Resumo: Este trabalho buscou demonstrar que o direito de laje é realidade no Brasil, em especial, nas favelas. Não obstante, é fato social descuidado pelo legislador, que, omisso, deixou de regulamentar tais situações, as quais ficam, assim como os seus titulares, à margem da sociedade. Como reação à indiferença, as camadas populacionais excluídas passam a criar, paralelamente ao Estado, normas a serem aplicadas dentro de seu contexto social, de forma a proporcionar a sua inclusão social. Tais normas paraestatais constituem uma nova ordem jurídica que convive in latere com o que se denomina de ordenamento oficial. As associações locais chegam a, inclusive, criar mecanismos de controle e registro das compra e vendas firmadas pelos seus moradores. Esta situação retrata o pluralismo jurídico, pelo qual, as normas jurídicas não são criadas apenas pelos Estados, mas também por outras instituições que integram a sociedade.
Palavras-chave: Pluralismo jurídico. Direito de Laje. Favelas.
Sumário: 1 Introdução; 2 O DIREITO DE LAJE – UMA REALIDADE DAS FAVELAS BRASILEIRAS; 2.1 BREVÍSSIMO HISTÓRICO DAS FAVELAS BRASILEIRAS; 2.2 FAVELAS E HABITAÇÃO; 2.3 O DIREITO DE LAJE; 2.3.1 Conceito; 2.3.2 Direito de laje como instrumento de acesso ao direito social de moradia; 2.3.3 A falta de legislação estatal adequada à realidade social; 3. O PLURALISMO JURÍDICO E O DIREITO DE LAJE; 3.1 DO MONISMO AO PLURALISMO JURÍDICO; 3.1.1 O contexto do surgimento do monismo jurídico; 3.1.2 Uma análise do monismo à luz da teoria Kelseniana; 3.1.3 A crise do monismo e a corrente do pluralismo jurídico; 3.2 PLURALISMO; 3.2.1 O direito extra-estatal; 3.2.2 Princípios estruturais; 3.2.3 O respeito à diversidade e a inserção social dos grupos excluídos; 3.3 Pluralismo jurídico e direito de laje; 4. CONCLUSÕES
1. Introdução
As cidades brasileiras se desenvolvem, mas tal crescimento não consegue acompanhar a majoração populacional. Como conseqüência, as camadas de baixa renda acabam se instalando em aglomerados urbanos – locais de exclusão social. Na busca de acesso à moradia, essas pessoas, usando de criatividade típica dos brasileiros, acabam por se adaptar.
Surge, assim, o direito de laje, fato social corriqueiro no Brasil.
Trata-se de situação em que uma pessoa permite que outra construa sobre a laje de seu imóvel já edificado. Certo é que não ocorre apenas no âmbito das favelas brasileiras, mas o presente trabalho é voltado para esta realidade.
O direito de laje é comumente avençado, e, a despeito de ser solução para o problema da moradia, não é tal acontecimento social previsto no ordenamento jurídico brasileiro, o que evidencia um descaso do legislador.
Como reação à indiferença, as camadas populacionais excluídas passam a criar, paralelamente ao Estado, normas a serem aplicadas dentro de seu contexto social, de forma a proporcionar a sua inclusão social. Tais normas paraestatais constituem uma nova ordem jurídica que convive in latere com o que se denomina de ordenamento oficial.
É o que ocorre nas favelas brasileiras: as lajes são negociadas, construídas, as pessoas passam a nela morar, sem que haja qualquer amparo legal para tanto. As associações locais chegam a, inclusive, criar mecanismos de controle e registro das compra e vendas firmadas pelos seus moradores, como é o caso ocorrido na Favela Rio das Pedras, no Rio de Janeiro – a qual será tomada como uma ilustração para o presente trabalho.
O objetivo deste trabalho é demonstrar que o Estado não é a única e exclusiva fonte do Direito, existindo outras fontes legitimadoras, que criam sistemas voltados ao multiculturalismo e ao atendimento das necessidades sociais, como é o caso do Direito de Laje no Brasil, no âmbito das favelas brasileiras.
Para tanto, no capítulo 2 será examinado o direito de laje, com ênfase ao seu contexto nas favelas brasileiras e ao fato de que se trata de solução ao problema habitacional. Ainda neste capítulo, é apreciado o descaso do Estado e a manutenção da exclusão social.
O capítulo 3 versa sobre o pluralismo jurídico. Inicialmente, é apresentada a corrente monista, para a qual o Estado é o único criador de normas jurídicas. Após o exame da crise de tal corrente, é examinado o pluralismo como proposta de solução à exclusão social advinda do monopólio estatal de criação das leis.
Ainda no terceiro capítulo é feita uma relação entre o direito de laje e o pluralismo jurídico, tendo como ponto de partida a situação concreta constatada na Favela Rio das Pedras, no Rio de Janeiro, em que foi criado um Cartório para o registro das compra e vendas de lajes locais.
As informações foram coletadas através da pesquisa bibliográfica e documental. Recorreu-se a acervos públicos e particulares, publicações periódicas, artigos científicos, dicionários, bem como textos relativos ao assunto em sites da Internet.
2. O DIREITO DE LAJE – UMA REALIDADE DAS FAVELAS BRASILEIRAS
As favelas são realidade marcante na sociedade brasileira e estudos aprofundados acerca de sua histórica, seus aspectos sociológicos e antropológicos são, com freqüência, feitos no Brasil, por nacionais e estrangeiros.
Seja pela marginalização, seja pela ausência de políticas públicas capazes de minimizar as diferenças sociais, um número expressivo de pessoas passa a viver em agrupamentos a que se denomina de favelas, por falta de condições de acessarem os demais espaços urbanos.
Objetiva-se, com o presente capítulo, evidenciar o contexto em que está inserido o direito de laje, situação à parte do Estado brasileiro, comumente estabelecida entre os habitantes das favelas como uma forma de viabilizar o acesso ao espaço da cidade, o acesso à moradia.
Sem a pretensão de esgotar o assunto, este capítulo destina-se, inicialmente, a fazer um sucinto exame das favelas brasileiras, apresentando, para ilustrar, algumas estatísticas realizadas por órgãos oficiais nas últimas décadas, que auxiliam a compreender o que ali ocorre.
Após apreciar o contexto em que está inserido, o direito de laje será apreciado, com análise do seu conceito, de suas finalidades, da exclusão deste corriqueiro instituto da legislação estatal brasileira e do caso especial da favela Rio das Pedras, no Rio de Janeiro, em que foi criado um cartório interno para o registro das compra e vendas de laje ali realizados.
2.1. BREVÍSSIMO HISTÓRICO DAS FAVELAS BRASILEIRAS
A história do Brasil registra desde o período de colonização a existência de espaços de segregação, como era o caso das senzalas em relação à casa grande. Os quilombos são também nítidos exemplos destes lugares de exclusão, em que os negros, escapados das fazendas e engenhos, lutavam para sobreviverem.
Com o passar dos anos os espaços de segregação direcionam-se também para o meio urbano.
GARCIA afirma que os ex-escravos e pobres das cidades coloniais passaram por novos desafios com o advento da cidade republicana, a qual foi construída visando os interesses da aristocracia dominante à época1.
A referida autora aduz que (2009, p. 144):
Como nas cidades européias estudadas por Engels (1979, 21), os bairros insalubres, tanto em Salvador como no Rio de Janeiro, produziram epidemias de todo tipo [...] Em Salvador, por exemplo, “algumas epidemias foram recorrentes e dizimaram muitas pessoas desde 1850 (Fernando & Gomes, 1993, 59)
A capital federal, embora fosse a maior cidade do Brasil em 1900 [...] era uma cidade com ruelas estreitas, sujas, cheia de cortiços, onde se amontoava a classe trabalhadora, tal como nas cidades européias no início da Revolução Industrial.
Traçando um histórico da ocupação da cidade do Rio de Janeiro, CORREA afirma que na primeira década republicana verificava-se falta de política pública apta a solucionar os problemas sociais que ali surgiam. A autora observa que com o fim da escravidão, o número de desempregados e subempregados aumentou, sem que o mercado de trabalho tivesse condições de absorvê-los. Este cenário é agravado com o êxodo rural e o aumento da presença estrangeira no Brasil, influenciando no aumento da população do Rio, que “teve que absorver quase 200 mil novos habitantes na virada do século”. (2008, p. 998)
Segundo PERLMAN, o primeiro registro de uma favela no Rio de Janeiro se deu no recenseamento de 1920, que registrou aglomeração de casas no denominado Morro da Providência, sendo esta organizada por veteranos da Guerra dos Canudos. A quantidade de pessoas instaladas nas favelas, na década de 30 foi significativamente majorada, o que se deveu ao êxodo rural e à escassez de moradia. Ainda nos dizeres de PERLMAN (2002, p. 41), “cerca de um milhão de pessoas moravam no Rio em 1968-69”.
JACINTO e MOREIRA, parafraseando GUIMARÃES, informam que a formação de favelas em Belo Horizonte praticamente coincide com a fundação da capital mineira. Nas duas primeiras décadas de existência de Belo Horizonte, já existiam assentamentos na zona urbana da cidade e o censo realizado em 1912 apontava a precariedade de quase um terço de suas mais de seis mil construções, classificadas como barracos.
Planejada segundo os padrões urbanísticos mais avançados da época, e tendo como finalidade sediar o aparato administrativo do governo, a área prevista para abrigar os operários de Belo Horizonte não era o bastante para atender ao fluxo de trabalhadores. Assim, as invasões se constituíram na solução de moradia da população mais pobre.
Segundo dados do IBGE/2005: de 6,5 milhões de pessoas que vivem no País em aglomerados subnormais, a metade está nos estados de São Paulo (2,07 milhões) e do Rio de Janeiro (1,38 milhão). Dois em cada três desses brasileiros moram nas capitais onde o número de moradores das favelas cresceu 39,3% na década de 1990, passando de 3 milhões para 4,2 milhões.
Também segundo dados do IBGE/2008:
a existência de favelas é maior nos municípios mais populosos: quando considerado o total de 5.564 municípios brasileiros, cerca de 33% declararam ter favelas; mas, considerando-se aqueles entre 100 mil e 500 mil habitantes, o percentual chega a 84,7% e, dos 37 municípios com população acima de 500 mil habitantes, todos, exceto Cuiabá (MT), informaram a existência de favelas. O percentual de municípios que declararam a existência de favelas é maior nas regiões Norte e Nordeste (41%), enquanto a presença de loteamentos irregulares é mais informada nas regiões Sul (62,4%) e Sudeste (59,0%).
As favelas fazem parte do cenário das cidades brasileiras. Basta passar os olhos pelos centros urbanos para que se constate a sua existência.
2.2. FAVELAS E HABITAÇÃO
Segundo RODRIGUES (2003, p. 40), as causas sociais das favelas são as mais variadas possíveis, e, em regra, estão ligadas à falta de moradias suficientes para atender à demanda de crescimento das cidades:
A favela surge da necessidade do onde e como morar. Se não é possível comprar uma casa pronta, nem terreno onde auto-construir, tem-se que buscar uma solução. Para alguns essa solução é a favela. A favela é a conjugação de vários processos: da expropriação dos pequenos proprietários rurais e da superexploração da força de trabalho no campo, que conduz a sucessivas migrações rural-urbana e também urbana-urbana, principalmente de pequenas e médias para as grandes cidades. É também produto do processo de empobrecimento da classe trabalhadora em seu conjunto.
Como se colhe do trecho acima transcrito, a favela é uma resposta à insuficiência da capacidade de absorção das cidades em face do aumento populacional destas.
Segundo PERLMAN (2002, p. 32), é provável que nos países em desenvolvimento não se esteja conseguindo o necessário aumento das oportunidades de trabalho, serviços urbanos, infra-estrutura, acomodações e capacidade administrativa, que permita absorver o atual crescimento populacional.
O fato de serem descuidados pelo poder público faz com que tais aglomerados2, que sempre foram combatidos, também pelo uso da força3, se proliferem, aumentando, via de conseqüência, a exclusão social.
É a favela a imagem estigmatizada da exclusão social marcada pela pobreza, pela violência, pela marginalização, pela degradação da pessoa humana, e principalmente pelo afastamento do Estado. Ela nasce, cresce e se reproduz a partir da informalidade da forma de habitação, mas que se reflete na exclusão da saúde, da educação, da segurança, do mercado de trabalho, de infra-estrutura básica, da dignidade (CARBONARI).
2.3. O DIREITO DE LAJE
2.3.1. Conceito
O direito de laje – vulgarmente chamado de puxadinho – consiste na cessão da parte superior (laje) de uma construção a terceira pessoa, para que esta edifique outra unidade. Tal situação resulta em duas ou mais unidades distintas, com titulares distintos: uma embaixo e outra, construída sobre a primeira, e assim sucessivamente.
Acerca do direito de laje, CARBONARI assevera que este consiste “no poder de disposição que o proprietário da construção tem sobre o espaço aéreo imediatamente superior à sua construção, e que, pela cultura popular desenvolvida nas favelas, lhe pertence por direito”.
A alienação da laje para que sobre ela outrem possa construir é fato comum nas favelas e subúrbios nacionais4, basta lançar um olhar sobre a estrutura destes aglomerados que constatamos a verticalização das construções ali existentes. A despeito disso, não é reconhecida pelo ordenamento jurídico pátrio.
CORREA constata que o direito de laje é uma realidade não amparada em lei. Segundo pesquisa de campo por ela realizada na favela de Rio das Pedras, na cidade do Rio de Janeiro, a autora conclui que é o direito de laje instituído através de uma “comercialização de espaço para moradia, que está acima da superfície, como meio indispensável à sobrevivência da população, de seus familiares e da participação na comunidade local”. (CORREA, 2008, p. 1006)
Segundo a referida autora (2008, p. 1009):
O crescimento vertical se socializou dentro do contexto da própria favela apoiado no ‘direito de laje’. Tal direito é aceito na comunidade, e se atualiza de diversas formas. A mais comum se dá quando um morador primitivo vende à outra pessoa o ‘direito’ de construir moradia sobre a laje de sua casa. Esse ‘direito’ é admitido entre as partes, mesmo quando o ‘contrato’ ocorre em situações especiais, como a do futuro morador primitivo do terreno de superfície, vender [sic] sua ‘laje’, sem ter construído sua casa, ou seja, sem a ‘laje’ estar feita.
Outra conseqüência que decorre do ‘direito de laje’ seria a pluralidade de construções de unidades autônomas, edificadas sobre a laje do morador primitivo [...] Essa realidade imobiliária tem grande avanço na ocupação do espaço urbano nas favelas do Rio de Janeiro, manifestando-se, inclusive como uma forma de especulação e significativa circulação de capital nas comunidades.
A autora registra, ainda, a ocorrência de casos em que é vendida laje ainda inexistente (venda de laje futura). Nestas situações, o vendedor aliena a laje para que terceiro nela construa, todavia, tal laje ainda não foi construída. Com o dinheiro recebido, é que a casa inicial é edificada, para, somente após, o adquirente edificar a sua casa nos termos do contrato.
Esse tipo de situação acaba por gerar renda àqueles que alienam sua laje. Outra justificativa que deve ser considerada é a redução do custo para a aquisição da casa própria, do acesso à moradia, para aquele que adquire o direito de construir sobre a laje, porquanto este não terá que adquirir um terreno para nele edificar.
A construção sobre lajes já existentes é, destarte, um fenômeno corriqueiro, porém a despeito de ser trivial, não é regulamentado no ordenamento jurídico pátrio, ficando caracterizada uma lacuna neste tocante.
2.3.2. Direito de laje como instrumento de acesso ao direito social de moradia
Através do contrato em que transfere o direito de laje, o morador primitivo, que pode ser possuidor, titular de direito real de concessão de uso etc, autoriza ao adquirente construir na laje de seu imóvel. Tem-se, assim, a verticalização dos bens e o aumento de moradias para diversas pessoas.
Não se ambiciona com este trabalho apreciar as condições em que as construções são realizadas5. Pretende-se, sim, examinar a relevância do direito de laje, seja porque este é realidade social brasileira, seja porque através do direito de laje oportuniza-se o acesso à moradia, previsto constitucionalmente como direito social fundamental6.
Certo é que os direitos sociais podem assumir feição prestacional, como também feição de liberdades.
No que tange à moradia, SARLET (2009, p. 282) destaca que esta pode ser vislumbrada como um direito positivo – aí assumiria o enfoque prestacional -, assim também como um direito subjetivo negativo – no sentido de permitirem a oposição a atos contrários à sua concretização, o que ocorre, por exemplo, com a vedação de penhora sobre o bem de família, destinado à moradia.
Não obstante a relevância do aspecto negativo de proteção do direito de moradia, interessa a este trabalho a sua feição positiva, no sentido de que ao Estado compete assegurar positivamente o acesso à moradia, através de normas e medidas.
SARLET (2009, p. 284), sobre os direitos sociais a prestações, aduz que
não se dirigem à proteção da liberdade e igualdade abstrata, mas sim, como já assinalado alhures, encontram-se intimamente vinculados às tarefas de melhora, distribuição e redistribuição dos recursos existentes, bem como à criação de bens essenciais não disponíveis para todos os que dele necessitem.
No que tange ao direito à moradia, em seu enfoque prestacional, este poderá ser viabilizado e efetivado tanto por meio de normas específicas7, quanto através da adoção de prestações materiais, como ocorre com o financiamento para a aquisição de casas próprias. (SARLET, 2009, p. 331)
Seguindo este raciocínio, a previsão legal do direito de laje, com a regulamentação de sua instituição e promoção ao seu acesso, acabaria por promover o acesso à moradia, assegurando ao indivíduo o ingresso ao mínimo existencial.
Por conseguinte, abarcar o direito de laje no ordenamento pátrio seria um meio de efetivação da dignidade da pessoa humana, princípio fundamental consagrado na Constituição Federal de 1988.
2.3.3. A falta de legislação estatal adequada à realidade social
A despeito de ser uma prática social reiterada, não foi o direito de laje inserido em qualquer diploma legal, resultando em clara dissonância entre os fatos sociais e o direito estatal.
É realidade social brasileira a contratação entre particulares em que o proprietário, o possuidor ou o titular de direito real de concessão de uso aliena a terceiro o direito de construir na laje de seu imóvel. Porém, como já observado, a contratação em apreço não é tratada pelas normas jurídicas em vigor, estando configurado um flagrante descompasso entre o Direito e a realidade. Conseqüência disso é, além da ausência de compatibilidade entre as normas e a vida social, a marginalização de muitas situações constituídas à parte do Direito oficial.
Tal fato resulta no crescimento vertical e desordenado das favelas, o que poderia e deve ser superado através das políticas públicas de desenvolvimento, voltadas à efetivação dignidade da pessoa humana.
Pelo que se percebe neste caso em particular, Direito e realidade, a despeito de relacionados entre si8, estão em evidente desarmonia, seja porque a produção legislativa não consegue acompanhar os fatos sociais, ou, o que é mais adequado ao caso do direito de laje, por falta de vontade legislativa.
Apreciando o descompasso entre Direito e realidade social, DIAS (2010, p. 26) aduz que:
Pretende o direito, em tese, abarcar todas as situações fáticas em seu âmbito de regulamentação. Daí a instituição de modelos preestabelecidos de relações jurídicas relevantes a sustentar o mito da completude do ordenamento. Entretanto, a realidade social é dinâmica e multifacetada. Ainda que tente a lei prever todas as situações dignas de tutela, as relações sociais são muito mais ricas e amplas do que é possível conter uma legislação. A moldura dos valores juridicamente relevantes torna-se demasiado estreita para a riqueza dos fatos concretos. A realidade sempre antecede ao Direito, os atos e fatos tornam-se jurídicos a partir do agir das pessoas de modo reiterado. A existência de lacunas no direito é decorrência lógica do sistema e surge no momento da aplicação do direito a um caso sub judice não previsto pela ordem jurídica.
Segundo FACHIN, a demanda suscitada pela realidade impinge ao Direito uma providência: a de adequar-se às exigências da sociedade, com características plurais, respeitando-se, assim, a diversidade – o indivíduo, enquanto pessoa humana dotada de dignidade, em primeiro lugar. (2000, p. 39)
O déficit legislativo9 é devido a dois fatores principais. O primeiro diz respeito à dificuldade que o legislador tem de acompanhar a evolução dos fatos sociais – a velocidade em que estes ocorrem – o que aguça a separação entre o jurídico e o real. Há, também, a falta de vontade de legislar. Mesmo diante do clamor da sociedade para que determinados fatos sejam abarcados pelo Direito, deixa-se de atender à realidade, por apatia, inércia, ou mesmo, por resistência.
Como bem destaca MONREAL (1988, p. 24), em alguns casos, o legislador não está disposto a adaptar-se ao curso histórico determinado pela realidade e pelas necessidades sociais. A conseqüência deste descompasso entre o Direito e a realidade acaba por resultar em obstáculo para o progresso social.
No caso do direito de laje, fato social ordinário, o que se tem é a ausência de amparo legal10, que tem como conseqüência direta a sua marginalização. Seja porque se prega classicamente que os direitos reais são apenas os tipificados em lei e a listagem legal tem o caráter taxativo, seja porque, a despeito de ser fato comum, ficou o legislador inerte, deixando de regulamentar esta situação.
FACHIN (2000, p. 184) destaca que
À medida que certos comportamentos – espelhados em um fato – geram efeitos jurídicos, tais fatos se impõem perante o Direito, obrigando-o a abrir-se para acolher o que, a rigor, estava na periferia desse mesmo ordenamento jurídico.
Esta seria uma forma para a solução para o déficit habitacional evidenciado ao longo deste trabalho11.