na Seção I deste Capítulo. (...)
§ 2º A concessão da medida cautelar torna aplicável a legislação anterior acaso existente, salvo expressa manifestação em sentido contrário.” (grifo inexistente)
Teria, portanto, aquela norma anteriormente prevista na LOMAN e afastada pela Emenda Constitucional nº 20/98 voltado a encontrar guarida na Carta Magna, em face da nova Emenda Constitucional nº 47/2005? Nós entendemos de modo positivo, até porque não houve sua revogação expressa, tendo ela permanecido temporariamente incompatível com os termos da EC 20/98, incompatibilidade esta que deixou de existir após a EC 47/2005. Até por isso, nem mesmo poderíamos falar de “repristinação” em seu caráter técnico.
E foi exatamente esse o raciocínio que o próprio STF adotou ao reconhecer que a Lei Complementar 51 de 1995 (que reconhece a atividade do policial como de risco) continua em vigor.
Importante atentar que o Supremo Tribunal Federal tem reconhecido algumas carreiras como atividade prejudicial à saúde e à integridade física, mesmo sem lei complementar que o defina, como ocorreu com os auditores fiscais no mandado de injunção nº 1.614, onde o Ministro Marco Aurélio assentou fazerem jus à aposentadoria especial:
“Ante os referidos pronunciamentos, julgo procedente o pedido formulado para, de forma mandamental, assentar o direito dos substituídos à contagem diferenciada do tempo de serviço em decorrência de atividades exercidas em trabalho especial, aplicando-se o regime da Lei nº 8.213/91, para fins da aposentadoria de que cogita o § 4º do artigo 40 da Constituição Federal, cabendo ao órgão a que integrados o exame do atendimento ao requisito "tempo de serviço". 3. Publiquem. Brasília, 1º de novembro de 2010. Ministro MARCO AURÉLIO Relator.”
Assim, é absolutamente coerente concluir que a atividade inerente à magistratura deve ser considerada de risco para efeito de aposentadoria, seja em razão do que já prevê a atual LOMAN ou pela legislação analógica, seja em face da mora legislativa existente, o que pode ser sanado através de mandado de injunção ou, ainda, através de futura lei complementar disciplinadora do assunto.
Todavia, enquanto não for promulgada a nova lei orgânica da magistratura, poder-se-á incidir a regra especial de aposentaria prevista no art. 74 da LOMAN (Lei Complementar 35/79).
Ainda que se adote o entendimento sobre eventual impedimento do efeito repristinatório para aplicação da LOMAN, seria bastante razoável aplicar-se ao caso o art. 1º da Lei Complementar nº 51/85, por analogia:
“Art.1º - O funcionário policial será aposentado:
I - voluntariamente, com proveitos integrais, após 30 (trinta) anos de serviço, desde que conte, pelo menos 20 (vinte) anos de exercício em cargo de natureza estritamente policial;”
De fato, se as duas carreiras encontram-se em situação de risco, como previsto pela própria lei ou mesmo pela simples natureza das condições da atividade desenvolvida profissionalmente, é razoável e legal que a elas sejam conferidas a mesma lógica jurídica para o exercício do direito à aposentadoria.
Ainda que assim não fosse, do mesmo modo se poderia adotar para o caso de modo analógico o regime previsto no art. 57 da Lei 8.213/01:
“Art. 57. A aposentadoria especial será devida, uma vez cumprida a carência exigida nesta Lei, ao segurado que tiver trabalhado sujeito a condições especiais que prejudiquem a saúde ou a integridade física, durante 15 (quinze), 20 (vinte) ou 25 (vinte e cinco) anos, conforme dispuser a lei.”
E tais alternativas já foram adotadas pelo Supremo Tribunal Federal, quando ausente normativa legislativa expressa concedendo a aposentadoria especial para as carreiras reconhecidamente como de atividade de risco, tal qual no já referido mandado de injunção 1614 e também no MI 721-7/DF:
“MANDADO DE INJUNÇÃO – NATUREZA. Conforme disposto no inciso LXXI do artigo 5º da Constituição Federal, conceder-se-á mandado de injunção quando necessário ao exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania. Há ação mandamental e não simplesmente declaratória de omissão. A carga de declaração não é objeto da impetração, mas premissa da ordem a ser formalizada. MANDADO DE INJUNÇÃO – DECISÃO – BALIZAS. Tratando-se de processo subjetivo, a decisão possui eficácia considerada a relação jurídica nele revelada. APOSENTADORIA – TRABALHO EM CONDIÇÕES ESPECIAIS – PREJUÍZO À SAÚDE DO SERVIDOR – INEXISTÊNCIA DE LEI COMPLEMENTAR – ARTIGO 40, § 4º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. Inexistente a disciplina específica da aposentadoria especial do servidor, impõe-se a adoção, via pronunciamento judicial, daquela própria aos trabalhadores em geral – artigo 57, § 1º, da Lei nº 8.213/91. Mandado de Injunção 721/DF. Min. Marco Aurélio”
Não foi diferente o pronunciamento da Suprema Corte ao analisar o MI 795-DF:
“MANDADO DE INJUNÇÃO. APOSENTADORIA ESPECIAL DO SERVIDOR PÚBLICO. ARTIGO 40, § 4º, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. AUSÊNCIA DE LEI COMPLEMENTAR A DISCIPLINAR A MATÉRIA. NECESSIDADE DE INTEGRAÇÃO LEGISLATIVA. 1. Servidor público. Investigador da polícia civil do Estado de São Paulo. Alegado exercício de atividade sob condições de periculosidade e insalubridade. 2. Reconhecida a omissão legislativa em razão da ausência de lei complementar a definir as condições para o implemento da aposentadoria especial. 3. Mandado de injunção conhecido e concedido para comunicar a mora à autoridade competente e determinar a aplicação, no que couber, do art. 57 da Lei n. 8.213/91. Mandado de Injunção 795-DF. Min. Carmen Lucia”
Do mesmo modo foi a decisão do C. STF no Mandado de Injunção nº 788-DF:
“DIREITO CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. MANDADO DE INJUNÇÃO. SERVIDORA PÚBLICA. ATIVIDADES EXERCIDAS EM CONDIÇÕES DE RISCO OU INSALUBRES. APOSENTADORIA ESPECIAL. § 4º DO ART. 40 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. AUSÊNCIA DE LEI COMPLEMENTAR. MORA LEGISLATIVA. REGIME GERAL DA PREVIDÊNCIA SOCIAL. 1. Ante a prolongada mora legislativa, no tocante à edição da lei complementar reclamada pela parte final do § 4º do art. 40 da Magna Carta, impõe-se ao caso a aplicação das normas correlatas previstas no art. 57 da Lei nº 8.213/91, em sede de processo administrativo. 2. Precedente: MI 721, da relatoria do ministro Marco Aurélio. 3. Mandado de injunção deferido nesses termos. Min. Ayres Britto.”
Portanto, somos obrigados a reconhecer que os magistrados, por exercerem atividade profissional de risco, sujeitam-se à condição especial de aposentadoria, o que possibilita a aplicação do disposto no art. 74 da LOMAN ainda em vigor, de modo a permitir-lhes o benefício após 30 anos de serviço e pelo menos cinco no cargo. Repetimos não ser a hipótese de repristinação, mas ainda que assim interpretada, ela seria possível, como vimos, por força da Lei 9.868/99.
Mesmo para os que defendem a inaplicabilidade da LOMAN, se poderia aplicar analogicamente o disposto no art. 1º da Lei Complementar 51/85, concedendo-se a aposentadoria após 30 anos de serviço, sendo ao menos 20 deles no cargo de magistrado. Ou, ainda, a aplicação interpretativa e analógica do art. 57 da Lei 8.213/91. Em qualquer dessas hipóteses, isso ocorreria apenas em caso de inaplicabilidade da LOMAN e para que não se tornasse obsoleto um princípio constitucional.
Ainda que sequer existissem leis complementares tratando do tema, o certo é que a norma constitucional deveria ser reconhecida como de aplicabilidade imediata, tais quais os entendimentos do STF nos mandados de injunção referidos. Como retratam as referidas decisões do Supremo Tribunal Federal a respeito da mesma matéria, é preciso dar um conteúdo prático à situação vivenciada pela magistratura brasileira, de modo a conferir-lhe efetividade ao direito na aposentadoria especial prevista para a atividade de risco, e impedir que a mora legislativa torne sem efeito o comando previsto na Constituição Federal.