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A tutela penal da flora como instrumento de proteção dos recursos hídricos

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31/10/2012 às 15:35
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Ao conferir às matas ciliares a condição de áreas de preservação permanente (art. 4º do Código Florestal), e incriminar sua destruição, ou mesmo o simples corte não autorizado de árvores nessas áreas (arts. 38 e 39 da Lei nº 9.605/98), o direito visa também à proteção dos recursos hídricos.

Resumo: O contexto internacional iniciado após a Segunda Guerra Mundial (globalização do mercado e de todas as formas de relacionamento humano; expansão do desenvolvimento científico e tecnológico; formação de uma verdadeira sociedade de massa) abriu o espaço para o reconhecimento dos chamados direitos fundamentais de terceira geração. O direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado possui exatamente tal status. É comum, contudo, a contraposição desse direito a outro igualmente fundamental: o direito ao desenvolvimento. Por outro lado, o desenvolvimento sustentável pode ser apontado como a forma de equacionar o conflito entre esses dois legítimos interesses humanos aparentemente colidentes. Sob outro ponto de vista, destaca-se que a função do direito penal é tutelar os valores mais importantes da ordem jurídica. Com efeito, aparentemente todos os bens jurídicos tutelados pelos tipos penais afiguram-se, direta ou indiretamente, como direitos fundamentais. Assim, com relação ao direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, não podia ser diferente. Outrossim, verifica-se que os crimes contra a flora, ao terem como objeto material as coberturas vegetais do solo, também desempenham outra importante função ambiental, qual seja, resguardar os recursos hídricos, que estão cada vez mais valiosos e mais escassos.

Palavras-chave: Direitos Fundamentais. Água. Crimes contra a flora.


INTRODUÇÃO

A preservação ambiental é um assunto amplamente discutido todos os dias, em todos os meios de comunicação.

O tema, além de deveras relevante, é extremamente vasto. Portanto, para melhor ser analisado, carece de delimitação.

Desta feita, estuda-se aqui a importância da água e das matas ciliares, bem como a correlação entre a tutela penal da flora e a proteção dos recursos hídricos.

Embora a principal fonte imediata de tutela jurídica da água seja a Lei nº 9.433/97, que institui a Política Nacional de Recursos Hídricos, busca-se, por meio da abordagem proposta, o estabelecimento uma análise multidisciplinar.

Dedicar a devida atenção às matas ciliares talvez seja pouco diante do cenário de devastação natural que se descortina hodiernamente. Porém, é uma das muitas formas pelas quais se pode buscar fazer valer o mandamento constitucional de preservar o meio ambiente para as presentes e futuras gerações.


1. O DIREITO FUNDAMENTAL AO DESENVOLVIMENTO VERSUS O DIREITO FUNDAMENTAL AO MEIO AMBIENTE ECOLOGICAMENTE EQUILIBRADO.

A temática da proteção ambiental começou a ganhar relevo somente nas últimas décadas do século XX.

Por esse motivo, é normal que boa parte das constituições mais antigas (incluindo aquelas que vigoravam no Brasil antes de 1988) não tenha cuidado especificamente da matéria.

Entretanto, os Estados soberanos sempre promulgaram (e ainda promulgam) normas esparsas de proteção ambiental.

No caso específico do Brasil, mesmo ainda sob a égide da Constituição de 1967 e da Emenda Constitucional nº 01/69, doutrinadores já apontavam o direito ao meio ambiente como ínsito ao direito à vida e à saúde, bem como propunham à Assembleia Constituinte (que viria a promulgar a Constituição 1988) a proteção jurídico-constitucional expressa ao bem “meio ambiente” (Cf. CABRAL, 1987).

Conforme Édis Milaré, se os textos supremos anteriores a 1988 não se preocuparam com a questão ambiental, a nova ordem constitucional inaugurada com a carta cidadã pode ser considerada um dos sistemas mais abrangentes, atuais e avançados do mundo sobre a tutela do patrimônio natural (2005, p. 184).

Assim, nos regimes constitucionais modernos, a proteção ao meio ambiente, embora sem perder seu vínculo original com a saúde, ganha identidade própria, sendo elevado à categoria de bem jurídico de per si (MILARÉ, 2005, p. 180).

Seguindo essa tendência, reza o art. 225, caput, da atual Carta Magna:

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

As diretrizes constitucionais da proteção ao meio ambiente vêm elencadas nos parágrafos do supracitado dispositivo.

“Ao proclamar o meio ambiente como ‘bem de uso comum do povo’, foi reconhecida a sua natureza de ‘direito público subjetivo’, vale dizer, exigível e exercitável em face do próprio Estado, que tem também a missão de protegê-lo” (MILARÉ, 2005, p. 186).

Nesse sentido, o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado reveste-se do status de direito fundamental de terceira geração, relevante para a própria existência humana.

É possível constatar, junto com Luiz Alberto David Araujo e Vidal Serrano Nunes Júnior (2006, p. 111, 114), que os direitos fundamentais de terceira geração (inclusive o direito a um meio ambiente equilibrado) não estão voltados à liberdade do ser humano (direitos fundamentais de primeira geração), ou ao atendimento de suas necessidades (direitos fundamentais de segunda geração), mas à sua preservação.

Seguindo a tendência já apontada de se incluir nas Constituições o meio ambiente como bem jurídico autônomo, a Carta brasileira erigiu-o à categoria de um daqueles valores ideais da ordem social, dedicando-lhe, a par de uma constelação de regras esparsas, um capítulo próprio que, definitivamente, institucionalizou o direito ao ambiente sadio como um direito fundamental do indivíduo (MILARÉ, 2005, p. 186). Grifo do autor.

De outro tanto, José Afonso da Silva expõe o seguinte sobre a preponderância do direito à vida - e ao meio ambiente equilibrado, enquanto seu corolário - sobre os outros interesses também salvaguardados constitucionalmente:

As normas constitucionais assumiram a consciência de que o direito à vida, como matriz de todos os direitos fundamentais do homem é que há de orientar todas as formas de atuação no campo da tutela do meio ambiente. Compreendeu que ele é um valor preponderante, que há de estar acima de quaisquer considerações como as de desenvolvimento, como as de respeito ao direito de propriedade, como as da iniciativa privada. Também estes são garantidos no texto constitucional, mas, a toda evidência, não podem primar sobre o direito fundamental à vida, que está em jogo quando se discute a tutela da qualidade do meio ambiente, que é instrumental no sentido de que, através dessa tutela, o que se protege é um valor maior: a qualidade da vida humana (1991, p. 709-710). Grifo do autor.

Com efeito, salvaguardar o meio ambiente é uma forma de conferir real efetividade à vida humana e sua dignidade, provavelmente os principais valores da ordem normativa inaugurada com a Carta de 1988.

Nas sempre precisas palavras de Édis Milaré:

“o reconhecimento do direito a um meio ambiente sadio configura-se, na verdade, como extensão do direito à vida, quer sob o enfoque da própria existência física e saúde dos seres humanos, quer quanto ao aspecto da dignidade dessa existência – a qualidade de vida –, que faz com que valha a pena viver” (2005, p. 158-159).

Enquanto direito fundamental, o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado reveste-se do status de cláusula pétrea, ocupa uma posição hierárquica superior às demais normas que compõem o ordenamento jurídico e deve nortear toda a legislação infraconstitucional, bem como a atuação dos particulares e do poder público.

Por outro lado, a explosão demográfica, o consumo desenfreado e desregulado dos recursos naturais, o desenvolvimento tecnológico e a consequente geração de poluição são os principais fatores responsáveis pela degradação do meio ambiente.

Assim, a problemática do direito ao desenvolvimento versus o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é um típico caso de conflito entre direitos fundamentais. Tal colisão verifica-se não apenas empiricamente no mundo dos fatos, mas também no âmbito das declarações internacionais de direitos (incluindo aquelas de caráter não cogente, sem autoridade jurídica stricto sensu) e das constituições.

Todavia, como se poderá verificar nos exemplos (não exaustivos) a seguir, os referidos textos geralmente estabelecem, direta ou indiretamente, o desenvolvimento sustentável como diretriz para compatibilizar esses interesses colidentes.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada e proclamada pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas em 1948, já nas primeiras linhas de seu preâmbulo aponta a dignidade da pessoa humana como vetor de um mundo liberto, justo e pacífico. Depois, vem consagrar que toda pessoa tem direito à vida (artigo III) e a uma ordem internacional em que todos os seus direitos e liberdades fundamentais possam ser plenamente realizados (artigo XXVIII).

Verdadeiro marco do início da preocupação internacional com a questão ambiental, a Declaração sobre o Meio Ambiente Humano, também conhecida como Declaração de Estocolmo, aprovada na Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, realizada em 1972 na capital sueca, trata tanto da preservação dos ecossistemas naturais em benefício das gerações presentes e futuras (reconhecendo que a qualidade do meio ambiente é essencial ao desfrute dos direitos fundamentais, incluindo a própria vida) quanto da indispensabilidade do desenvolvimento econômico e social para que o homem possa gozar de melhores condições de vida.

Já conforme o art. 1º, § 1, da Declaração das Nações Unidas sobre o Direito ao Desenvolvimento (1986):

O direito ao desenvolvimento é um direito humano inalienável, em virtude do qual toda pessoa e todos os povos estão habilitados a participar do desenvolvimento econômico, social, cultural e político, para ele contribuir e dele desfrutar, no qual todos os direitos humanos e liberdades fundamentais possam ser plenamente realizados.

Logo na sequência, o § 2 do art. 1º diz que o direito ao desenvolvimento implica no direito da cada povo exercer plena soberania sobre todas as suas riquezas e recursos naturais. Por outro lado, o art. 6º, § 2, lembra que todos os direitos humanos são indivisíveis e interdependentes.

A Convenção sobre Diversidade Biológica, assinada durante a II Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente, realizada no Rio de Janeiro em 1992, apesar de reconhecer que os Estados têm direitos soberanos sobre seus próprios recursos biológicos, ressalta que eles são responsáveis pela conservação de sua diversidade biológica, a qual vem sendo progressiva e diuturnamente diluída pela atividade humana.

No mesmo sentido, segundo o Princípio 2 da Declaração sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, proclamada na mesma ocasião:

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Os Estados, de conformidade com a Carta das Nações Unidas e com os princípios de Direito Internacional, tem o direito soberano de explorar seus próprios recursos segundo suas próprias políticas de meio ambiente e desenvolvimento, e a responsabilidade de assegurar que atividades sob sua jurisdição ou controle não causem danos ao meio ambiente de outros Estados ou de áreas além dos limites da jurisdição nacional.

Ademais, conforme o preâmbulo da Convenção sobre Diversidade Biológica, os países signatários estão cientes da relevância da biodiversidade para a evolução e para a manutenção da vida no planeta, motivo pelo qual sua conservação deve ser uma preocupação comum a toda comunidade internacional.

Entretanto, ao mesmo tempo em que o referido acordo reconhece que o desenvolvimento econômico e social e a erradicação da pobreza são principais prioridades dos países subdesenvolvidos, também menciona o desenvolvimento sustentável como a solução para essa problemática.

Conforme os Princípios 3 e 4 da Declaração sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, “o direito ao desenvolvimento deve ser exercido de modo a permitir que sejam atendidas eqüitativamente as necessidades de gerações presentes e futuras”, e “para alcançar o desenvolvimento sustentável, a proteção ambiental deve constituir parte integrante do processo de desenvolvimento, e não pode ser considerada isoladamente deste”.

E o Princípio 25 reforça a ideia do art. 6º, § 2, da Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento, ao rezar que “a paz, o desenvolvimento e a proteção ambiental são interdependentes e indivisíveis”.

Em 2005, a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) aclamou a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos. O documento, que proveio da reflexão sobre as implicações do desenvolvimento científico e tecnológico, destaca a capacidade do ser humano de refletir e dominar a própria existência e o meio ambiente, bem como a necessidade de a comunidade internacional adotar princípios que norteiem a busca de respostas para os dilemas que a ciência representa à própria espécie humana e à vida na Terra.

Ora, uma das características intrínsecas dos direitos fundamentais é a limitabilidade. Não raro dois ou mais direitos fundamentais distintos se antagonizam. E quando isso ocorrer, não se poderá “[...] negar vigência e aplicabilidade a nenhum dos direitos em colisão, pois que sempre haverá uma esfera mínima para seu exercício legítimo” (ARAUJO; NUNES JÚNIOR, 2006, p. 122).

Portanto, o princípio do desenvolvimento sustentável, ou seja, a conciliação entre o desenvolvimento, a preservação do meio ambiente e a melhoria da qualidade de vida é a forma de conferir efetividade a esses dois valores tutelados constitucionalmente.

Estamos, por conseguinte, diante de um duplo direito: “o direito do ser humano de desenvolver-se e realizar suas potencialidades, individual ou socialmente, e o direito de assegurar aos seus pósteros as mesmas condições favoráveis” (MILARÉ, 2005, p. 56).

Em outras palavras, “ao direito de usufruir corresponde o dever de cuidar” (MILARÉ, 2005, p. 56).

Tal compreensão foi adotada pelo constituinte de 1988:

A CF/88, nos termos do art. 170, caput, e VI, estabelece que a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre-iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados, dentre outros princípios, o da defesa do meio ambiente [...]  (LENZA, 2011, p. 1089-1090).

Como se vê, a integridade do meio ambiente é uma limitação constitucional explícita à atividade econômica.

Como bem salientado por Antonio Herman de Vasconcellos e Benjamin, Ministro do STJ, a constitucionalização do direito ambiental estabelece um dever genérico de não degradar, ou seja, cria um regime de explorabilidade limitada e condicionada, agregando um forte e explícito componente ambiental aos direitos de propriedade e de livre iniciativa (in CANOTILHO; LEITE, 2011, p. 89-92).

A nível infraconstitucional, apesar de existir todo um emaranhado de normas que de alguma forma falem (ainda que indiretamente) em sustentabilidade, a Lei 6.938/1981 estabelece que a Política Nacional do Meio Ambiente visará, entre outros objetivos, “à compatibilização do desenvolvimento econômico social com a preservação da qualidade do meio ambiente e do equilíbrio ecológico” (art. 4º, inciso I).

A sustentabilidade apresenta-se, então, como a chave mestra para a solução desse aparente conflito de valores constitucionalizados, seja mediante a garantia do direito ao desenvolvimento, seja prestigiando a preservação do ser humano e seus direitos fundamentais (LENZA, 2011, p. 1090).

Como bem destacou Édis Milaré, “é falso o dilema ‘ou desenvolvimento ou meio ambiente’, na medida em que, sendo um fonte de recursos para o outro, ambos devem harmonizar-se e complementar-se” (MILARÉ, 2005, p. 53).

Em outras palavras, isto implica dizer que a política ambiental não deve se erigir em obstáculo ao desenvolvimento, mas sim em um de seus instrumentos, ao propiciar a gestão racional dos recursos naturais, os quais constituem a sua base material (MILARÉ, 2005, p. 53).

Todavia, existem duas dificuldades que fazem do desenvolvimento sustentável um ideal de difícil (porém não impossível) alcance.

 A primeira é que o conceito de meio ambiente ecologicamente equilibrado é impreciso. Determinar esse conceito é papel das ciências biológicas.

E não é só isso:

Não figura, por ora, no Direito do Ambiente, a consagração do “desenvolvimento sustentável” nem da “sustentabilidade” como normas explícitas e bem definidas de conduta da sociedade ou do Poder Público, uma vez que nenhum instrumento legal propôs-se a defini-los, consignar formalmente as suas características e estabelecer formas e requisitos para sua aplicação. A nosso ver, é uma simples questão de hermenêutica: embora esta nomenclatura não conste nos parâmetros e disposições legais, os objetivos da sustentabilidade constam, sim, do Direito enquanto ciência e como prática, cabendo ao interessado saber ler e interpretar os textos da legislação (MILARÉ, 2005, p. 62). Grifo nosso.

Ainda assim é possível manter o otimismo, pois apesar de ser rodeada pela imprecisão conceitual exposta, a noção de desenvolvimento sustentável vem sendo recebida com muito entusiasmo pelos tribunais pátrios.

A título de exemplo, o STF, no julgamento da ADI 3.540-1, explicita que o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é um típico direito fundamental de terceira geração (ou de novíssima dimensão) que consagra o postulado da solidariedade; esclarece que “a atividade econômica não pode ser exercida em desarmonia com os princípios destinados a tornar efetiva a proteção ao meio ambiente”; prega que o princípio do desenvolvimento sustentável será o “fator de obtenção do justo equilíbrio entre as exigências da economia e as da ecologia”.


2. A IMPORTÂNCIA DA ÁGUA E A CRISE DE SUA ESCASSEZ.

A vida de todos os seres vivos, dos mais simples aos mais complexos, começa na água. Da mesma forma que os seres unicelulares vivem imersos nas soluções aquosas, é igualmente verdadeiro que a fecundação das células gaméticas de invertebrados e vertebrados ocorre em meio líquido. O desenvolvimento dos seus embriões, também. Aproximadamente 65% (sessenta e cinco por cento) da composição corporal humana adulta se deve, pura e simplesmente, à preciosa substância química em tela.

A água está presente de maneira tão corriqueira em nosso cotidiano que, infelizmente, quase sempre nos esquecemos de sua importância, a qual só vem à tona quando ela falta, ou não apresenta qualidade (COMO CUIDAR DA NOSSA ÁGUA, p. 10).

De fato, ao mesmo tempo em que o ser humano vasculha os confins do universo à procura de corpos celestes que contenham água, no afã de encontrar indícios de vida em outros planetas, ele vira as costas para a água existente na Terra e para a própria vida.

A água tem fundamental importância não apenas do ponto de vista bioquímico, mas também numa perspectiva histórica, social e econômica. Nesse sentido, oportuno lembrar que as primeiras grandes civilizações do passado surgiram e se desenvolveram ao longo dos cursos d’água.

A partir do momento em que o ser humano assumiu a posição de espécie dominante na Terra, ele aprendeu a observar e a explorar a natureza. Esta ofereceu os recursos necessários à sobrevivência dos primeiros hominídeos, que se multiplicaram, se espalharam pelos mais inóspitos rincões do planeta, se desenvolveram, e, decorridos milhares de anos de seu surgimento, atingiram a casa de sete bilhões de habitantes, todos ávidos por satisfazer suas necessidades (ou desejos) de água, alimento, energia, combustíveis e, entre os mais abastados, até mesmo algum conforto, numa compulsão desenfreada pelo consumo.

Mas desde o início de sua estadia no mundo a espécie humana vem se aproveitando dos bens ambientais, quase sempre sem a menor preocupação com a reposição e a conservação desses recursos.

Num prazo muito curto – e que se torna sempre mais curto – são dilapidados os patrimônios formados lentamente no decorrer dos tempos geológicos e biológicos, cujos processos não voltarão mais. Os recursos consumidos e esgotados não se recriação. O desequilíbrio ecológico acentua-se a cada dia que passa.

E assim chegamos ao estado atual, em que nossas ações chocam-se contra nossos deveres e direitos, comprometendo nosso futuro (MILARÉ, 2005, p. 48).

As catastróficas consequências desse panorama de devastação ambiental são notórias. Muitas espécies de seres vivos desapareceram do planeta (e continuam desaparecendo), algumas até mesmo antes de serem descobertas. A escassez de água e alimentos é um problema grave em inúmeros países. Com tantas queimadas, desmatamentos e emissões de poluentes a saúde da população encontra cada vez mais dificuldades para permanecer incólume. As catástrofes naturais matam milhares de pessoas a cada ano, e parecem ser cada vez mais graves (seja pelo aumento de sua força ou frequência de incidência, seja pelo fato das regiões atingidas serem cada vez mais densamente povoadas, já que a explosão demográfica parece longe de ser controlada).

Assim, a cada momento, por onde quer que observamos, deparamo-nos com inúmeros e variados problemas ambientais à nossa volta. De fato, a problemática ambiental está na ordem do dia. Basta atentar para as fontes de informação para ver que as agressões ao ambiente desfilam diuturnamente nos noticiários (MILARÉ, 2005, p. 49).

Assim, não é exagero falar que a própria sobrevivência da humanidade depende do desenvolvimento de uma consciência ecológica e da adoção de práticas eficazes no sentido de se preservar o meio ambiente e os recursos naturais.

A questão da escassez de água, suas causas e suas nefastas consequências são bem introduzidas pelas sempre oportunas palavras de Édis Milaré:

O planeta Terra vem conhecendo uma assustadora depleção de recursos naturais, conseqüência da demanda crescente exercida sobre o ecossistema planetário em nome de um pseudocrescimento econômico destinado a atender a necessidades sempre maiores e mais numerosas, nem sempre “necessárias”. Soma-se a isto o incremento populacional. O uso intensivo da água e a freqüência de desastres ecológicos afetam tanto a quantidade quanto a qualidade dos recursos hídricos efetivamente disponíveis (e não apenas teoricamente os contabilizados) (MILARÉ, 2005, p. 650).

Por mais que seja um recurso encontrado em enorme quantidade na natureza, estima-se que apenas 2,5% da água disponível no mundo é doce. Esse valioso recurso natural está sob pressão cada vez maior (SIRVINSKAS, 2011, p. 294).

A falta de água é um problema concreto e presente, que aflige um grande contingente humano:

Relatório divulgado pelas Nações Unidas por ocasião da Cúpula Mundial para o Desenvolvimento Sustentável, realizada em Joanesburgo, na África do Sul, em 2002, prevê que no ano 2025 cerca de 4 bilhões de seres humanos (metade da população projetada) sofrerão com a escassez de água. Atualmente, enfrentam o problema 2 bilhões de pessoas, isto é, um terço da humanidade (MILARÉ, 2005, p. 73).

Apesar de ser um recurso abundante no Brasil, a falta de água doce já se faz sentir:

O Brasil, nos últimos anos, vem tomando consciência do problema. Afinal, um povo que possui os maiores rios do mundo tem dificuldade em imaginar que pode ficar sem água. Mas, apesar de termos cerca de 13,7% da água doce disponível no mundo, a verdade é que os problemas vêm se agravando. No Nordeste a falta de água é crônica. No Sudeste ela é abundante, porém de má qualidade. A invasão de áreas de mananciais hídricos pela população carente é um dos maiores problemas de São Paulo. Os dejetos industriais lançados no rio Paraíba do Sul tornam precária a água que abastece o Rio de Janeiro e outras cidades. Falta água para irrigar os arrozais do Rio Grande do Sul. A Amazônia, em 2005, enfrentou sua pior seca causada por um aquecimento fora do normal nas águas do Atlântico Norte, deixando comunidades sem água e sem alimento. A navegação foi suspensa em diversas áreas (FREITAS, 2008, p. 18-19).

A falta de água é agravada pelo desperdício:

O biólogo José Borghetti afirma que 50% da água destinada à agricultura e pecuária é perdida. Na indústria, a perda é de 40 a 50%. Há também um desperdício camuflado na esfera doméstica, por exemplo: uma descarga de vaso sanitário comum consome de 20 a 25 litros de água (utilizando-se o sistema de esgoto a vácuo o consumo cai para 2 litros); uma torneira com vazamento e sem temporizador gasta cerca de 1.400 litros por mês; ao lavar pratos, gasta-se em média 112 litros; para fazer a barba, 75 litros; escovar os dentes com uma torneira aberta pode gerar o desperdício de 18 litros; ao lavar as mãos, uma pessoa utiliza cerca de 7 litros; ao lavar um carro com mangueira em meia hora, são desperdiçados 560 litros; um banho longo que ultrapasse 10 minutos, consome 95 a 180 litros (SIRVINSKAS, 2011, p. 295).

Como se não bastasse a problemática da escassez de água, a qualidade desta “[...] está permanentemente ameaçada por dois grupos principais de riscos: a contaminação por microorganismos patogênicos e a modificação das características físicas e químicas dos corpos de água”. As enfermidades relacionadas à água configuram a esmagadora maioria de 80% das doenças que se instalaram no mundo” (MILARÉ, 2005, p. 282-283; SIRVINSKAS, 2011, p. 297). “A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que 1,7 milhão de mortes anuais sejam causadas pelas águas poluídas” (SIRVINSKAS, 2011, p. 297).

Na verdade, a atividade humana (amplamente considerada), quase sempre levada a cabo de maneira irresponsável, criou uma complexa rede de problemas relacionados com a água, que tem várias causas e não se limitam à escassez e à poluição (Cf. SIRVINSKAS, 2011, p. 301).

 Como se vê, o direito enfrente muitos desafios, quando o assunto é a proteção ambiental. A função do direito penal é proteger os bens jurídicos mais importantes da vida em sociedade. A relevância da questão ambiental e dos inúmeros problemas que envolvem a água é incontestável. Nas próximas linhas tenta-se analisar o sucesso (ou insucesso) que o ramo jurídico em apreço vem demonstrando no cumprimento de seu papel, sob a perspectiva ambiental, com ênfase num ponto de vista de tutela da flora e dos recursos hídricos.

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Sobre o autor
Paulo Antonio dos Santos

Bacharel em Direito pelo Centro de Ciências Sociais aplicadas da Universidade Estadual do Norte do Paraná - UENP. Servidor do Ministério Público do Estado do Paraná (Oficial de Promotoria, ex-Assessor de Promotor de Justiça). Aprovado no exame da Ordem dos Advogados do Brasil em 2009. Especialista em Direito Ambiental pelo Centro Universitário Internacional UNINTER e em Direito Contemporâneo pela Universidade Cândido Mendes. Currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/6665338827431312.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Paulo Antonio. A tutela penal da flora como instrumento de proteção dos recursos hídricos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3409, 31 out. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22924. Acesso em: 22 dez. 2024.

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