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A subcapitalização intencional no direito brasileiro: os benefícios para o ordenamento com a aplicação da teoria americana do deepening insolvency em sociedades limitadas e anônimas

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21/07/2012 às 09:53
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3. A TEORIA AMERICANA DO DEEPENING INSOLVENCY COMO ORIENTADORA À SOLUÇÃO PARA A OCORRÊNCIA DA SUBCAPITALIZAÇÃO INTENCIONAL

3.1 Origem do Instituto e Objeto Jurídico Tutelado

De origem jurisprudencial Norte Americana e contando com mais de 100 anos desde a sua primeira aplicação na Suprema Corte da Pensilvânia (Patterson v. Franklin), a teoria do Deepening Insolvency traz em seu fundamento uma importante diretriz para  se buscar a responsabilização dos sócios e administradores por atos que provoquem o estado de subcapitalização e agravem as condições econômicas da empresa através de uma oneração manifestamente excessiva de seu capital. (FRANKLIN, p. 438)

Por Deepening Insolvency, deve se entender como a proibição voltada a todos aqueles que de alguma forma atuaram para o aumento do passivo exigível e o prolongamento da sobrevida da sociedade de forma ardil, com má gestão, mediante acertos fraudulentos e maquiagem da real situação econômica da empresa enquanto que presente a certeza, interna corporis, do estado de subcapitalização e possível insolvência, causando um dano direto a toda a sociedade. (FRANKLIN, p. 438)

Essencial o conceito conferido por Ronald R. Sussman:

Deepening insolvency is a developing theory of law that entails the wrongful prolongation of a corporation’s life beyond insolvency, thereby resulting in damage to the corporation caused by, e.g., increased debt, dissipation of assets, and/or decreased reputation. (SUSSMAN, p. 793)

Complementa a doutrina:

"A chamada teoria do deepening insolvency é uma teoria desenvolvida nos Estados Unidos que se relaciona com a hipótese de manutenção fraudulenta das atividades da companhia diante de um claro cenário de insolvência, resultando, assim, em graves danos para a própria companhia." (RIBEIRO, 2010, p. 34)

Neste mesmo sentido se posiciona Franklin:

This theory, called deepening insolvency, allows recovery from the defrauding management, and those aiding its wrongful conduct, for keeping the already insolvent corporation alive through fraudulent misrepresentation of solvency to the unsuspecting investors and creditors, and thereby causing the corporation to suffer massive injuries. (FRANKLIN, p. 436)

Por fim, merece análise o conceito de William Brandt Jr.

A precise definition of “deepening insolvency” has yet to be articulated and agreed upon by the courts, but most refer to the artificial prolongation of a corporation’s life beyond insolvency, resulting in a worsening of the financial situation, usually in the form of increased debt, which damages the corporation. (BRANDT JR.. p. 2)

Buscando combater as chamadas falhas corporativas, esta teoria procura conferir a uma série de sujeitos, dentre eles os sócios, administradores, diretores, advogados e auditores a responsabilidade pelos prejuízos causados por atos e decisões que contrariam a essência do direito empresarial, mascarando dados, assumindo empréstimos, realizando contratos não paritários de mútuo, retirando as riquezas da sociedade através de forma diversa da usual, dentre outras.

Precisa é a Corte de Apelações da 3ª Região dos Estados Unidos, que numera uma série de prejuízos causados pelo estado de insolvência provocado deliberadamente pelos sócios e administrados, tais como uma inevitável falência; o aumento dos custos administrativos e judiciais; a quebra da confiança perante seus empregados, o mercado consumidor e os fornecedores; a criação de limites operacionais que prejudicam a continuidade da atividade; bem como a dissipação do ativo da empresa para custear toda a operação fraudulenta:

First and foremost, the theory is essentially sound.   [...]   Even when a corporation is insolvent, its corporate property may have value.   The fraudulent and concealed incurrence of debt can damage that value in several ways.   For example, to the extent that bankruptcy is not already a certainty, the incurrence of debt can force an insolvent corporation into bankruptcy, thus inflicting legal and administrative costs on the corporation.   […]   When brought on by unwieldy debt, bankruptcy also creates operational limitations which hurt a corporation's ability to run its business in a profitable manner. […] Aside from causing actual bankruptcy, deepening insolvency can undermine a corporation's relationships with its customers, suppliers, and employees.   The very threat of bankruptcy, brought about through fraudulent debt, can shake the confidence of parties dealing with the corporation, calling into question its ability to perform, thereby damaging the corporation's assets, the value of which often depends on the performance of other parties.   […].   In addition, prolonging an insolvent corporation's life through bad debt may simply cause the dissipation of corporate assets. (Court: United States Third Circuit; Published 10/09/2001; Judges SLOVITER, FUENTES, and COWEN)(grifo nosso)

Cumpre observar que neste mesmo julgado, explanou-se o entendimento acerca da importância da Teoria do Deepening Insolvency como meio a solucionar lacunas, partindo desta premissa todo o desenvolvimento deste presente trabalho:

Significantly, one of the most venerable principles in Pennsylvania jurisprudence, and in most common law jurisdictions for that matter, is that, where there is an injury, the law provides a remedy.   See 37 Pennsylvania Law Encyclopedia, Torts § 4, at 120 (1961) (“For every legal wrong there must be a correlative legal right.”) [...] (Court: United States Third Circuit; Published 10/09/2001; Judges SLOVITER, FUENTES, and COWEN)

E embora a teoria tenha sido desenhada inicialmente para casos de falência, a utilização dos seus fundamentos por parte dos juristas brasileiros poderá trazer maiores consequências aos atos aqui enquadrados, reduzindo a sua prática através da disseminação da certeza de investigação e punição aos responsáveis, fortalecendo a função de garantia do capital social e solidificando a sua estrutura no Direito Empresarial.

Por esta razão, não há dúvidas que objeto jurídico tutelado por esta Teoria favorece o cenário brasileiro, que se fortaleceria com as boas práticas comerciais, econômicas e de governança coorporativa.

3.2 Subcapitalização como Afronta à Função Social da Empresa, à Boa-Fé Objetiva e aos Deveres Fiduciários dos Administradores e ao Abuso de Poder de Controle e de Gestão dos Sócios

Para integração no ordenamento jurídico brasileiro, a teoria do Deepening Insolvency, mais precisamente diante da inexistência de norma que a identifique como ato ilícito, deve ser analisada sob a vertente da valoração da conduta humana que provocou a situação de ingresso na zona de insolvência.

É neste raciocínio que, em consonância com a Lei de Introdução ao Código Civil, que em seu artigo 5 diz que "na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum", atinge-se a necessária integração dos fundamentos do Deepening Insolvency com as hipóteses de afronte à função social da empresa, à boa-fé objetiva, aos deveres fiduciários dos administradores e ao abuso de poder de controle e de gestão dos sócios.

A nova vertente Constitucional sedimentou a importância dos princípios gerais de direito, que pelo caráter de abstração, devem permear toda a construção legislativa, doutrinária e jurisprudencial do Direito, influenciando a sua interpretação e aplicação no caso concreto.

Assim se atinge à função social da empresa, que trata da preservação dos postos de trabalho, geração renda, circulação de dinheiro, enfim, o fomento da sociedade e movimento da economia, aliás, como ressalta José Afonso da Silva como finalidade da própria ordem econômica inserta na carta constitucional, para quem a liberdade de iniciativa econômica privada "é legítima, enquanto exercida no interesse da justiça social". (SILVA, 2006, p. 794):

“A ordem econômica, segundo a Constituição, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os princípios indicados no art. 170, princípios estes que, em essência, como dissemos, consubstanciam um ordem capitalista. (…) Um regime de justiça social (…) não aceita as profundas desigualdades, a pobreza absoluta e a miséria.” (SILVA. 2006, p. 788,789)

A função social da empresa surge como instrumento de movimentação da cadeia econômica, mas ao mesmo tempo como parâmetro limitador aos interesses dos sócios, oferecendo uma espécie de garantia a terceiros da necessidade de condução do empreendimento em conformidade com os anseios da coletividade, ressaltando Leonardo Bandeira de Mello (2010, p. 181) que "o interesse social deve prevalecer, inclusive, aos interesses do próprio administrador e aos grupos de acionistas que o tenha elegido".

E para facilitar a verificação da função social da empresa na prática, ou seja, se ela atende às necessidades dos sócios sem que seja causado prejuízo a terceiros, aplica-se a teoria da Eficiência de Pareto, que se traduz na melhor alocação de recursos na medida em que se pode "encontrar uma forma de melhorar a situação de uma pessoa sem piorar a de nenhuma outra". (VARIAN, 2006, p. 15)

Por outro lado, é importante ressaltar a imperiosidade de se atuar sempre com o atendimento à boa-fé objetiva, que se traduz em um dever de conduta baseado na "confiança, na lealdade, na honestidade, na lisura, na certeza e na segurança" (MACHADO, 2008, p. 337) e ainda com transparência e correção (FIUZA, 2009, p. 414-415).

Os deveres fiduciários dos administradores e controladores revelam os parâmetros de atuação quando da condução da empresa e embora elencados unicamente na Lei das Sociedades Anônimas, se aplicam a todos os tipos societários compatíveis na medida em que os deveres de diligência, lealdade, ética, informação, respeito aos minoritários, satisfação das exigências do bem comum e da função social da empresa, impedindo "que os administradores anteponham seus interesses pessoais aos interesses da companhia e de uma universalidade de acionistas, ou que sejam negligentes na administração do patrimônio alheio" (MELLO, 2010, p. 180) se revelam como questões precípuas à boa administração de qualquer sociedade empresária.

Torna-se portanto questionável se a promoção à subcapitalização não se enquadra como um afronte aos deveres fiduciários na medida em que fere diretamente o cumprimento da finalidade da empresa e o dever de diligência, este tratado pela doutrina norte-americana de duty of care, senão vejamos:

Ordinarily, the directors, officers and controlling shareholders owe a triad of duties to the corporation and its shareholders: duty of care, duty of loyalty and good faith. Duty of care simply means that the directors, officers and controlling shareholders exercise reasonable care in executing their management responsibilities. [...]

Although this triad of fiduciary duties extends through insolvency, it is not clear exactly what constitutes such fiduciary duty during insolvency. At the very least, the directors are prohibited from protecting their interests to the detriment of the creditors’ interests. They have an “obligation . . . to exercise judgment in an informed, good faith effort to maximize the corporation’s long-term wealth creating capacity.” (grifo nosso) (FRANKLIN, p. 459-460)

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Corrobora a doutrina pátria ao versar sobre o Deepening Insolvency:

A ideia é que incorrer de forma equivocada em dívidas que não podem ser pagas pode aumentar substancialmente os custos associados com a insolvência, tais como as despesas relacionadas ao processo de falência ou recuperação, bem como a perda no valor dos ativos da companhia.(RIBEIRO, 2010, p. 34)

Por fim, tem-se ainda o abuso do poder de controle e de gestão dos sócios como potencial pressuposto para responsabilização pelo estado de subcapitalização, haja vista ter-se uma atuação direta para consecução de um fim individual em detrimento de terceiros, o que nos remete à função social da empresa e ao teorema de Pareto.

Conclui  Coelho:

Nessas, nas demais situações exemplificadas em lei (art. 117, § 1º) e sempre que configurado o exercício irregular dos direitos emergentes da condição de controlador, os prejudicados devem ser indenizados. Parte legítima para o polo passivo da relação processual, nesse caso, nunca é a sociedade, mas sim o controlador. (grifo nosso) (COELHO, p. 293-294 verde)

Sem o necessário preenchimento da lacuna existente, torna-se impossível fazer a subsunção destes atos à norma, no entanto, ainda que previstos no ordenamento, não há o elemento de conexão que faça possível a imposição de responsabilidade patrimonial, servindo o Deepening Insolvency como elo capaz de macular a subcapitalização, aplicando-se assim um balizamento de conduta capaz de facilmente identificar o lícito do ilícito.

Mutatis mutandis, é o que diz Hubert:

Afinal, pretender afirmar a possibilidade de aplicar sanção a uma ação que não afronta diretamente qualquer regra positiva, mas no máximo ofende princípio implícito no sistema jurídico, entretanto não dotado da concretude necessária, é avançar demasiadamente na consideração sobre a aplicabilidade direta dos princípios jurídicos. Estes, de fato, orientam a interpretação de regras do sistema jurídico e servem para a tomada de decisões no sentido de alcançar o sentido teleológico neles inscrito. não podem, entretanto, destinar-se a criar sanções, onde a regra é inexistente. (HUBERT, 2007, p. 108)

3.3 A Superação do Business Judgment Rule

Para que seja considerado passível de análise sob o prisma da antijuridicidade, é necessário ainda que se vença a barreira do business judgment rule, expressão norte-americana utilizada para designar o campo de liberdade de atuação dos sócios e administradores com relação à condução da sociedade.

Explica a doutrina:

"Nos EUA, a doutrina e a jurisprudência desenvolveram a ideia de que existe uma "área de controle" para o controle dos poderes dos administradores. Essa noção foi consolidada na expressão business judgement rule. Essa expressão foi desenvolvida pelos tribunais norte-americanos ao estabelecerem que administradores de uma companhia não poderiam ser responsabilizados pessoalmente por eventuais perdas incorridas em virtude de decisões administrativas tomadas, na medida em que se demonstrasse que agiram com a devida diligência e boa-fé."(RIBEIRO, 2010, p. 32)

Continua:

"O conceito de business judgement rule está diretamente ligado aos deveres fiduciários incumbidos aos administradores das companhias no sentido de atuarem apenas no interesse dos acionistas e de buscarem proporcionar a eles o maior retorno possível [...]."(RIBEIRO, 2010, p. 33)

Observe a visão da doutrina norte-americana:

It presumes that the directors of a corporation make informed business decisions in good faith and with a belief that these decisions are in the best interests of the corporation and further a “rational business purpose.”166 The presumption can be rebutted by demonstrating fraud, self-dealing, conflict of interest, abuse of discretion, unconscionable conduct, illegality, gross overreaching, lack of a lawful and legitimate corporate purpose or malfeasance. (FRANKLIN, p. 461)

Neste diapasão, traduzindo a expressão para o que se pode chamar de Teoria dos Atos Negociais, vislumbra-se que o sistema jurídico brasileiro, ainda que sob a vertente do Estado Social e sob a premissa do liberalismo econômico, garante uma certa discricionariedade aos sócios e administradores na tomada de decisões, impondo como limiar justamente os princípios ora debatidos da boa-fé objetiva, função social da empresa, etc.

Na maioria dos casos, o que se observa é que a decisão negocial vencida pelo Deepening Insolvency, ofende o interesse da sociedade no momento em que ocasionará, a médio e curto prazo, a sua ruína, enquanto que aos sócios é absorvido apenas os benefícios do resultado.

E para comprovar a compatibilidade da teoria do deepening insolvency com o sistema normativo brasileiro, oportuno o comentário da doutrina norte-americana:

In addition, such cases often involve self-dealing, looting and conflict of interests which, coupled with direct injuries to the corporations, demonstrate that their decision to deepen insolvency was neither fair nor in the best interest of the corporation. (FRANKLIN, p. 462)

É com este norte que se pode afirmar que a aplicação da teoria do deepening insolvency somente se dará por efetiva quando superada a business judgment rule, haja vista a presunção de que a decisão foi devidamente refletida, informada por todos os aspectos negociais e tendente a cumprir com o interesse próprio sem atingir o interesse social.

Assim, esta superação somente se fará possível diante da verificação da quebra dos deveres inerentes à função de administrador ou de sócio controlador, exacerbando os limites sociais para implicar em danos a terceiros em decorrência de benefício próprio.

E com este reconhecimento, aliado às diretrizes do ordenamento jurídico pátrio, diante do reconhecimento da ilicitude do ato, verificar-se-á a responsabilização direta dos responsáveis, conferindo maior segurança às relações comerciais.

Não é outro o entendimento da jurisprudência norte-americana:

Consequently, the creditors of an insolvent corporation have standing to maintain derivative claims against directors on behalf of the corporation for breaches of fiduciary duties. The corporation’s insolvency “makes the creditors the principal constituency injured by any fiduciary breaches that diminish the firm’s value.” (Suprema Corte do Estado de Delaware; North American Catholic Educational Programming Foundation, Inc., v Rob Gheewalla, Gerry Cardinale and Jack Daly; Julgador Holland, 18/05/2007)

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Sobre o autor
Roberto Fonseca de Aguiar

Advogado Societário (RJ)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AGUIAR, Roberto Fonseca. A subcapitalização intencional no direito brasileiro: os benefícios para o ordenamento com a aplicação da teoria americana do deepening insolvency em sociedades limitadas e anônimas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3307, 21 jul. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22272. Acesso em: 28 mar. 2024.

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