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A tutela penal da flora como instrumento de proteção dos recursos hídricos

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31/10/2012 às 15:35
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3. AS ÁREAS DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE, OS CRIMES CONTRA A FLORA E A PROTEÇÃO DOS RECURSOS HÍDRICOS

As matas ciliares exercem um papel primordial na proteção da qualidade de tão valioso recurso, que é a água potável.

Tal função é explicada de maneira escorreita pelo Dr. Saint-Clair Honorato Santos, Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado do Paraná:

O solo quando privado de sua cobertura florestal fica modificado em sua estrutura e perde as propriedades físico-químicas capazes de garantir a retenção da água.

A vegetação existente ao longo dos rios funciona como um obstáculo natural ao escoamento das águas, que ficam retidas e são absorvidas, em grande parte, pela mata, evitando que uma quantidade exagerada de partículas sólidas sejam arrastadas e depositadas no leito dos rios (SANTOS, 1997).

Como decorrência, temos o seguinte contexto:

Além de evitar o assoreamento do leito dos rios, a mata ciliar consiste num ecossistema peculiar que abriga uma diversidade florística e faunística de vital importância para o equilíbrio de toda uma região. Além de proteger indiretamente a fauna aquática, posto evitar o transporte de resíduos de agrotóxicos utilizados largamente na agricultura, o que, na ausência de mata ciliar, são arrastados para os rios ocasionando, não raras vezes, a morte de peixes em função da poluição que provoca.

Os efeitos catastróficos, provocados pela supressão da mata ciliar, não se restringem aos limites geográficos da área em que está localizado o dano, vindo a atingir dimensões regionais e quiçá supranacionais (SANTOS, 1997).

Os principais danos ambientais decorrentes da eliminação da mata ciliar são elencados pelo supracitado douto nos seguintes termos:

a) FAVORECIMENTO DE PROCESSOS EROSIVOS, decorrente da supressão da vegetação fixadora do solo, possibilitando o carreamento de partículas sólidas, as quais ficarão depositadas nas áreas mais rasas ou obstáculos naturais do rio, causando seu ASSOREAMENTO, o que compromete a sustentação do leito do rio e facilita a ocorrência de inundações, já que ausente a vegetação responsável pelo equilíbrio hídrico da região;

b) DESTRUIÇÃO DA FAUNA, em razão da supressão do substrato vegetal da qual esta depende, afeta de forma radical espécies silvestres, entre outras (SANTOS, 1997). Grifo do autor.

Ademais, “a desproteção das cabeceiras de alguns importantes cursos de água é responsável, inclusive, pelos baixos índices quantitativos e qualitativos das águas de abastecimento de aglomerados urbanos” (MILARÉ, 2005, p. 281).

O novo Código Florestal (BRASIL, Lei nº 12.651/2012) cuidou da tutela da água de maneira indireta, porém deveras importante, ao conferir às faixas marginais de qualquer curso d’água natural, o status de áreas de preservação permanente (art. 4º, inciso I).

Por outro lado, como bem destacado por Édis Milaré, é impossível enumerar todos os efeitos maléficos e indesejáveis dos danos causados à flora:

Desertificação, erosão, incêndios, infertilidade, assoreamento de corpos de água, mudanças climáticas constituem uma resenha apenas reduzida e pobre de alguns danos ambientais. Os prejuízos ecológicos, econômicos, científicos e outros mais, não comportam avaliação nem imaginação. O dano social que é repassado para o processo de desenvolvimento nacional não pode ser ponderado, assim como os custos decorrentes para a qualidade do meio ambiente, desde a modesta escala local até a inquietante escala global (MILARÉ, 2005, p. 305).

Diante da vasta complexidade do significado ecológico da flora e dos danos à ela causados, complexidade esta que não raro foge à compreensão mesmo de cientistas das searas biológica e ecológica, este trabalho busca dedicar atenção a um pequeno, porém deveras importante, aspecto dessa problemática, qual seja, a proteção dos recursos hídricos.

As normas penais são criadas pelo Estado com o objetivo de defender os bens jurídicos mais valiosos ao convívio social.

Quiçá todos os tipos penais protegem, direta ou indiretamente, bens jurídicos qualificados pela Constituição Federal como direitos fundamentais.

Justificada está, portanto, a tutela penal do meio ambiente.

Ora, preservar e restabelecer o equilíbrio ecológico em nossos dias é questão de vida ou morte. Os riscos globais, a extinção de espécies animais e vegetais, assim como a satisfação de novas necessidades em termos de qualidade de vida, deixam claro que o fenômeno biológico e suas manifestações sobre o Planeta estão sendo perigosamente alterados. E as conseqüências desse processo são imprevisíveis, já que “as rápidas mudanças climáticas, (...) a menor diversidade de espécies fará com que haja menor capacidade de adaptação por causa da menor viabilidade genética e isto estará limitando o processo evolutivo, comprometendo inclusive a viabilidade de sobrevivência de grandes contingentes populacionais da espécie humana”. Por isso, arranhada estaria a dignidade do Direito Penal caso não acudisse a esse verdadeiro clamor social pela criminalização das condutas antiecológicas (MILARÉ, 2005, p. 845).

Em verdade, todos os crimes contra a flora previstos na Lei nº 9.605/98 tem relação, mais ou menos direta, com a gestão das águas, com especial destaque para as figuras típicas previstas nos arts. 38, 39 e 44 da Lex em questão, bem como para a causa de aumento de pena do art. 53, inciso I.

Vê-se que, além do contido na Carta Magna, a legislação infraconstitucional brasileira é vasta e expressiva, formando uma fina malha voltada à proteção do meio ambiente.

Todavia, uma advertência é deveras oportuna:

Não basta, entretanto, apenas legislar. É fundamental que todas as pessoas e autoridades responsáveis se lancem ao trabalho de tirar essas regras do limbo da teoria para a existência efetiva da vida real; na verdade, o maior dos problemas ambientais brasileiros é o desrespeito generalizado, impunido ou impunível, à legislação vigente. É preciso, numa palavra, ultrapassar a ineficaz retórica ecológica – tão inócua quanto aborrecida – e chegar às ações concretas em favor do ambiente e da vida. Do contrário, em breve, nova modalidade de poluição, a “poluição regulamentar” – ocupará o centro de nossas preocupações (MILARÉ, 2005, p. 185).

Nas palavras de Antonio Herman Benjamin “constitucionalizar é uma coisa; constitucionalizar bem, outra totalmente diferente. Ninguém deseja uma constituição reconhecida pelo que diz e desprezada pelo que faz ou deixa de fazer” (in CANOTILHO; LEITE, 2011, p. 81).

Em verdade, talvez a própria legislação dos crimes ambientais seja falha:

Não se pode esquecer jamais que a lei é farol que ilumina e aponta os horizontes; não é barreira para apenas impedir a caminhada. Toda lei tem defeitos, que se tornam mais evidentes quando passa ela a ser aplicada. Cumpre aos tribunais aparar-lhe as arestas, criando jurisprudência que consolide as interpretações mais razoáveis (MILARÉ, 2005, p. 185).

Pode-se exemplificar a paradoxal deficiência da vasta legislação ambiental brasileira com o fato de boa parte da doutrina lamentar o veto presidencial aposto ao art. 43 da Lei nº 9.605/98, que na redação original do projeto criminalizava o uso de fogo em vegetação sem as cautelas necessárias para evitar a sua propagação. Em todo caso, a conduta em questão eventualmente pode configurar o delito previsto no art. 54 da Lei nº 9.605/98.

Apesar dos senões, a Lei nº 9.605/98 proporcionou um “[...] inegável avanço no ordenamento jurídico ambiental com o tratamento agora mais sistêmico da tutela penal [...]”, “[...] continuando os juristas pátrios com o débito de escrever para a nossa sociedade um Direito Ambiental Penal à altura do grande patrimônio que precisamos defender para as porvindouras gerações” (MILARÉ, 2005, p. 884-885).


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Cabe ao operador do direito tomar as providências que lhe forem acessíveis, de forma a efetivar os mandamentos constitucionais e infraconstitucionais de proteção do meio ambiente.

Com efeito, note-se que, uma vez que elevam a tutela ambiental ao nível de direito fundamental, as respectivas disposições constitucionais tem aplicação imediata.

Caso se tenha em mente uma visão sistêmica e holística, no sentido de que os elementos abióticos (água, ar e solo) e bióticos que compõem os ecossistemas estão indissociavelmente interligados, num processo contínuo de interação, é possível constatar que a tutela penal da flora não se presta apenas para proteger a vegetação.

Ao conferir às matas ciliares a condição de áreas de preservação permanente (art. 4º do Código Florestal), e incriminar sua destruição, ou mesmo o simples corte não autorizado de árvores nessas áreas (arts. 38 e 39 da Lei nº 9.605/98), o direito visa também à proteção dos recursos hídricos, da fauna, da saúde e da vida do ser humano, enfim, de uma série de bens jurídicos, todos, em última análise, interdependentes.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Sobre o autor
Paulo Antonio dos Santos

Bacharel em Direito pelo Centro de Ciências Sociais aplicadas da Universidade Estadual do Norte do Paraná - UENP. Servidor do Ministério Público do Estado do Paraná (Oficial de Promotoria, ex-Assessor de Promotor de Justiça). Aprovado no exame da Ordem dos Advogados do Brasil em 2009. Especialista em Direito Ambiental pelo Centro Universitário Internacional UNINTER e em Direito Contemporâneo pela Universidade Cândido Mendes. Currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/6665338827431312.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Paulo Antonio. A tutela penal da flora como instrumento de proteção dos recursos hídricos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3409, 31 out. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22924. Acesso em: 25 abr. 2024.

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